O CEDENPA e a luta pela implantação das políticas de cotas étnico-raciais na Universidade Federal do Pará (UFPA)

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

NAVEGANTES, Aline de Souza. O CEDENPA e a Luta pela Implantação das Políticas de Cotas Étnico-Raciais na Universidade Federal do Pará (UFPA). Brasília: Universidade de Brasília\CEAM\Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH), 2019. 133p.

 

            Ofereço neste Lido para Você, uma indicação editorial importante, que a dissertação de Aline Navegantes proporciona, desde o texto e na própria sustentação durante a defesa perante a banca examinadora, da qual participei juntamente com o Professor Luis Fernando Cardoso da UFPA e do orientador da dissertação, meu colega de UnB do programa de pós-graduação (Direitos Humanos e Cidadania) Professor Wanderson Flor do Nascimnto. Em ser um estudo de caso, que teve o intuito, diz a Autora, de “investigar a luta antirracista do movimento social negro paraense em âmbito acadêmico, no que concerne a atuação e protagonismo dos membros do Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará (CEDENPA), durante o processo de implantação das cotas étnico-raciais na maior universidade do norte do Brasil”, como tal, vale enquanto exemplaridade, porque cuidadosamente descrita, o que lhe confere força metodológica (“a descrição verdadeira do objeto é, simultaneamente, a sua explicação”, F. Engels).

            O estudo, entretanto, avança no esforço de compreensão e avalia analiticamente, ações e posicionamentos que dão sentido e conteúdo ao processo contido no caso, fixando-se nas “estratégias e ações antirracistas cunhadas pelos membros do respectivo movimento negro na UFPA e, dentre tais ações, estará em destaque a criação do Grupo de Estudos Afro-Amazônicos (GEAM), suas investidas e embates no campo político da UFPA, objetivando a fomentação ao debate sobre as cotas e posteriormente, a construção da primeira política de ação afirmativa de cunho racial da Instituição”.

            O bem elaborado sumário parte da localização dos sujeitos inscritos no movimento negro organizado no Brasil e da criação do Grupo de Estudos Afro-Amazônico (GEAM), mas num recorte histórico em contexto regional que circunscreve, entre quilombos e cabanos, portanto, no contexto periférico amazônico o surgimento e a consolidação do CEDENPA. Com essa perspectiva põe em relevo as estratégias e ações antirracistas dos membros do CEDENPA na Universidade Federal do Pará. Desde esse enquadramento analisa o próprio CEDENPA e a aprovação na Universidade Federal do Pará (resolução n. 3.361\2005), da adoção das cotas étnico-raciais.

             Como quer que seja, a Autora aproveita muito bem em seus melhores argumentos, como fez Boaventura de Sousa Santos, não perdendo de vista que é talvez o mais valioso fundamento para reconhecer política e juridicamente a validade da tentativa de institucionalizar políticas de reconhecimento que considerem a existência de grupos historicamente desfavorecidos, contribuindo para a efetivação da justiça social, vale dizer, entender a necessidade de combinar justiça social com justiça histórica.

            Lembro que o sociólogo português, doutor honoris causa da UnB e que nos visita mais uma vez na semana em que a dissertação é defendida, desenvolveu esse argumento em artigo elaborado a meu pedido, Reitor à época da judicialização do tema, justamente para elevar o plano de debate sobre esse tema, na condição concreta de julgamento no Supremo Tribunal Federal de ADPF nº 186 (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) movida por partido político (DEM), contra o programa da UnB (Justiça Social e Justiça Histórica. Brasília: Observatório da Constituição e da Democracia, Faculdade de Direito da UnB, ano III, nº 32, agosto de 2009, p. 24 – https://drive.google.com/drive/folders/1_46nzXfxMhdJtKt8exhmg_HgIMabsN3F?fbclid=IwAR1DrtP_efFgqSQ8fBOODmqhlEKJgl0GT9cBLs7udqWeqd8t2foFk8sAR64). Sobre o tema Ações Afirmativas e Inclusão, no mesmo repositório Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, nº 18, dezembro de 2007.  (https://drive.google.com/drive/folders/1_46nzXfxMhdJtKt8exhmg_HgIMabsN3F?fbclid=IwAR2rbBSHnlxdhfZ_frr_XQgBmuMwpUNnJFJaZnTRyu9izCzCIOK0LNdAHhM)

            Ao trazer para a hermenêutica das normas constitucionais, o princípio político esquecido da fraternidade, o notável sociólogo oferece esclarecimento para a relevância da política de cotas da UnB, apoiada no reconhecimento de afirmação étnica. E lembra que “falar de fraternidade no Brasil, significa, essencialmente, enfrentar o peso de um legado (colonialista), o que representa um grande desafio para um país em que muitos tomam a ideia de democracia racial como dado, não como projecto”. Mas, ele continua, “se o desafio for enfrentado na sua inteireza pelas instituições sem que se busque diluir a gravidade do problema em categorias fluidas como a dos ‘pobres’, o país caminhará não apenas para a consolidação de uma nova ordem constitucional, no plano jurídico, como também para a construção de uma ordem verdadeiramente pós-colonial, no plano sócio-político”.

            Como bem sabemos, o STF, ao legitimar contra a ausência ou contra a existência de normas que venham de encontro restritivamente a iniciativas próprias da autonomia universitária, homologou o fundamento que foi distinguido pela UnB, e que prevalecem ainda que mudanças legislativas venham a ocorrer. Por isso indicava Boaventura de Sousa Santos, que “ao estabelecer e monitorar um sistema de acções afirmativas que destina parte das vagas a pretos, pardos e indígenas, a UnB tem oferecido três grandes contribuições para essa transição. Em primeiro lugar, o sistema de educação superior pode reusar-se a reproduzir as desigualdades que lhe são externas e mobilizar a comunidade para a construção de alternativas de inclusão de segmentos historicamente alijados das universidades em razão da cor da pele ou identidade étnica. Em segundo lugar, a construção e adopção de alternativas com este recorte não acarreta prejuízo para a qualidade dos trabalhos acadêmicos; ao contrário, traz mais diversidade, criatividade e dinamismo ao campus. Em terceiro lugar, apesar de levantar reações pontuais, como a do DEM, e de incluir decisões que sempre serão polêmicas, como a do critério de identificação dos beneficiários, acções afirmativas baseadas na cor da pele ou identidade étnica conseguem desenvolver um elevado grau de legitimidade na comunidade acadêmica”.

            Esses fatores, incorporados à decisão unânime que se estabeleceu no Tribunal, trouxe para a política experimentada na UnB e projetada com o julgamento da ADPF nº 186 em seus efeitos expandidos, um caráter de equidade que pode ser mantido, mesmo quando a legislação, vindo a reboque, a generalizou agora pelo enquadramento da inclusão por critérios sociais. A UnB incorporou essa dimensão de classe em seu programa, mas manteve íntegro o critério de raça e étnico segundo as determinantes de sua autonomia.

            O trabalho de Aline Navegantes para além de seu giro existencial, em se descobrir como mulher afro-amazônica e de sua contribuição ao conhecimento factual de uma realidade relevante em sua singularidade, enquanto estudo de caso, proporciona uma elevação de nível teórico para vencer o limite revelado por Boaventura de Sousa Santos no que ele denomina de interferência de categorias fluidas tendentes a disfarçar a gravidade dos problemas presentes no racismo e suas consequências. Aline orienta sua análise, no plano teórico, na medida em que adverte desde estudos preparatórios que ela própria empreendeu, acerca da condição de ser negro no Pará e na Amazônia e do diálogo com seus autores e autoras de referência – Mônica Conrado, Marilu Campelo, Alan Ribeiro, Vicente Salles, Nilma Bentes e a querida Zélia Amador de Deus – o que “difere essencialmente de ser negro (a) em outras partes do país”.

            Segundo ela, conquanto “os estudos clássicos e contemporâneos sobre a formação da sociedade brasileira e sua marcante influência negra, são indispensáveis para o entendimento das relações raciais no norte do Brasil”, não são “suficientes para explanar as particularidades encontradas na historicidade da presença negra na Amazônia e como isso reverberou na construção de identidades racializadas na região”. Em acordo com os autores com quais estabelece interlocução, ela escapa do risco diversionista de categorias fluidas, prevenindo a sua análise da “supervalorização da presença indígena que se permite chamar de ‘mito indígena’ e a construção e divulgação da ideia de que há pouca influência dos africanos escravizados e seus descendentes na região”, de um lado; e da “invenção da morenidade como marca identitária que mostra como a população negra foi percebida e se colocou no discurso local”, de outro lado. O termo caboclo como classificação social da população amazônica “tornou-se um símbolo da integração entre as comunidades indígenas e a sociedade colonial”, fazendo com que “a presença negra foi historicamente diminuída em detrimento das matrizes indígenas e portuguesas, que se tornaram os pilares da construção da identidade miscigenada paraense”. 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

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