Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
BRAZ, Graziela Palhares Torreão. Crime Organizado e Direitos Fundamentais. Brasília: Editora Brasília Jurídica, 1999, 190 p.
Mais de meio século vigente e o Código Penal Brasileiro tornou-se alvo de um movimento forte para a sua substituição. O projeto de um novo estatuto é fruto do trabalho concluído no ano de 1999, por uma Comissão Revisora, tendo ultimado o projeto que, conforme indicou, pretende conduzir o Brasil século XXI adentro, numa posição avançada em matéria penal. O projeto, entretanto, desde então, continua em tramitação não estando ainda apto á deliberação legislativa.
Foi nesse projeto, por exemplo, que entre outras inovações consideradas importantes, na opinião da maioria dos especialistas, se ofereceu uma tipificação do chamado crime organizado, alcançando atividades de característica mafiosa.
Também cinquenta anos após a Conferência de Sutherland, lançando a tese do White colar crime, o debate chegou a nossa consideração criminológica sob o impacto de práticas de agentes em posição muito privilegiada, enfim cominadas de caráter delinquencial.
É certo que não faltaram impulsos a essa tese no panorama internacional, bastando lembrar, a propósito, a famosa exposição de Séverin-Carlos Versele, perante o Consórcio Eutope de Investigações Políticas, em abril de 1976, ocasião em que formulou a sua célebre noção relativa à cifra dourada da delinquência.
Naquela oportunidade Versele buscava o convencimento quanto à necessidade de se aprofundar a investigação que se refere à delinquência não convencional de caráter sociopolítico, ao mesmo tempo que se deviam elaborar programas aptos para a prevenção desse tipo de delinquência.
Na sua advertência, investigações sociológicas de criminologia e políticas criminais deveriam ter aprofundamento essencial quanto a estruturas econômicas e políticas que permitem, se não favorecem, a corrupção; filigranas do sistema penal, legislativo e judicial que fazem escapar ao controle social um número tão excessivo de fatos gravemente prejudiciais para as coletividades nacionais e para a paz e a justiça internacionais.
De toda sorte, para sustentar esse debate, a reação social como alternativa analítica rompera já com o discurso do positivismo criminológico fundado na determinação de fatores de propiciação de natureza biopsíquica que haviam naturalizado o delito e o desvio, identificando o indivíduo criminosos fora dos padrões de desenvolvimento normal como louco ou doente. Goffman descrevera pormenorizadamente o processo de estigmatização, caracterizando a sua funcionalidade e, na linha das teorias dos estereótipos, apontara-se o modo pelo qual o chamado processo de criminalização não apenas produz formas de classificação de indivíduos em agrupamentos manipuláveis, mas cria bodes expiatórios sociais e lhes atribui papel sacrificial. Criara-se, assim, as bases para um novo entendimento da questão criminal, capaz de situar a sofisticada organização da criminalidade a partir, exatamente, da possibilidade, tal como acentuou Roberto Lyra Filho (Revista de Direito Penal, v. 31, 1081, p. 67), de problematização do fenômeno da incriminação como pressuposto e base de toda análise das condições de emergência do delito, assim procurado em suas raízes histórico-sociais.
Retardatário também nesse campo, o Brasil só recentemente se deu conta da complexidade dessa modalidade de delito. Em notável depoimento, o mais festejado criminalista brasileiro, que ainda se conserva nesse pódio mesmo após seu falecimento, que é, a meu ver, Evandro Lins e Silva, dá a medida desse distanciamento problematizante:
A advocacia naquela época era muito precária. O Brasil ainda era um país muito pobre. Não havia lei de economia popular, não havia crimes financeiros, crimes econômicos, de forma que a base do advogado criminal era a advocacia do júri, onde, de quando em vez, havia um crime passional, quer dizer, havia um cliente de classe média que podia remunerar modestamente o advogado…A modificação nos escritórios de advocacia criminal se deu sobretudo a partir de 1938, quando foi editada a primeira Lei de Economia Popular. Era uma lei que punia monopólios, os cartéis, os crimes de infração do tabelamento de preços, a gerência fraudulenta de empresas, a usura. Uma lei que passou a punir o burguês, o comerciante (O Salão dos Passos Perdidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/CPDOC, 1997, p. 108-109).
A recepção, pois, no projeto do novo Código Penal desse delito está longe da memória romântica de que nos fala Evandro Lins e Silva a partir do relato de sua trajetória de grande advogado criminalista. Ao contrário, está na linha de consideração de um fenômeno, como adverte Winfried Hassemer, novo e excepcional. Realmente diz Hassemer:
Los criminologos = en la medida que perciben y reconocen el fenômeno de la criminalidade organizada – coinciden que ésta es una forma de aparición de la criminalidade cualitativamente nueva. Los políticos encargados de la seguridade interna coinciden en este punto y subrayan que las amenazas, que están unidas a este yipo de criminalidade, no constituyen unicamente aumentos cuantitativos de peligros conocidos hasta la fecha, sino que alcanzan un nível de peligro social hasta el momento desconocido (Limites del Estado de Derecho para el Combate Contra la Criminalidad Organizada – tesis y razones. Brasília: Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, ano 6, n. 11 – jan./jun, 1998, p. 227).,
É sobre esse fenômeno, a qualidade nova dessa criminalidade, suas características, seu perigo social e seu enfrentamento em face dos direitos e das garantias fundamentais que trata o livro de Graziela Palhares Torreão Braz – Crime Organizado x Direitos Fundamentais, editado pela Editora Brasília Jurídica.
A oportunidade e a pertinência desse trabalho decorrem exatamente de se situar o livro, com a sua qualidade intrínseca, em pleno debate sobre um tema novo e que ganha relevância com a sua recepção no Código Penal. Bem escrito o livro oferece uma introdução que demarca a questão conceitual acerca da criminalidade organizada, tanto no ordenamento jurídico brasileiro quanto no direito internacional, tendo como parâmetro a conceituação normativa do ordenamento jurídico italiano, país em que mais se vivenciou a experiência do enfrentamento ao crime de máfia que serve de modelo de tipificação ao direito brasileiro.
Atenta às tendências e às tomadas de posição no debate criminológico, a Autora não se deixa enredar nas armadilhas de modismos penais e desconfia, como ela mesma denomina, da utilização do aparato jurídico-penal como principal e, até mesmo, única resposta para fazer face a essa realidade.
Fiel aos pressupostos da linha de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, em cujo mestrado desenvolveu a pesquisa que dá origem ao livro, a Autora não se deixa levar para o caminho fácil de reforço do caráter simbólico do instrumento penal, se este se dá mediante graves sacrifícios aos direitos e garantias fundamentais, na medida da criação de tipos penais mais severos, com agravamento das cominações legais que levam a restringir garantias processuais e instaurar procedimentos e mecanismos de transações estranhos ao sistema em vigor, de forma a validar um verdadeiro direito penal de exceção.
Não que deixe de dar tratamento operacional e desenvolver estratégias hermenêuticas para a aplicação do direito positivo, como o faz, judiciosamente ao examinar a Lei n. 9.034/95, editada para enfrentar as ações praticadas por associações criminosas. Mas, coerente com Luigi Ferrajoli, a Autora rejeita a forte demanda pela criminalização refletida no movimento de neocriminalização, criticando a introdução, em nosso ambiente penal, de figuras eticamente questionáveis, ao gosto do modismo ditado por esse movimento. Anote-se, a esse respeito, a situação referida como colaboração espontânea do agente.
Para Graziela Torreão Braz, nessa modalidade moderna de criminalidade, não há como se resolver o problema, pura e simplesmente, mediante a elaboração de leis penais. É preciso primar pela eficácia do direito penal, sendo imperativo, portanto, ampliar a esfera de tutela civil e administrativa, transferindo para esta muitos dos interesses abrangidos hoje pelo direito penal.
Penso que um tanto desse apelo ao midiático, se reduziu ao que se tem chamado de ideologia do punitivismo e que esteve no cerne do conjunto de medidas de combate à corrupção – erigida em metonímia da categoria criminalidade – reunidas no PL 4850/16 – (Estabelece Medidas Contra Corrupção, que tomou na Comissão Especial da Câmara instalada para o examinar o Número: 1017/16 24/08/2016-16).
Convidado pela Presidência da Comissão e pela Relatoria da proposta a expor no plenário minha posição sobre o assunto (conferir o inteiro teor do depoimento conforme as notas taquigráficas da sessão, arquivadas no Departamento de Taquigrafia e acessíveis pela WEB), comecei por lembrar, por exemplo, que a crítica ao punitivismo é uma leitura de um sentido civilizatório., cujo roteiro, sustenta Evandro Lins e Silva, que revela a história do Direito Penal como a história da contínua mobilização na direção da abolição da pena de prisão. Num texto de Evandro (De Beccaria a Filippo Gramatica. Uma visão global da história da pena. Edição do autor, 1991), ele traz para nossa atenção uma leitura do então Ministro Francisco de Assis Toledo, ex-integrante do Superior Tribunal de Justiça, que presidiu a Comissão Especial para reforma do Código Penal, segundo o qual em grave equívoco incorrem, frequentemente, a opinião pública, os responsáveis pela administração e o próprio legislador, quando supõem que, com a edição de novas leis penais, mais abrangentes ou mais severas, será possível resolver-se o problema da criminalidade crescente. Essa concepção do direito penal é falsa porque o toma como espécie de panaceia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal, apesar do delírio legiferante de nossos dias. Não percebem os que pretendem combater o crime com a só edição de leis que desconsideram o fenômeno criminal como efeito de muitas causas e penetram em um círculo vicioso invencível, no qual a própria lei penal passa, frequentemente, a operar ou como fator criminógeno ou como intolerável meio de opressão.
No depoimento que prestei junto à Comissão Especial da Câmara (PL 4850/16), lembrei, a propósito da advertência do Ministro Toledo, uma outra atitude militante nessa direção: O Prof. Moro, por exemplo — refiro-me ao Prof. Aldo Moro, primeiro ministro italiano líder da social-democracia cristã na Itália e grande penalista, que se notabilizou, ele próprio, depois, vítima da exacerbação política e sacrificado por um sequestro (Brigadas Vermelhas) seguido de assassinato político (Roma, 1978) —, mas que tinha uma leitura humanista e foi o grande corifeu do debate da descriminalização, da despenalização, sob a perspectiva de que os sistemas penais exacerbados colocam em risco aquilo que não se resolve só com a lei, mas precisa ser construído com base em processos de formação consistente do compromisso de cidadania que educa o povo (http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/pl-4850-16-estabelece-medidas-contra-a-corrupcao/documentos/notas-taquigraficas/NT10aReunio240816.pdf), acesso em 15/02/2019.
E por isso disse eu no depoimento: ressalvadas todas as observações em contrário, uma homenagem mesmo cortês à estrutura teórica, política e ética do nosso sistema penal, não arreda compromisso com o direito de defesa, o principio de presunção de inocência, a salvaguarda inarredável do habeas corpus e o equilíbrio da função jurisdicional.
Sem me apegar às indicações da corrente à qual me filio que vê o direito como enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade, Direito Achado na Rua (Roberto Lyra Filho) e sem entrar no debate que envolve os limites da cultura legal, da formação dos operadores de Direito que não conseguem visualizar o jurídico para além das leis, fio-me no magistério do Papa Francisco, conforme a Bula Misericordiae Vultus, e a sua convocatória expressa para que aprendamos a ver o Direito para além das leis, procurando, na dignidade da política, englobá-la e superá-la num evento superior de libertação das estruturas iníquas que dissolve e aliena dos sujeitos o humano que histórica e socialmente os constitui (MV n. 20).
Em todo caso, a questão central posta no trabalho de Graziela abre um debate ao qual não nos podemos furtar: vale a pena abrir mão dos direitos e das garantias fundamentais em nome do combate à criminalidade moderna e à criminalidade organizada? A resposta da Autora é taxativa, no sentido de que é preciso recuperar a real dimensão da tutela penal, o que implica, necessariamente, diz ela, a restauração dos valores constitucionais capazes de assegurar a eficácia dos bens e direitos fundamentais.
Limitados no apreço a valores e ao aprendizado do racional histórico, as gerações tecno-funcionais de operadores de Direito que chegam hoje ao lugar pragmático da mediação burocrático-instrumental do jurídico, não se dão conta da exigência auto-reflexiva que se impõe à inteligência propositiva de políticas legislativas e judiciais nativas do Direito Penal. Seguem a moda, o fascínio da opinião de conjuntura e ao chamado fácil de procedimentos mais afeiçoados ao espetáculo midiático que ao rigor da prudência objetiva do institucional ponderável.
O resultado são as proposições e as iniciativas que cedem aos aplausos e às expectativas impressionistas de formulações que mais respondem às opiniões que a lógica do razoável , para lembrar Recaséns Siches.
Ó que se percebe no rol de medidas contra a corrupção que setores juvenis do Ministério Público e suas alianças de superfície, tal como pus em relevo antes e o que se extrai do anteprojeto de lei anticrime que o Executivo Federal trouxe há pouco como resposta mítica ao quadro corrente de insegurança e de criminalidade, esta reduzida a um recorte que ocupa mais fortemente o imaginário social, no qual há pouco espaço solidário para admitir soluções humanizadoras para a questão da criminalidade, aceitando acriticamente sugestões que representem atender a expectativa sacrificial das sobras desvalidas do humano. Tratei disso nesta Coluna Lido para Você ao comentar o livro de Eduardo Lemos, (http://estadodedireito.com.br/21321-2/) O Pluralismo Jurídico na Omissão Estatal. O Direito Achado no Cárcere, chamando a atenção, no limite, tal como digo em outro texto que mesmo não sendo uma facção criminosa um movimento social, é fundamental afirmar: pertencendo ou não a organizações criminosas os presos, em sua condição de exclusão, conservam uma reserva inalienável de cidadania, que deve encontrar formas de reconhecimento e de exercício (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Negociar com Facção Criminosa?. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 91-92).
Natural que, imediatamente, as críticas que já se anunciavam em registros de enunciação em geral muito responsáveis, e de distintas procedências, logo se materializassem. No meu próprio campo de atuação civil – a Comissão de Justiça e Paz – também se desse essa mobilização adversativa. Isso é o que expressa a Nota Técnica, de cuja elaboração participei como membro da Comissão, que a CJP oferecesse ao debate, como um chamado à prudência, uma convocação para um debate mais qualificado e uma indicação de valores e requisitos técnicos instransponíveis no plano de uma sociedade verdadeiramente democrática, espaço para a institucionalização de um estado verdadeiramente de Direito.
Alguns pontos desse documento, cuja íntegra pode ser consultada na página WEB da CJP (http://www.comissaojusticaepazdf.org.br/anteprojeto-de-lei-anticrime-do-governo-federal-nota-tecnica-da-cjp-df/?fbclid=IwAR3eRYGFDpciKINDr5uCMj5sxhphnl5BS0I8s2tPzjhTgrMJNU1SCKnobCI ), merecem ser realçados:
A normativa enviada pelo Poder Executivo propõe alterar de maneira concisa 14 (quatorze) leis federais que tratam das matérias de direito penal e processual penal, sem antes estimular o necessário e plural debate com a sociedade civil, isto é, sem promover a discussão com os especialistas da área, nem obter a maturação do anteprojeto de lei em audiências públicas e seminários, firmando, dessa forma, um documento autocentrado e em descompasso com os predicados do Estado Democrático de Direito.
De pronto, salta aos olhos que um anteprojeto que causa significativas alterações ao ordenamento jurídico pátrio, anunciado oficialmente pela imprensa, em coletivas e entrevistas para os principais veículos de comunicação do país, sequer tenha sido acompanhado de uma exposição de motivos, para respaldar e esclarecer seu significado e justificativa, ou projetar seus impactos orçamentários e administrativos, bem explicitar os elementos técnicos, teóricos que norteiam tamanha inovação legislativa que, caso aprovada, transformará profundamente a vida da população brasileira.
Dentre a alteração de inúmeras legislações de longas jornadas de debate, o anteprojeto em discussão procura cambiar artigos do Código Penal de 1940. Ressalte-se que a última grande reforma no presente código foi realizada pela Lei 7.209/1984, em anteprojeto de redação de Nelson Hungria, cumprindo fazer menção à Comissão Revisora do projeto, na qual juristas do peso de Hélio Tornaghi, Roberto Lyra, Aníbal Bruno e Heleno Fragoso trabalharam incessantemente em uma legislação que foi contemporânea dos estudos científicos do direito penal, legislação que passou por seminários e debates contínuos entre sociedade civil e especialistas.
Cumpre salientar que a proposta ostenta um perfil assumidamente ultrapunitivista, a partir do endurecimento da legislação penal e da diminuição das garantias processuais dos réus, soluções essas que há tempos são demonstradas pela ciência penal como de apelo popular, porém inócuas para lidar com a complexidade dos conflitos sociais, mas com grande poder para inflar o sistema carcerário brasileiro já declarado pelo Supremo Tribunal Federal como padecedor de um “estado de coisas inconstitucional”.
Nesse sentido, o anteprojeto parte do pressuposto de que a lei controlará a sociedade, sem avaliar os reflexos secundários que as alterações legislativas terão no cotidiano da sociedade brasileira e no dia-a-dia da Justiça do país, e assim, no afã da punição desmedida, olvidando-se da misericórdia e da redenção, é dizer, do papel essencial de reinserção social das penas.
Pergunte-se: haverá justiça na sede de vingança?
Acrescente-se que o anteprojeto deixa transparecer a intenção de oficializar eventuais “lacunas” legislativas, que seriam preenchidas pela interpretação um tanto discricionária de agentes estatais, à margem da legislação pátria, naquilo que cientificamente se denomina ativismo judicial. Quanto ao ponto, chama à atenção a alteração legislativa que tende a esclarecer o que é, e quando pode ser utilizada a execução provisória da pena no Código de Processo Penal, algo que não tem qualquer disciplina no ordenamento jurídico pátrio, e tem sido aplicada por interpretação criativa dos magistrados brasileiros.
Não é distinto quando o anteprojeto procura oficializar convênios, acordos e compartilhamento de provas entre órgãos investigativos nacionais e estrangeiros, não exigindo qualquer previsão em tratado internacional assinado pelo Brasil com o ente conveniado ou qualquer formalização ou autenticação especial para o compartilhamento de tais informações.
As alterações propõem ainda a hipertrofia do Ministério Público, a partir da experiência anglo-saxônica do plea-bargaining, autorizando a proposição de acordos de não investigação ou mesmo de aplicação imediata da pena pelo Parquet aos acusados, a partir da confissão do delito pelo réu, o que ademais de fortalecer em demasia o órgão ministerial, potencializa a arbitrariedade da autoridade, uma vez que o acordo poderá (e não deverá!) ser oferecido. Não obstante, em um país de imensa desigualdade no acesso à justiça, tal proposta poderá transformar o instrumento em acordos forçados com réus fragilizados sem a devida assistência de seu defensor, servindo para, mais uma vez, favorecer os polos mais fortes da relação jurídica penal.
Quanto às suas decantadas impropriedades técnicas de redação, o texto cria novas excludentes de punição penal, a partir de expressões subjetivas como “medo” e “surpresa”, termos pouco técnicos e permeados de dubiedade, que empoderam a já hipertrofiada autoridade judiciária, possibilitando-a absolver ou condenar o cidadão em face da diferente experiência emocional vivenciada pelo magistrado.
No mesmo sentido, causa profunda preocupação que as excludentes do medo, surpresa e violenta emoção sirvam, para bem da verdade, como instrumentos que reforcem o preconceito e a perseguição de vulneráveis a partir da rotulação e da estigmatização social de raça/cor, orientação sexual, origem social, religião e gênero.
Ainda é importante mencionar que toda legislação criada no país deve estar de acordo com posições pacificadas nas cortes superiores e, por esse sentido, a melhor técnica desaconselha que temas em dissonância com decisões recorrentes, sumuladas e por muitas décadas assentadas, sejam apresentados como nova legislação, sob pena de gerar significativo conflito nos tribunais.
A despeito disso, a proposta estabelece o regime obrigatoriamente fechado em diversas situações, impondo o regime inicialmente fechado em outras e vedando as saídas temporárias aos aprisionados, o que se sabe, é vedado pela própria Constituição Federal, por violar o princípio da individualização das penas, consagrado no Art. 5º XLVI da CF, conforme também já decidido pelo STF.
No mesmo caminho, propõem-se ao estabelecimento prisional federal um sistema de execução penal típico do chamado Regime Disciplinar Diferenciado. Ocorre que o RDD possui atualmente um limite temporal (360 dias), e somente deve ser aplicado em caso de falta grave durante o cumprimento da pena, não havendo qualquer dispositivo legal que autorize o tratamento distinto para as pessoas encarceradas em prisão federal, o que também poderá acarretar tumulto às cortes brasileiras e tratamento desigual para cidadãos do mesmo país.
Como mencionado, a normativa elaborada pelo Governo Federal preza pela ambiguidade, dando significativa margem à interpretação do magistrado. É possível perceber esse padrão legislativo quanto ao endurecimento do crime de resistência que passa para penas de 6 (seis) a 30 (trinta) anos quando causar risco de morte à autoridade, novamente hiperinflando o poder dos agentes do Estado, que em regra tendem a reforçar o arbítrio estatal frente ao cidadão.
Por esse sentido, defendemos que a elaboração de uma melhor estratégia para o sistema penal brasileiro deve necessariamente passar por profundos debates com a sociedade civil organizada, com a Ordem dos Advogados do Brasil, com o Ministério Público, com a Defensoria Pública, com os diversos órgãos de representação da Magistratura e com a Academia, até que seja finalmente debatido no âmbito do Congresso Nacional, em comunhão de ideais e espaço equânime para deliberação de problemas, expectativas, anseios e frustrações. A participação dessas entidades em longo e profundo debate se faz fundante para que qualquer alteração legislativa seja verdadeiramente democrática.
Ao contrário da temperança e razão que se espera de um operador do direito, o ordenamento proposto segue na contramão do pensamento contemporâneo das ciências penais e é um sério agravante para um país que vive relevante crise econômica e significativos índices de encarceramento. Lamenta-se, pois, que a proposta seja omissa no enfrentamento do problema do encarceramento em massa, e não avance na discussão da adoção de penas e medidas alternativas para lidar com o conflito penal.
Ante o exposto, clamamos para que não se fechem os olhos para o avanço das pesquisas, para as experiências bem sucedidas de administração do sistema penal em outros países, fazendo-se necessário um olhar voltado, de um lado, para as garantias constitucionais do cidadão e, de outro, para o direito à segurança pública do indivíduo, sim, mas evitando sempre as falsas promessas de um certo pensamento obscuro e de apelo imediatista no campo penal, que apenas fortalece o despotismo e a tirania, promotores resilientes da violência e das injustiças em nosso país.
Forte na abordagem de um tema novo e excepcional, o livro de Graziela Palhares Torreão Braz, que desde lá atrás, soube se fixar como mastro para a proteção de Ulisses em face de cânticos de sereias, é ainda, muito próximo dos enunciados nesta Nota Técnica da CJP-DF, instigante por saber combinar questões candentes da dogmática penal sem abdicar de sua inserção no âmbito criminológico da sociologia do delito e da teoria dos direitos fundamentais.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil , Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua. |