Jorge Barcellos – Historiador, Mestre e Doutor em Educação /UFRGS. Chefe da Ação Educativa da Câmara Municipal de Porto Alegre
O caso de adolescentes que participaram do estupro coletivo de quatro meninas no Piauí (Veja, 13/6) reacende no campo do direito as discussões que levaram a aprovação da maioridade penal pelo Congresso Nacional. As discussões sobre o caso percorreram os meandros da trajetória dos jovens, seus antecedentes criminais, as falhas do estado, etc, mas não chegaram, até onde este articulista pode acompanhar, a considerar um elemento importante do imaginário fetichista adolescente: a pornografia, que para o pesquisador Robim Morgan, equivale a teoria do que o estupro é a prática. Em outro texto, intitulado “Porque a pornografia importa para as feministas”, a estudiosa feminista Andrea Dworkin elencou as diversas razões que fazem, no imaginário adolescente, da pornografia ser um orientador da ação e que podem ser resumidas na afirmação de que na pornografia, “as mulheres desejam serem estupradas”. Quer dizer, em nosso entendimento, um dos pontos de análise para explicar a violência sexual contra mulheres passa pelo entendimento do papel que tem a pornografia no universo adolescente.
Vejamos em que ponto situa-se o debate em relação ao tema. Alfredo Jeruzalinsky em seu artigo do Suplemento PROA intitulado “O que os catálogos de pornografia online dizem sobre a sexualidade contemporânea” (disponível em http://migre.me/qFH2n) publicado em Jornal Zero Hora ofereceu uma visão interessante sobre o universo da pornografia que é um auxiliar aos operadores de direito no entendimento das causas da violência sexual protagonizada por adolescentes. Para ele há uma tipologia nos sites pornôs extensa e variada, onde inclui-se as categorias mais grotescas que incorporam a violência no campo da sexualidade. Claro que, daí partir para uma categorização a partir de pressupostos exclusivos da psicanalise é de longe, limitar a questão. Porque não se trata apenas de “fantasias inconscientes”, dos significados simbólicos associados a determinados tipos de mulher, da “aura” ou qualquer coisa do gênero que está em questão no pornô, ainda que o esforço do autor em apontar para a questão do poder e da organização da sociedade seja de longe, o caminho mais fecundo para sua compreensão do como fenômeno deste século. Quer dizer, é o próprio paradigma a do olhar usado para analisar o pornô que deve ser colocado em questão. Se concordamos que o acesso a pornografia é uma das causas – nem de longe, é claro, única – que incentiva a violência adolescente, concordamos com sua consequência: num universo perverso como o pornô, a possibilidade de passar da fantasia à realidade é o problema, a da violência das telas passar para o mundo real. Não foi exatamente o que ocorreu com o ex-padre João Marcos Maciel, o Dom Marcos de Santa Helena, preso pela Policia na Operação Silêncio dos Inocentes por suspeita de violentar adolescentes? Ao vermos o pornô, a pergunta que surge é outra: o que realmente estamos fazendo do erotismo?
As categorias que o psicanalista escolheu para organizar o imaginário pornô – discurso do amo e escravo, subordinação da mulher, etc, são figuras batidas na análise do tema. Mas o autor acerta o ponto: é do Outro e de uma fantasia de poder que se trata, mas exatamente como? Não se trata de transformar os corpos em bonecos sexuais via internet, o pornô revela uma transformação de outra natureza que precisa ser elucidada. O que quer dizer exatamente pornográfico? Na expressão existe o grego pornê, “prostituta” e graphe, “escrito”. “Prostituir” vem do latim, prostituire que significa “expor em público”. Jerusalinsky fica neste nível de definição e perde, por esta razão, a oportunidade de aprofundar o tema, já que a investigação etimológica maior mostra que a palavra vem do verbo pernémi que remete a tudo o que diz respeito a compra e venda de mercadorias em geral e de indivíduos, em particular. Quer dizer, as verdadeiras atividades que podem ser consideradas pornográficas são as de compra e venda. Daí uma reviravolta.
A pornografia fala é do mundo dos negócios, eis a questão. Claro que não são todas as atividades comerciais que são pornográficas porque o critério é que elas respeitem o principio da dignidade formulado por Kant: tudo pode ser comprado, exceto o que é digno. No momento em que tudo pode ser comprado, o amor, homens e mulheres, exatamente como sugere o pornô, estamos naquilo que os gregos chamam de pleonexia, a vontade de possuir sempre mais e que constitui a base do Liberalismo de Adam Smith com o nome de self-love, o “egoismo”. Não é a toa que nos textos greco-latinos, a pleonexia está diretamente relacionada a porneia, conotação sexual relativa ao mundo da avidez, da akaqarsia, o obsceno, o impuro. Quer dizer, o que o estudo do fenômeno pornô evoca não são nossos supostos desejos sexuais ocultos –e eles existem sim, é claro – mas é a própria caracteristica fundamental do liberalismo de nossa época que se expressa pelo pornô, o excesso, onde os individuos são compelidos a obedecer a um mandamento supremo: goze”. O pornô é o espelho de nosso mundo hiperburguês, expõe seu gozo excessivo, e portanto, obsceno, ao consumidor proletarizado, que só pode consumir até onde seus recursos alcançam.
Em si, o pornô é uma trapaça “de que somos ao mesmo tempo os autores cegos e as vitimas”, diz Alain Finkielkraut & Pascal Bruckner, em A Nova Desordem Amorosa. Os autores partem do ponto de onde Jeruzalinsky termina: o mundo fictício do pornô é apenas a porta de entrada, e se há um ponto que precisa ser aprofundado, não é o da organização interna do pornô que sua tipologia quer mostrar, mas da sua relação externa, o que produz em seu público. No pornô, nenhuma outra instância exterior à sexualidade consagra os enlances, o envolvimento, tudo é transformado em equivalente, exatamente como no mercado. Não se trata de uma lógica de preferências por tipos, é outro seu sentido, a fragmentação enumerada é a forma de caçar seu cliente, uma forma de publicidade e por essa razão, funciona sempre por excesso. Cada rol de um site pornô oferece milhares de fragmentos de filmes a exaustão porque sua receita é colocar um limite entre aquilo que o cliente viu e dar-lhe um desejo irresistível de ultrapassar esse limite para ver o que se oculta no próximo filme ao alcance de um clic. A enganação de que fala Bruckner & Finkielkraut é de que a “falta de gozo” do cliente é transformada num “falta a ser visto”. O problema é desta forma que pornô impõe ao seu observador uma disciplina de impulsos baseados na linguagem da intensificação, a obediência do desejo ao olhar é o que provoca o divórcio entre a sexualidade ativa e contemplação da sexualidade. Quer dizer, o verdadeiro significado do pornô é o de ser uma estratégia de aniquilação da sexualidade.
O pornô é o contrário do Eros, ele aniquila a sexualidade “o obsceno no pornô não consiste em um excesso de sexo, se não que ali não há sexo”(Byung-Chul Han). O que a pornografia faz é ser uma ameaça a sexualidade, uma profanação do erotismo (Giorgio Agambem). De uma figura à outra, da sedução ao amor, do desejo à sexualidade, e desta finalmente ao puro pornô, quanto mais se avança neste espectro, mais adentramos num campo de sentido menor, de um secreto menor, de um enigma menor (Jean Baudrillard). O elemento ausente do texto de Jerusalinsky é que a exposição do corpo feita pelo pornô aniquila toda a possibilidade de comunicação erótica. O capitalismo intensifica o progresso do pornô na sociedade porque não conhece outro uso para a sexualidade que não seja a expor como mercadoria. Isso dessacraliza a dimensão do Eros, retira sua dimensão ritual: se o amor passar a ser somente calor e excitação, será então o fim da sedução erótica. O pornô é a desritualização do amor.
Mas há mais. O pornô não é um discurso sobre a sexualidade e o objeto do desejo: ele é um princípio de organização social. Depois dos regimes fascistas e do estalinismo, é agora o liberalismo que está se tornando um regime pornográfico. O novo contrato social sepulta o sujeito kantiano e freudiano: Jerusalinsky está certo em apontar o discurso pós-moderno do imperativo do gozo, mas o que conta é o apelo do pornô à liberdade sexual e a realização de todas as fantasias. Quer dizer, a onda pornô é outra linha da expansão do neoliberalismo cujo objetivo é promover nossos impulsos narcisistas para transformar a intimidade em mercadoria. Não há sentido na criação de um catálogo se sua estratégia é o uso de imagens transparentes, isto é, liberadas de toda dramaturgia, coreografia e profundidade. É por serem sem sentido que se tornam pornográficas: a pornografia é o contato imediato entre imagem e olho (Han). Como no mercado, onde as coisas se tornam transparentes quando se despojam de sua singularidade, também o sexo se torna transparente quando tudo se faz comparável com tudo, suprimindo qualquer singularidade. O segredo do capitalismo é que ele quer fazer desaparecer a experiência erótica. Ele quer fazer desaparecer o Outro – de que fala Jerusalinsky sim, mas não no sentido dado por ele. O Outro não é um sujeito, homem ou mulher, é o próprio Eros.
A forma mercadoria impõe a cada sujeito que avalie seu valor de exposição. Já vivemos numa sociedade pornográfica sem nos darmos conta, com nossos Facebook e Photoshop. Acaso não foi Andressa Urich vitima dessa obsessão pela imagem de exposição? Que, como diz Baudrillard, em seu excesso, exatamente como no porno, faz de todos uma mercadoria entregue, desnuda e sem segredo para devoração imediata. Mas o problema é que não é possivel habitar o que precisamos expor. Expor o sexo é explora-lo, elevar o capital da atenção e ao contrário, para recuperar o sentido de Eros, é preciso a negatividade do oculto, do inacessível e do misterioso. Para o capital, o invisivel não existe, não rende, não tem valor.
Frente a avassaladora conquista da subjetividade pelo pornô, precisamos manter Eros vivo. Como se sabe, Eros, segundo Platão, dirige a alma e tem poder sobre todas as suas partes: o desejo (epithymia), a coragem (thymnos) e a razão (logos). Cada parte da alma tem sua própria experiência de prazer e interpreta o belo, mas quando é o desejo (epithymia) que domina a experiência de prazer da alma, como quer o pornô, tudo está perdido. Diz Chan em A Agonia de Eros: “O neoliberalismo leva a cabo uma despolitização da sociedade e nela desempenha uma função importante a substituição de Eros pela sexualidade e pornografia.”(p.67). Quer dizer, a expansão do pornô é uma estratégia politica de declínio de Eros cujo objetivo é submeter a esta força vital ao Capital. Eros é superior ao desejo, a coragem e a razão porque suscita tais forças a produzirem boas ações. Sem Eros, não há mais decoro, distância, e tato, exatamente as formas que temos de expressar a nossa afeição. Sem Eros não há o desejo de romper com o status quo politico estabelecido e a razão se torna um cálculo dirigido por dados sem capacidade de previsão, de imaginação. Ao nos tornar narcisistas ao extremo pelo sexo, o Capital sonha em nos transformar em perfeitos consumidores: o pornô é apenas outra face da transformação de tudo em mercadoria.
Por isso contra o êxtase pornô, somente o retorno da ideia surrealista do amor como gesto artístico, existencial e politico, a retomada de Eros como força universal, fonte energética de renovação. A ideia de fantasia, tal como proposta pelos psicanalistas deve ser redefinida em suas relações com a cultura de consumo e o desejo: a fantasia e o pornô são forças opostas, não há nenhuma fantasia no espaço definido do pornô porque a fantasia erótica habita os espaços indefinidos e a construção do Outro, seja homem ou mulher, passa pela capacidade que temos de nos manter em condições de idealiza-lo. Como amar a diferença do Outro quando somos incentivados pelo pornô a ser iguais em tudo no sexo?
Os jovens estão consumindo pornografia. Mas sem conhecer os significados dos efeitos do pornô em suas existências, a possibilidade de que seu consumo seja um incentivo a prática de crimes como o estupro é real. Por esta razão, politicas educativas que discutam sua organização simbólica são bem vindas, assim como a punição de jovens que praticaram estupros deve ser acompanhada de programas de conscientização apoiados por psicanalistas. O campo é bastante complexo e exige o estudo de estratégias de recuperação particulares, eis a questão.