Coluna Direito da Família e Direito Sucessório
- Renata Vilas-Bôas
A Lei Maria da Penha ingressou em nosso ordenamento jurídico em 2006, e veio para criar mecanismos que visam coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. E desde a sua entrada em vigor, os seus conceitos foram vistos e revistos, com inclusão de alterações legislativas e diversas interpretações judiciais.
No meu entender o primeiro grande passo foi reconhecer as diversas espécies de violência que podem ocorrer nesse ambiente. Assim, o art. 7o que apresentou expressamente 5 espécies de violência, exemplificando, porém sem excluir outras possibilidades, vejamos:
I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; (Redação dada pela Lei nº 13.772, de 2018)
III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
Se antes só se compreendia a violência na forma física, agora, entende-se a violência sobre outras formas também.
Além de conceituar, algumas espécies de violência doméstica e familiar, a Lei Maria da Penha, ainda apresenta outros conceitos, o que é relevante para entender o conceito de violência doméstica e familiar.
Mas, o que a lei não traz escrito e que contudo podemos perceber, é que essa violência ocorre no espaço e com pessoas, que em tese ela deveria estar mais segura.
É na casa da gente em que temos que ter segurança, tranquilidade para que possamos descansar e sonhar. Contudo, para algumas pessoas esse passou a ser o pior espaço que existe, pois diante da violência constante, esse é o último lugar em que a pessoa deseja estar.
Os dados tem mostrado que há um maior número de denúncias de casos envolvendo a Lei Maria da Penha, mas o que efetivamente assusta é que esses dados não refletem a realidade, pois muitas mulheres, ainda não encontram forças para lutar contra essa violência, e querem acreditar que ela vai desaparecer.
Além disso, muitas acreditam que são elas as culpadas e que por isso, se elas deixarem de fazer algo que está desagradando X, esse ciclo se interrompe. Mero engano, tal não irá acontecer, porque quem está agindo errado é o agressor.
Outro mito é que o agressor é bom pai, e que por isso vale a pena permanecer com ele. Infelizmente isso também é um mito. Na realidade, com isso, acaba ensinando para as filhas, como aceitar a violência e para os filhos, como praticá-la. E não adianta – falar em segredo com o filho ou a filha, que não deve ser assim, pois não é esse o exemplo que tem dentro de casa. E nenhum filho quer que a mãe se sacrifique dessa forma.
Imaginemos uma situação hipotética:
A moça é criada dentro de uma família em que presencia a mãe sofrendo com a violência física, psicológica, dentre outras. Essa moça olha para o lado e vê que a tia, irmã da mãe, também passa por isso. E vê que a avó também passa por isso. Dentro dessa visão, isso passa a ser considerado “normal”. Assim, essa moça quando começar um relacionamento afetivo, vai entender que é “normal” sofrer essa espécie de violência, e acha que isso faz parte do relacionamento e mais tarde do próprio casamento.
E como quebrar esse círculo, se as pessoas que poderiam ajudar também estão em sofrimento e não conseguem perceber que isso é uma violência ?
A percepção de que se trata de uma violência, às vezes, vem de fora, quando conhece alguém que não sofre essa violência, que não passa por isso que as pessoas de sua família passam. Mas, até mesmo conhecer outras pessoas é difícil, pois precisam se conectar com outras pessoas e, diante de tamanho sofrimento e dor por qual passam, buscam esconder o que acontece e com isso, acabam tenho, quando muito, amizades superficiais.
Essa violência também impacta nas relações formais de emprego, pois, se conseguem trabalhar, do ponto de vista de serem “autorizadas”, não conseguem avançar na carreira, ora porque não conseguem se concentrar no trabalho e com isso se destacar para alcançar os postos mais cobiçados. Ora porque encontram-se sempre em estado enfermo – refletindo na saúde (dores de cabeça, dores nas costas, dentre outros), de sorte que não conseguem dar o seu máximo naquele emprego. E isso, para aquelas que conseguem trabalhar.
A Lei Maria da Penha sozinha não consegue reverter esse quadro, é preciso MUITO MAIS.
É preciso conscientização da violência, é preciso amparo aquelas mulheres que sofrem esse tipo de violência em todas as searas e com isso fiquei muito feliz, quando do julgamento do RESP 1.757.775 da Sexta Turma do Egrégio Superior Tribunal de Justiça que nesse julgado entendeu que o caso ocorra o afastamento do serviço por até seis meses em decorrência da violência doméstica e familiar, que esse afastamento tem natureza jurídica de interrupção do contrato de trabalho, e por isso incide, de forma analógica, o auxílio-doença, e com isso a empresa deverá ser responsável para arcar com o pagamento dos 15 primeiros dias, ficando o restante no período a cargo do INSS.
A decisão a que estamos nos referindo ganhou a ementa abaixo, vejamos:
RECURSO ESPECIAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. MEDIDA PROTETIVA. AFASTAMENTO DO EMPREGO. MANUTENÇÃO DO VÍNCULO TRABALHISTA. COMPETÊNCIA. VARA ESPECIALIZADA. VARA CRIMINAL. NATUREZA JURÍDICA DO AFASTAMENTO. INTERRUPÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO. PAGAMENTO. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. PREVISÃO LEGAL. INEXISTÊNCIA. FALTA JUSTIFICADA. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO. AUXÍLIO DOENÇA. INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. RECURSO ESPECIAL PROVIDO PARCIALMENTE.
1.Tem competência o juiz da vara especializada em violência doméstica e familiar ou, caso não haja na localidade o juízo criminal, para apreciar pedido de imposição de medida protetiva de manutenção de vínculo trabalhista, por até seis meses, em razão de afastamento do trabalho de ofendida decorrente de violência doméstica e familiar, uma vez que o motivo do afastamento não advém de relação de trabalho, mas de situação emergencial que visa garantir a integridade física, psicológica e patrimonial da mulher.
2. Tem direito ao recebimento de salário a vítima de violência doméstica e familiar que teve como medida protetiva imposta ao empregador a manutenção de vínculo trabalhista em decorrência de afastamento do emprego por situação de violência doméstica e familiar, ante o fato de a natureza jurídica do afastamento ser a interrupção do contrato de trabalho, por meio de interpretação teleológica da Lei n. 11.340/2006.
3. Incide o auxílio-doença, diante da falta de previsão legal, referente ao período de afastamento do trabalho, quando reconhecida ser decorrente de violência doméstica e familiar, pois tal situação advém da ofensa à integridade física e psicológica da mulher e deve ser equiparada aos casos de doença da segurada, por meio de interpretação extensiva da Lei Maria da Penha.
4. Cabe ao empregador o pagamento dos quinze primeiros dias de afastamento da empregada vítima de violência doméstica e familiar e fica a cargo do INSS o pagamento do restante do período de afastamento estabelecido pelo juiz, com necessidade de apresentação de atestado que confirme estar a ofendida incapacitada para o trabalho e desde que haja aprovação do afastamento pela perícia do INSS, por incidência do auxílio-doença, aplicado ao caso por meio de interpretação analógica.
5. Recurso especial parcialmente provido, para a fim de declarar competente o Juízo da 2ª Vara Criminal de Marília-SP, que fixou as medidas protetivas a favor da ora recorrente, para apreciação do pedido retroativo de reconhecimento do afastamento de trabalho decorrente de violência doméstica, nos termos do voto.
(REsp 1757775/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 20/08/2019, DJe 02/09/2019) (grifo nosso).