A Universidade Interrompida: Brasília 1964-1965

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

 

A Universidade Interrompida: Brasília 1964-1965, de Roberto A. Salmeron. Brasília: Editora UnB, 2ª Edição Comemorativa dos 50 Anos da UnB, 2012. 490 p.

 

 

             A reedição desta obra de Roberto A. Salmeron reúne três circunstâncias especialmente felizes. A primeira delas é que a publicação de A Universidade Interrompida: Brasília 1964-1965 pela Editora Universidade de Brasília assegura aos leitores e estudiosos da educação brasileira a disponibilidade de uma obra de referência que, tão logo foi lançada originalmente, em 1998, definiu-se como bibliografia indispensável e fonte de consulta permanente sobre o tema que aborda.

            Tamanha relevância é, com efeito, fruto da autenticidade da participação do autor como pioneiro na implantação da UnB. Roberto Salmeron figura entre os destacados pesquisadores brasileiros que acudiram à convocação de Darcy Ribeiro para instalar na nova capital do Brasil a sua universidade necessária. Quando assume o encargo de coordenador-geral dos Institutos Centrais de Ciências e Tecnologia, promove uma recuperação histórica dos antecedentes políticos e conceituais da formulação do projeto da UnB, das ações que orientaram a etapa inicial de construção do campus e, por fim, da violência que se abateu sobre a instituição com o golpe militar, caracterizando-a como uma universidade interrompida.

             O livro está dividido, assim, em duas partes. A parte 1 concentra-se na reconstrução da memória sobre a UnB, tratando dos acontecimentos que cercam a sua fundação e da crônica dos fatos que caracterizam as bases conceituais e políticas da proposta da nova universidade. Além disso, a localiza no ensaio de tentativas de institucionalização universitária no país, detalhando a operacionalização da instalação do projeto, os protagonismos, os sentimentos e, sobretudo, a solidariedade para defrontar e superar os desafios próprios àquela experiência.

            A parte 2 trata, por sua vez, da crise e da violência com que o golpe se impôs sobre a universidade, intimidando alunos e professores, desorganizando-a, reprimindo seu poder criativo e ferindo antagonistas.

            Ambas as seções são cuidadosamente documentadas e pode-se observar a delicadeza do trabalho de Roberto Salmeron na conservação de depoimentos e dados históricos, alinhavados pelo fio condutor de uma narrativa sóbria, elegante e contundente.

                  A Universidade Interrompida, sob este aspecto, integra a antologia explicativa de criação da UnB, sua promessa utópica, as vicissitudes que sofreu, seu começo e seus permanentes recomeços. O livro tem lugar cativo na mesma estante na qual se classificam outras preciosidades, como os títulos de Darcy Ribeiro: Universidade de Brasília, editado em 1962 e reeditado pela UnB em 2011 para celebrar o cinqüentenário da lei de criação, apresentando o projeto de organização, a lei de criação e pronunciamentos de educadores e cientistas sobre a proposta da nova universidade; A Universidade Necessária, de 1969; e UnB: Invenção e Descaminho, de 1978. Além destes, é igualmente indispensável referir à obra de Heron Alencar, A Universidade de Brasília. Projeto Nacional da Intelectualidade Brasileira, resultado de uma comunicação apresentada à Assembléia Mundial de Educação, no México de 1964, e publicada por Darcy Ribeiro em apêndice ao seu Universidade Necessária. Também Antônio Luiz Machado Neto, coordenador do Instituto Central de Ciências Humanas neste mesmo período de 1962-1965 e inspirado pelo mesmo tema, publica na antiga Revista da Civilização Brasileira o ensaio A Ex-Universidade de Brasília.

           A segunda circunstância de distinção da nova edição de A Universidade Interrompida: Brasília 1964-1965, decorre de que seu lançamento venha de encontro à  agenda do debate atual no Brasil sobre o resgate da memória da repressão política que se desencadeou no país e que alcança o período e os fatos narrados no livro.

 

Foto: Pixabay

 

          A instalação neste ano de 2012 da Comissão da Verdade, prevista na Conferência Nacional de Direitos Humanos realizada em dezembro de 2008 e desenhada pelas diretrizes do Programa Nacional de Direitos Humanos 3, inseriu o Brasil na boa direção do direito internacional dos direitos humanos de modo a atender a orientação expressa em decisões de tribunais internacionais que indicam a necessidade de concluir o processo de democratização com a verdade sobre os fatos, de modo a evitar repetições de ciclos de violência.

 A Comissão instalada no Brasil pela Presidenta da República teve dois anos para elaborar seu relatório (http://www.memoriasreveladas.gov.br/administrator/components/com_simplefilemanager/uploads/CNV/relat%C3%B3rio%20cnv%20volume_1_digital.pdf). Foi um curto espaço de tempo mas que deu conta de todas as violações e da abrangência das situações ocorridas no período do regime ditatorial. Conforme disseram seus membros, nas epígrafes do primeiro volume do trabalho apresentado:

Os dezoito capítulos deste primeiro volume foram concebidos com o objetivo de atender de forma estrita os propósitos definidos para a Comissão, sendo subscritos coletivamente pelos conselheiros. Priorizamos enfoque calcado na descrição dos fatos relativos às graves violações de direitos humanos do período investigado, com especial atenção ao regime ditatorial que se prolongou de 1964 a 1985. Evitamos aproximações de caráter analítico, convencidos de que a apresentação da realidade fática, por si, na sua absoluta crueza, se impõe como instrumento hábil para a efetivação do direito à memória e à verdade histórica”. No conjunto, compondo um impressionante acervo para qualificar a documentação que resgata a história desse período dramático em nosso, agora disponível para consultas e pesquisas, o essencial, dizem os seus autores, é que “o resultado do trabalho, realize o firme desejo de que os fatos descritos nunca mais venham a se repetir”.

 

         Por isso, foi tão importante a criação de uma Comissão da Verdade da Universidade de Brasília (Comissão Anísio Teixeira de memória e Verdade da Universidade de Brasília). A exemplo do que já começa a ocorrer em outros âmbitos institucionais, uma comissão com esse objetivo na UnB contribuiu e certamente continuará a contribuir para investigar a repressão que se derramou sobre seus professores e estudantes. Na medida em que as próprias instituições recuperem sua história, colaborarão para a concretização da justiça transicional que admite sim reconciliação, mas implica necessariamente processar os perpetradores dos crimes, revelar a verdade sobre fatos, conceder reparações às vítimas e reformar as instituições responsáveis pelos abusos.

         O livro de Roberto Salmeron foi, em si, um achado para documentar essa dimensão da história da UnB e para recolocá-la no eixo da memória e da verdade, porque como se pode ver de seu relatório que, ao que sei, em breve receberá uma publicação com o selo da Editora da UnB, (http://www.comissaoverdade.unb.br/images/docs/Relatorio_Comissao_da_Verdade.pdf). No melhor sentido conceitual de justiça de transição (https://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf, é nítida percepção, à luz do Relatório,  de que o autoritarismo erigiu como alvo, não apenas as pessoas e seus projetos de vida, mas o próprio projeto universitário inscrito na proposta de criação da UnB, vale dizer, o projeto histórico-social-universitário (http://estadodedireito.com.br/universidade-de-brasilia-projeto-de-organizacao-pronunciamento-de-educadores-e-cientistas/).

 

Agência Brasil, Marcello Casal Jr.

         Por fim, a terceira circunstância que marcou esta nova edição de A Universidade Interrompida: Brasília 1964-1965 foi a oportunidade de inscrever a obra no catálogo das celebrações do cinqüentenário da UnB. O simbolismo desta celebração a Roberto Salmeron no ano de jubileu da universidade nos remete à grandeza originária da UnB, cuja força utópica do projeto que assinala sua criação atravessou gerações e ultrapassou sucessivas interrupções em seu curso. A presente reedição não é apenas uma repetição ou reapresentação do mesmo mas, antes, um convite ao resgate da proposta emancipatória que conduziu à fundação da UnB, de modo a melhor orientar suas possibilidades atuais.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

 

                                   

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