O Direito de Escuta das Partes Processuais

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

O Direito de Escuta das Partes Processuais. Gabriela Jardon Guimarães de Faria. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, do CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares. Brasília: Universidade de Brasília, 2021, 218 p.

 

                            

            Chegamos ao final do ano de 2021 e no meu ofício de orientador pude colocar em debate, para defesa, essa bela dissertação desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da Universidade de Brasília.

            A autora, Gabriela Jardon, é uma destacada magistrada do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, mas traz o lastro de excelente percurso acadêmico, no Reino Unido, onde obteve seu primeiro Master in Law (LLM) em International Human Rights Law, na Universidade de Essex, Inglaterra, mergulhando no mundo da teoria tradicional dos Direitos Humanos, com sua visão norte-global de tratados e convenções internacionais.

            Por conta desse primeiro mestrado, e com os acréscimos de sua consistente formação, ela já foi admitida para o doutoramento no CES – Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em programa fundado por Boaventura de Sousa Santos, diretor emérito do Centro.

            No PPGDH, pela configuração da linha de pesquisa a que se vincula, a compreensão dos direitos humanos, de resto, assumida na tese, está mais carregada de historicidade, no sentido da materialidade que os constitui, ou antes, que os institui, conforme os fundamentos e fontes que adota para os designar.

            Assim, conforme antecipa o resumo:

estudo busca arregimentar uma base teórica para o que nomeia de direito da escuta das partes processuais, isto é, o direito das partes processuais de serem escutadas, antes dos julgamentos, pelos juízes e juízas responsáveis por suas ações judiciais. Inicia expondo e debatendo o que pesquisas empíricas sobre a satisfação do jurisdicionado com os serviços judiciários. Assumindo, no entanto, pela experiência pessoal da autora, que juízes e juízas tendem a não escutar as partes processuais ao longo das tramitações processuais, a não ser que o depoimento das mesmas tenha carga probatória, debate os Direitos Humanos, o Acesso à Justiça e o Direito Achado na Rua como possíveis molduras teóricas que alicerçariam o propugnado direito de escutas das partes processuais. Prossegue abordando o incremento em termos de democracia, humanismo e justiça que a escuta das partes processuais poderia aportar aos processos e à jurisdição como um todo. Traz, por fim, a importância da escuta para o humano, as aberturas processuais que permitem o reconhecimento e prática do direito de escuta das partes, esmiuçando de que escuta se está falando e como ela se viabilizaria na prática”. 

 

            Nesses termos se travou o diálogo com  Banca Examinadora, que presidi, na qualidade de orientador, embora destituído, na forma regulamentar, da capacidade da competência de julgar, tarefa que foi atribuída aos membros,  Professora Daniela Marques de Moraes, da Faculdade de Direito da UnB, Professora Bistra Stefanova Apostolova, também da Faculdade de Direito da UnB e Professor Antonio Sergio Escrivão Filho, membro externo (IESB/DF), no momento da constituição da banca, mas antes que instalada a banca, docente nomeado para ter exercício igualmente na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. A defesa, na sua integralidade e riqueza de interlocução, pode ser conferida no Canal YouTube de O Direito Achado na Rua (https://www.youtube.com/watch?v=RTz7NpTo9UA):

 

Mas a moldura do debate pode ser logo depreendida do sugestivo Sumário que organiza o roteiro da Dissertação. Abrindo com uma Introdução, na verdade, uma afirmação de pontos de partida, a Mestranda assinala os termos do trabalho:

De onde falo;  De que falo; Quando falo; Como pretendo falar; mediante Notas e ressalvas.

Segue-se:

  1. O Embarque: A (In)satisfação da população com o poder judiciário.

1.1 ICJBRASIL/FGV (2021;

1.2 ESTUDO DA IMAGEM DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO AMB/FGV/IPESPE

(2019;

      1.3 JUSBARÔMETRO DE SÃO PAULO – APAMAGIS/IPESPE (2021)

      1.4 O JUDICIÁRIO SEGUNDO OS BRASILEIROS/FGV (2009)

      1.5 CONCLUSÃO

      2    OS TRILHOS: OS DIREITOS HUMANOS, O ACESSO À JUSTIÇA E O DIREITO ACHADO NA RUA

      2.1 OS DIREITOS HUMANOS

      2.2 O ACESSO À JUSTIÇA

      2.3 O DIREITO ACHADO NA RUA

      2.3.1 “O direito achado na sala de audiência” – o direito de escuta das partes

na moldura do Direito Achado na Rua

     2.4  CONCLUSÃO

     3     OS DESEMBARQUES: A DEMOCRACIA, O HUMANISMO, A

JUSTIÇA

     3.1  A DEMOCRACIA

     3.2  O HUMANISMO

     3.3  A JUSTIÇA

     3.3.1 O direito de escuta das partes como uma exigência de justiça

    4      O PERCURSO: O DIREITO DE ESCUTA DAS PARTES PROCESSUAIS

    4.1   PELA FORÇA-MOTRIZ DA ESCUTA

    4.1.1 Por     que      os        juízes   e          as         juízas   tendem            a          não escutar?

    4.1.2 O novo juiz e a nova juíza

    4.1.3 O direito de escuta das partes – manual de uso

    4.2   PELA FORÇA-MOTRIZ PROCESSO

    4.2.1 O princípio da colaboração/cooperação

    4.2.2 E a imparcialidade, como fica?

    4.2.3 Oralidade e escritalidade

    4.2.4 É possível mas agora não

            Seguem-se a Conclusão e as Referências Bibliográficas.

            É um forte conteúdo, entretanto, embalado com a sutileza, a elegância e o ritmo que a escrita marcantemente literária da Mestranda permite, atributos logo distinguidos pelos examinadores e muito especialmente pela Professora Bistra Apostova, indicando, a seu gosto, a disponibilidade da cognição para se deixar enredar no arranjo argumentativo e convincente da Autora, desde uma condução, de saída, em primeira pessoa.

            Claro que para mim, não havia surpresa. A experiência de orientação descortinara esse talento e seu estilo, o que levara a exibi-lo, bem antes, em seu estrito sentido literário ao ler trabalho de crônica da Autora. Assim, nesta Coluna Lido para Você – http://estadodedireito.com.br/retratofalado/quando trouxe para os leitores a obra Retratofalado. Ensaios em Estado de Imagem. Textos Danielle Martins, Gabriela Jardon, Mariana Carvalho. Fotografias Wanessa Montoril. Brasília: Edição das Autoras/Athalai Gráfica e Editora, 2019, dizendo com ênfase:

Com Gabriela Jardon – GJ, não há surpresa. Eu já suspeitava que por trás ou por dentro da Juíza togada, ardia a quentura de um vulcão prestes lançar larvas incandescentes. Antes de acolhê-la como colega pesquisadora nos grupos de pesquisa da UnB (Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania), já tinha divisado as frestas de uma vivacidade literária, na leitura de sua Coluna Enquanto Isso na Sala de Justiça, publicada no Jornal Metrópoles. Ali, na crônica Reflexões sobre uma inspeção judicial: “A lei é morta, o juiz é vivo”, ela se indaga: “A cruzada judicial contra a corrupção vem sendo feita por um juiz vivo? Será que as ruas, o povo, o passado, a história vêm sendo devidamente inspecionados tanto por este juiz quanto pelos que o criticam? A decisão do HC foi uma vitória de juízes vivos sobre uma lei morta? Ou ali, ao contrário, na intenção de se vivificar uma lei, a realidade foi apagada, ninguém se lembrando de “inspecionar” o que de fato ocorreu travestido de processo?”.

            No trabalho, são fortes as intersecções intercapitulares, em epígrafes, as aberturas literárias, com referências sobretudo a autores que compartilham suas referências (Rubem Alves, com a sua crônica Escutatória; Cervantes, com o Quixote; colegas magistrados da Autora e ela própria, valendo-se de seu acervo literário publicado).

            Muito pertinente a apropriação da frase que corre solta e é distribuída em afiches e postares “Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, não é utopia, é justiça.” (Dom Quixote em diálogo com Sancho Pança, El ingenioso Hidalgo Don Quixote de La Mancha, 1605, Miguel de Cervantes), ainda que eu tenha lembrando no diálogo que essa frase, quem bem poderia ser do Quixote, não está na obra de Cervantes, que também não usa a expressão utopia.

            Cuidei de fazer uma anotação a propósito dessa citação em http://estadodedireito.com.br/conselho-aos-governantes/:

Quase poderia dizer que uma boa síntese dessas recomendações se encontra num enunciado com inusitada circulação, atribuída ao Quixote: “Cambiar el mundo, amigo Sancho, no es locura ni utopía. Sino justicia.”, não fosse a consideração de que em geral transcrita sem localização, por mais que procurasse, tanto eu quanto algumas outras indagações, não foi dado encontrá-la na obra de Cervantes, tanto quanto a palavra utopia que também se diz entre estudiosos, não aparece em seus escritos”.

            Tratei dessa questão, a propósito de vulnerabilidades comunicativas em juízo (http://estadodedireito.com.br/a-vulnerabilidade-comunicativa-em-audiencias-nas-varas-de-relacoes-de-consumo/) e também em http://estadodedireito.com.br/para-uma-revolucao-democratica-da-justica/. Podendo ainda consultar-se: http://estadodedireito.com.br/justicia-poetica-la-imaginacion-literaria-y-la-vida-publica/.

            Penso que um pressuposto forte que orienta o trabalho de Gabriela Jardon, movido pelos chamados de sua atuação profissional e de seu ofício, mas orientado teórica e metodologicamente para buscar respostas discerníveis e operativas tanto do ponto de vista funcional quanto discerníveis racionalmente, em que pese os cuidados a que a Banca (professor Escrivão e professora Daniela) indicaram em ambos os aspectos, está em que, segundo ela – p. 16 – “como não é reconhecido no campo do Direito o direito de escuta das partes, a escavação de uma base teórica argumentativa que sustente a sua existência persistiria atraente mesmo se chegando à conclusão, com a pesquisa de campo, de que, sim, a escuta das partes, ao contrário do suposto, costuma acontecer de modo satisfatório pelas e pelos juízes/as. Nesse hipotético caso, seria evidente que essa escuta não estaria se dando pelo reconhecimento de um direito, mas, quando muito, por iniciativa ética/humana individual do/a magistrado/a, pois a inexistência do direito de escuta das partes, do ponto de vista formal-positivo, é um dado posto. Logo, o trabalho dirigido a erigir o reconhecimento desse direito por meio da articulação teórica de razões, causas e condições, ainda assim, de toda forma, seguiria motivado e motivando”.

            A Autora reuniu e interpretou, na primeiro capítulo da obra (veja-se o Sumário), as mais qualificadas pesquisas disponíveis para sustentar a importância do questionamento (existente ou inexistente; ausente ou emergente, sugeriu o professor Escrivão) do tema que responde a sua principal hipótese de trabalho:

            A pesquisa de campo, por despicienda, foi, então, abandonada.  De toda sorte, interessa a este estudo a revisão bibliográfica de pesquisas empíricas já realizadas, algumas muito recentemente, não sobre a escuta de partes processuais em específico, não tendo sido encontrado nada com essa minúcia, mas sobre a percepção da Justiça brasileira pela população, em termos de confiança e satisfação. Isso porque um dos pressupostos do qual o direito de escuta das partes parte é uma notória e sabida, e já antiga, insatisfação generalizada da sociedade em relação ao Judiciário. Essa insatisfação realmente existe? É atual? Quais seus elementos característicos, seus pormenores? Arrancar com este trabalho daí me pareceu um começo necessário. 

            Dito isso, passo a apresentar os principais achados das pesquisas existentes nessa temática e suas conclusões, discutindo-as. Apesar de ter dividido o capítulo em tópicos, cada um se referindo a uma das pesquisas principais examinadas, isso não se deu de forma estanque mas móvel, no sentido de que em todos os tópicos as pesquisas se interpenetram, de modo a trazer à baila os diferentes ou semelhantes dados encontrados para reforços, contradições e comparações.

            Tudo com a expectativa de que (p. 32), “a escuta das partes seria, em essência, um admirável movimento de comunicação entre o Judiciário e suas e seus usuários/as, que se encontra à disposição da Justiça, com potencial de a conectar dialógica e diretamente a seu público, localizando-o no universo jurisdicional e o informando de maneira tão próxima que mais profunda e indelével”, um esforço para recuperar a humanização exaurida que possa se encarnar um sistema fundamental para qualquer projeto de sociedade:

Apesar de a Justiça ser comumente representada pela deusa grega Thêmis, que tem os olhos vendados, sustento nesta pesquisa que o verdadeiro sentido embotado do Judiciário é a audição, não a visão. Desumanizado, o Judiciário não escuta; ao não escutar, desumaniza-se ainda mais, objetificando as pessoas a quem se dirige. Com isso, além de estreitar as fronteiras do acesso à justiça, faz-se antidemocrático, negando aos envolvidos e envolvidas em conflitos judiciais o que provavelmente seria a maior chance de influência que poderiam ter em seus julgamentos: sua palavra viva. Sem a devida escuta, uma Justiça satisfatória, humana, acessível e democrática torna-se terra distante.

            Com o uso franco de metáforas a Autora esquematiza o plano da Dissertação, com uma inversão narrativa quanto à descrição dos capítulos, que melhor que a metáfora do comboio (evocativa do fecho da escrita no percurso cotidiano entre o Porto e Coimbra, bem poderia ter tomado a outra metáfora, essa a do paradoxo do navio de Teseu, na sua versão original em Plutarco para os mais eruditos ou na versão juvenil dos gibis citada em WandaVision, em qualquer caso expondo a indagação sobre qual o navio real, o que partiu do ponto A, inteiramente reconstruído no itinerário, considerando o que chegou no ponto B:

            O primeiro capítulo é por onde se embarca: o estado da arte do que se sabe sobre a satisfação ou insatisfação da população brasileira com o trabalho do Poder Judiciário. Na sensação da maioria dos usuários e usuárias, o Judiciário simplesmente não lhes entrega providências, modificações no estado das coisas e consequências que sejam percebidas como satisfatórias. Lentidão, custos e a complexidade de sua utilização são os fatores mais citados.

            Para este estudo, no entanto, existe um fator crucial ainda bastante invisibilizado que contribui consideravelmente para o descontentamento: as pessoas deixam de ser devidamente escutadas. Veremos o que o exame das principais pesquisas de opinião da área tem a dizer.

            Depois de embarcados, a ver por quais trilhos andar de forma a acomodar o percurso pretendido. O segundo capítulo refere-se à base teórica escolhida para alicerçar o direito de escuta das partes, que pertence ao campo dos Direitos Humanos, isto pela porta do Acesso à Justiça e sob a ótica do Direito Achado na Rua. Esses são os andaimes teóricos em que o direito de escuta das partes se escora na sua construção e soerguimento, explorados neste capítulo.

            O quarto capítulo é o percurso imaginado. O caminhar, o fazer, o realizar – e aqui chamado de percurso para que fique clara a ideia de continuidade, constante aperfeiçoamento e devir, e não algo acabado, fixo. Será o local para se apresentar em detalhes como se pensou e se arquitetou o direito de escuta das partes, com enfoque na importância da escuta e no modo como a mesma deve acontecer, isso tanto do ponto de vista da escuta em si, como do ponto de vista processual.

            E então é chegada a hora de desembarcar. Para onde, acredita-se, a escuta das partes pode levar um processo? Há mais de um portão nessa estação de desembarque. O desembarque, pela lógica de uma viagem, vem depois de feito o percurso, mas optei por inverter as ordens e só falar do percurso depois de ter já exposto sobre o desembarque, pois, como a maioria esmagadora dos percursos, esse daqui só existe com o fim específico de conduzir aonde se quer chegar. Então, me pareceu mais apropriado, antes de abordar o percurso, abordar o que o justifica. Por isso então, aqui no nosso trajeto, vamos espiar o desembarque antes mesmo de iniciar o percurso. O terceiro capítulo vai falar do que pode decorrer a partir do reconhecimento e da prática do direito de escuta das partes em termos de justiça, democracia e humanismo, correlacionando a implementação daquele com incrementos substanciais desses.

            Propõe-se aqui, portanto, uma pesquisa de abordagem qualitativa que use como método a revisão bibliográfica, a qual terá por objeto revisões teóricas. No bojo dessas revisões, o que se tentará é a articulação de campos e saberes, alguns de ligações óbvias, como o Acesso à Justiça e o Direitos Humanos, outros menos óbvias, mas nem por isso menos afins, como a escuta e o exercício da magistratura, passando por lugares como O Direito Achado na Rua, as pesquisas de satisfação da população com o sistema de justiça, o direito processual, as teorias da justiça, a democratização da Justiça e o humanismo, para citar os principais.

            Instiga-me, não poderia ser diferente, a leitura que a Autora faz, no capítulo segundo, a sua base teórica estruturante, notadamente, a que busca os pressupostos político-epistemológicos de O Direito Achado na Rua, deles extraindo, sem derrapar em tipos ideias (como notou na arguição o professor Escrivão), num intuito de esquematização e de categorização que não fosse tão arbitrária e conjectural para lembrar Jorge Luís Borges, no seu O Idioma Analítico de John Wilkins, já que propriamente nenhuma classificação no universo pode deixar de sê-lo, apenas para fazer caber no esquema os seus achados de pesquisa.

            A Dissertação, não só nesse âmbito, é um diálogo altivo com todos os autores e autoras escolhidos para interlocução, a partir dos campos de motivação da Autora, desde o seu interesse psicoanalítico ao filosófico. Fico enormemente satisfeito em encontrar em boa articulação os autores e autoras que formam a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua. Notável recensão, felizmente, carregada de lealdade aos enunciados e de livre identificação. Remeto às pp. 88-89:

            A judicialização de direitos não é, pois, ponto forte dos esforços do DAR que, se não a descarta, enxerga-a como um caminho a mais, e a depender. A razão de vida e trabalho do DAR é, na verdade, o reconhecimento e a legitimação de direitos que se observam e se extraem de práticas sociais, performadas por sujeitos coletivos, em espaços que se caracterizam pela presença de projetos políticos de transformação social. Nas palavras de seu principal expoente hoje vivo, professor José Geraldo de Sousa Júnior:

            Naquela apresentação de 1993, a montante de um percurso ainda apenas projetado, destaquei que a concepção de O Direito Achado na Rua era fruto da reflexão e da prática de um grupo de intelectuais reunido num movimento denominado Nova Escola Jurídica Brasileira, cujo principal exponente era o professor Roberto Lyra Filho que lhe indicou o nome e traçou os contornos de seus fundamentos. Então, tomei como elementos norteadores para a localização paradigmática              desses fundamentos e o significado de sua contribuição, alguns textos de referência, naquela altura com razoável circulação, para concluir, propondo, pela primeira vez, para que objetivo se voltava o projeto: orientar o trabalho político e teórico de O Direito Achado na Rua, que consiste em compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos novos movimentos sociais e, com base na análise das experiências populares de criação do direito: 1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, como por exemplo, os direitos humanos; 2. Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo de direito; 3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade. (SOUSA JÚNIOR [Org.], 2015, pp. 2-3, grifo meu).

            Se esse reconhecimento e essa legitimação de direitos se dá no campo político, e aí permanecem firme, ou se vêm a trilhar um caminho judicial, anterior, concomitante ou posterior ao reconhecimento político, é questão que, se não passa despercebida pelo DAR, lhe interessa lateralmente. Até mesmo a positivação desses direitos pelos quais o DAR acompanha a luta ou luta junto – isto é, o tornarem-se leis produzidas pelo Estado – não é o ponto de chegada do DAR e muito menos o de partida. O interesse maior do Direito Achado na Rua é com o surgimento e impregnação de novos direitos em dado contexto histórico-social; com a preocupação de que sejam afirmados e reconhecidos no campo social e político como fenômeno jurídico legítimo, independentemente do reconhecimento que possa também advir, em reforço, da esfera estatal legislativa e/ou judiciária. O DAR corre por fora desses campos ou, melhor, plaina por cima, com aterrisagens possíveis, mas não imprescindíveis. A fonte do direito formal estatal (Poder Legislativo) e sua interpretação a ser conferida (Poder Judiciário) podem fazer as vezes de players estratégicos no endossamento dos direitos pluralísticos, seus sujeitos e espaços políticos, mas todo o núcleo ontológico do Direito Achado na Rua tem por espírito, na verdade, declarar-se independente dessas instâncias.

            Contudo, ao entender o direito como irredutível expressão histórica do justo (SOUSA JÚNIOR, 2015, p. 25), O Direito Achado na Rua, imbuído do seu insuprível “compromisso de superação das injustiças” (Idem, p. 94), vai se voltar inevitavelmente a caçar a justiça, inclusive, na Justiça, ou seja, escrutinar o sistema de justiça para o questioná-lo sobre qual tipo e qualidade de justiça que tem distribuído. E isso vai se traduzir necessariamente na observação do que acontece nas judicializações de direitos. Por isso, não obstante não seja o seu foco principal, em relação aos processos judiciais do sistema de justiça, é possível dizer que o DAR se debruça para perguntar sobre justiça: a que justiça se quer ter acesso?

            A Autora ensaia um manual de uso atenta a não permanecer no plano abstrato do desejo, mas a formular desenhos operativos que institucionalizem a escuta. Ela projeta procedimentos e diretrizes de formação. Tem educação esmerada para conhecer os entraves funcionais, burocráticos, regulamentares e até subjetivos. Leu Anatole France, leu Tolstoi, lei Proust, leu Balzac. Transcreveu páginas dramáticas dos três primeiros. Pensa como Balzac:

Quando um homem cai nas mãos da Justiça, deixa de ser um ser moral, mas apenas uma questão de direito ou de fato, como aos olhos dos estatísticos se transforma um número” (BALZAC, Honoré de. O Coronel Chabert, Otto Pierre,  Anatole France, pensou no juiz. Poderia também fazê-lo quando o grande escritor olha com os olhos do jurisdicionado (Da Submissão de Crainquebille às Leis da República. Crainquebille in FRANCE, Anatole. A Justiça dos Homens, Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 1978): “Crainquebille sentou-se na sua banqueta acorrentada, cheio de espanto e admiração. Ele mesmo não estava bem certo de que os juízes se houvessem enganado. O tribunal escondera-lhe as suas íntimas fraquezas sob a majestade das formas. Ele não podia acreditar que pudesse ter razão contra magistrados cujas razões não compreendera: era-lhe impossível conceber que alguma coisa claudicasse numa tão bela cerimônia”.

            Tudo para vencer o obstáculo de um sistema e de um agente (o juiz), inaptos para o escutar: “provas de fatos, seguidas da subsunção silogística fato-norma-jurisprudência, são, pois, o centro insistente das práticas de trabalho da magistratura – e não deixa de ser curioso como, assim, vão se derretendo os sentidos originários da audiência e da sentença, etimologicamente, “atenção dada a quem fala” e “ato de sentir”, respectivamente. O juiz e a juíza brasileiros/as do século XXI, realizam centenas de audiências e exaram milhares de sentenças ao ano, mas, na maioria das vezes, fazem audiências sem ouvir e, por isso, acabam emitindo sentenças sem sentir” (p. 178).

            Assim, freireanamente, abre a perspectiva do esperançar (p. 181-183), para ativar no sistema e despertar no agente, novidades que os mobilizem:

Esperançando aqui, se existir um novo juiz/uma nova juíza a nascer, de quem uma igualmente nova Justiça estivesse grávida, como seriam eles/elas? Dessa vez, calo-me para dar voz apenas a alguns dos/as autores/as citados/as no decorrer desta dissertação as inspirações, sem nenhuma pretensão de ser a relação completa, mas apenas para pincelar algumas das principais ideias que surgiram da bibliografia consultada. Podemos dizer que o/a novo/a juiz/íza da nova Justiça é: 

  • participativo/a:

O novo juiz é partícipe da relação processual, ocupando posição central de órgão público interessado a fornecer justiça de modo melhor e mais rápido. (GOUVEA, 2009, p. 38)

  • tem por pauta a juridicidade e não a legalidade:

 Não se pode mais sustentar que o juiz, diante do direito material e do direito processual, encontrasse atado a uma pauta de legalidade. A pauta do direito contemporâneo é a juridicidade, que aponta automaticamente à ideia de justiça, a qual forma o substrato material ao lado da constitucionalidade e dos direitos fundamentais do Estado constitucional. (MITIDIERO, 2019, p. 39)

  • é informal:

Taylor relata que na Austrália geralmente as partes e o magistrado sentam-se em torno de uma mesa de café e, muitas vezes, o próprio juiz telefona a alguém que possa confirmar a versão de uma das partes. O juiz ativo e menos formal tornou-se uma característica básica dos tribunais de pequenas causas. (CAPPELLETTI, 1988, p. 103)

 4) é dialogador/a:

            Superando mitos e barreiras fundadas em tradições corporativas e normatividades anacrônicas, é possível, talvez necessário, que se explore o potencial de novas fórmulas institucionais de justiça, menos técnicas e mais afeitas ao diálogo social e institucional, o que deve ser disputado e conquistado, certamente, na medida da práxis da sociedade civil organizada em torno de uma concepção que Boaventura de Sousa Santos chamou de acesso que vise à transformação da justiça acessada. (SOUSA JÚNIOR; ESCRIVÃO FILHO, 2016, p. 186)                                                                             

            Constata-se que a abertura institucional do poder judiciário para o diálogo deliberativo com os atores sociais envolvidos e instituições públicas implicadas apresenta-se como a essência de um procedimento apto a produzir soluções adequadas, alternativas e pacíficas par ao conflito (SOUSA JÚNIOR; ESCRIVÃO FILHO, 2016, p. 185)

            Isso significa que é preciso, em primeiro lugar, abrir espaço na formação dos profissionais para aprenderem o respeito pelo outro como algo inafastável das profissões jurídicas. Um respeito que vai além dos discursos de dignidade e igualdade da Constituição e que se incorpora nas práticas cotidianas do profissional. Respeitar o outro é ouvi-lo, é colocar-se em seu lugar, é abrir-se para um real diálogo, para a relação de troca. Infelizmente, muitos profissionais recebem em sua formação a falsa noção de que o direito é um remédio para todos os males, de que o direito é a voz. E, com isso, assumem postura de antidiálogo, pois acreditam firmemente que só o direito tem a solução. Ao ‘ouvir’ o outro, tratam de imediatamente ir reduzindo sua fala ao que pode ser enquadrado, tipificado, normatizado. No fim do ‘diálogo’, o que fica é unicamente a voz do direito conforme as convicções profissionais. O outro importa apenas para trazer a causa, que passa a ser propriedade do profissional. (MARILLAC, 2009, p. 89)

  • é democrático/a:

De fato, uma concepção e abertura participativa da justiça também pode encontrar mecanismos e perspectivas orientadas para um aprofundamento democrático da via jurisdicional, sobretudo em casos envolvendo sujeitos coletivos de direitos implicados na luta pela defesa ou acesso a direitos humanos econômicos, sociais e culturais – sejam eles já traduzidos em direitos fundamentais, ou não. (SOUSA JÚNIOR; ESCRIVÃO FILHO, 2016, p. 182)

  • é envolvido/a:

Assim é que se requer do juiz, hoje, envolvimento, atuação e escolha. Decisão, portanto, proferida num procedimento em contraditório, respeitada a igualdade substancial e com total observância do devido processo legal na sua vertente processual e material. (CEREZZO, 2006, pp. 14-15)    

  • é comunicativo/a:

 Era comum, há algumas décadas, afirmar que o juiz só fala nos autos. Mas o mundo hoje é outro. O STF assimilou uma prática recorrente nos demais poderes, ao menos a partir da Constituição Cidadã de 1988. São as audiências públicas. Em hard cases, com implicações ideológicas, morais, éticas e religiosas, a estratégia mostra funcionar a contento. Em 2007, quando do processo a envolver pesquisa com células-tronco, o Ministro Ayres Britto ouviu 17 médicos, biólogos, pesquisadores, religiosos e representantes da sociedade civil. Em 2008, duas novas audiências públicas: a discussão a respeito de importação de pneus usados e a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. Em 2009, a Corte convocou 50 especialistas para debater as liminares concedidas pelas instâncias inferiores da magistratura e que obrigam o Poder Público a fornecer gratuitamente tratamentos, próteses e remédios não garantidos pelo SUS. Em março de 2011, em audiência pública se debateu a política de cotas sociais e raciais para ingresso nas universidades. Essa prática sinaliza a todo o Judiciário o advento de novos tempos: ele não pode se manter alheio, mas tem de ouvir a comunidade a que serve. (NALINI, 2011, p. 82)

 7) é inovador/a:

O Judiciário tem urgência de adotar novos paradigmas. E paradigma naquela visão de Thomas Kuhn, de um design novo, adequado a novas exigências, impostas pelo natural progresso da humanidade. (…) Por que não procurar fazer as coisas de um modo novo? Por que não incorporar novidades que tendam a aperfeiçoar uma prestação que se desenvolve da mesma forma há séculos? (NALINI, 2011, p. 22)

 

            Um caminho sinuoso, tortuoso, acidentado. Pesquisa que coordenei respondendo a edital do Ministério da Justiça sobre modos de observar a Justiça e o Judiciário (Observatório do Judiciário, Série Pensando o Direito, UnB/UFRJ, PNUD/Secretaria de Assuntos Legislativos/Ministério da Justiça, Brasília, nº 15/2009.  Coordenação Acadêmica:  José Geraldo de Sousa Junior, Fábio de Sá e Silva, Cristiano Paixão e Adriana Andrade Miranda (http://pensando.mj.gov.br/wpcontent/uploads/2015/07/15Pensando_Direito3.pdf)),  foi possível estabelecer junto a assessorias jurídicas de movimentos sociais e extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.

            A Autora encerra a sua Dissertação à moda utópica, quase como o Barão aventureiro do livro de Rudolf Erich Raspe,  puxando-se pelos cabelos

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

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