Vivemos em um Estado Constitucional. Afinal, o que isso significa?

           

 

           O Brasil vive, do ponto de vista político-normativo, em um Estado Constitucional. Isso significa muito mais do que identificar que o país vive sob a égide de uma Constituição. Significa indicar uma assimilação democrática pelo constitucionalismo e marcar a passagem do Estado de Direito para o Estado Democrático (Estado Constitucional).

            Nesse sentido, é sabido que o constitucionalismo, em especial o constitucionalismo moderno, nasce liberal. Embora no movimento liberal-burguês se verifique conteúdos relativos à democracia formal, como participação e soberania popular, ele não nasce democrático. Tais conteúdos diziam respeito apenas às “regras do jogo democrático”, inclusive, restritos a apenas parte da população. Não se tratava de conteúdos extensíveis a toda a sociedade, consubstanciando em uma democracia formal, que pregava igualdade (e liberdade) entre iguais.

            Assim, à medida que os regimes democráticos se consolidavam pelo mundo, assuntos atinentes às regras do jogo democrático encontravam acento nas constituições, tais quais o modo de participação popular no poder. Cumpre assinalar que os modelos de democracias estabelecidos no século XIX, denominadas democracias modernas, em nada guardam relação com a democracia antiga, como a democracia grega. Igualmente, relembra que nos movimentos revolucionários do século XVIII, a democracia era um ideal quase contraposto à república, sendo, quando não um ideário secundário, malvista.

            Após as duas grandes guerras, no século XX, há uma mudança de assimilação democrática pelo constitucionalismo, em especial, pela passagem do Estado de Direito para o Estado Democrático de Direito, que traduz a ideia de que a democracia deixa de se resumir a um regime político e é, agora, assimilada pelo Estado e pela Constituição. Se antes, no constitucionalismo liberal e social (Estado de Direito), o Direito apresentava-se como fenômeno de adaptação, agora, fundado fortemente na ideia de igualdade, passa a ser de transformação social, apto a promover mudanças no status quo. Nesse sentido, o que se verifica, conforme bem apontado pelos professores Lenio Streck e José Bolzan de Moraes, é a incorporação efetiva da questão da igualdade como um conteúdo próprio a ser buscado garantir através do asseguramento jurídico de condições mínimas de vida ao cidadão e à comunidade. [1]

Desse modo, o Estado Constitucional é vinculado à ideia democrática, que coloca o Estado e a Constituição comprometidos à transformação da vida social. É um Estado político, com comprometimento democrático, e não apolítico, como a concepção do Estado de Direto. E democracia aqui representa um conteúdo substancial, que condicionada, fundamenta e legitima toda ordem e atuação estatal, configurando um princípio, logo, normativo.

            Luigi Ferrajoli aponta este momento (pós-guerra) como segunda revolução institucional [2] e Jacques Chevalier, ainda que por uma abordagem diferente, aponta que o Estado de Direito passa a ser não apenas um dispositivo técnico de limitação de poder, mas impõe conteúdos substanciais a limitá-lo, de modo que as liberdades públicas, a democracia e o papel do Estado constituem fundamento subjacente da ordem jurídica [3].

            O Estado Constitucional, para Canotilho, é mais do que o Estado de Direito, de modo que o elemento democrático não apenas limita o poder em sentido formal, mas também o legitima. Assim, é possível falar em uma simbiose entre Estado de Direito e Democracia [4]. O caráter democrático conduz a dizer que o Estado, bem como o Direito, estão voltados para o povo, atendendo ao princípio da igualdade, valor, em tal sentido, trazido pelo constitucionalismo democrático.

            E é nesse sentido que a ideia de democracia substancial pode ser verificada, não sendo reduzida a procedimentos ou instituição, mas transforma o Estado a corresponder aos interesses dos dominados. Assim, Alain Touraine destaca que pensar em democracia, remete a distribuição de direitos em nome da igualdade política e não distribuição aos mesmos cidadãos, mas também para compensar as desigualdades sociais, agindo contra uma ordem desigual que o próprio Estado faz parte [5].

            Nesse ponto, percebe-se que Estado Constitucional, Democracia e direitos fundamentais estão intimamente implicados. A efetivação de direitos encontra-se intrinsicamente assimilada à ideia de realização democrática, bem como efetivação da própria Constituição. Os direitos fundamentais se consubstanciam em fragmentos de soberania popular [6], de modo que a realização dos direitos fundamentais corresponde a própria realização democrática. Assim, a democracia em um país pode ser medida pela eficácia da Constituição, sendo, o Estado e a sociedade, mais democráticos, na medida que realizem direitos fundamentais, ou seja, na medida em que torne eficazes tais direitos na sociedade. Portanto direitos fundamentais – ou eficácia da Constituição – estão em íntima correlação.

            Diante das ideias expostas, aponta-se também, a partir da concepção democrática lançada, que democracia se encontra desvinculada à vontade da maioria, inclusive, por vezes, contrária a ela. São as decisões ou conteúdos contramajoritários, aos quais os direitos fundamentais são manifestação. Significa dizer que as decisões tomadas dentro da forma democrática e em nome da maioria não conduzem, necessariamente, à democracia. Os direitos fundamentais são direitos de todos e de cada um, não podendo ser suprimidos pela maioria [7]. São eles expressão da própria soberania popular (ou “fragmentos dela”). A democracia constitucional é entendida como um sistema de limites e vínculos substanciais (direitos fundamentais), que exige o respeito desses conteúdos como cumprimento e extensão democrática.

            Portanto, falar em Estado Constitucional significa falar em democracia, em especial, pelo sentido substancial. Democracia tida agora como valor, normativo, a informar, condicionar e legitimar a atuação do Estado. Ademais, os direitos fundamentais consubstanciam expressão democrática, de modo que não há que se falar em democracia distante da discussão de efetividade de direitos, alheio à Constituição. Não há caminho democrático, no Brasil, fora da Constituição de 1988.

[1] STRECK, Lenio Luiz, e MORAIS, Jose Luis Bolsan de Morais. Ciência Política e Teoria do Estado. 8a ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 104.

[2] FERRAJOLI, Luigi. La Democracia a Través de los Derechos: El constitucionalismo garantista como modelo teórico y como projecto político. Trad. Andrés Ibáñez. Madrid: Editorial Trotta, 2014, p. 19.

[3] CHEVALLIER, Jacques. O Estado de Direito. Trad. Antônio A. F. Dal Pozzo e Augusto N. Dal Pozzo. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 60.

[4] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6 ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 93.

[5] TOURAINE, Alain. O que é a Democracia? Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 37.

[6] FERRAJOLI, Luigi. La Democracia a Través de los Derechos: El constitucionalismo garantista como modelo teórico y como projecto político. Trad. Andrés Ibáñez. Madrid: Editorial Trotta, 2014, p. 79.

[7] FERRAJOLI, Luigi. La Democracia a Través de los Derechos: El constitucionalismo garantista como modelo teórico y como projecto político. Trad. Andrés Ibáñez. Madrid: Editorial Trotta, 2014, p. 80.

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Jessica Fachin

Em Estágio Pós-Doutoral (UnB). Doutora em Direito Constitucional (PUCSP). Mestre em Ciência Jurídica (UENP). Graduada em Direito (PUCPR) e Licenciada em Letras (UEL). Professora Substituta na Universidade de Brasília (UnB) e professora Permanente no Programa de Mestrado em "Direito, Sociedade e Tecnologias" das Faculdades Londrina. Membro do IAB - Instituto dos Advogados Brasileiros. Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB/SP. Advogada.

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