O que a morte de jovens nas periferias nos revela
“Viver na Favela é viver em linha de risco direto, é você ser alvo voluntário, um alvo constante. ”
MACHADO, Luiz Antônio, 2008:56.
Na tarde de 9 de agosto de 2014, após receber um chamado de ocorrência de furto na cidade de Ferguson, localizada na periferia de St. Louis, nos Estados Unidos, um oficial da polícia abordou o jovem negro Michael Brown, de 18 anos, que caminhava ao lado de um amigo. Minutos depois, Brown estava morto, vítima de seis tiros disparados pelo oficial.
Na manhã do dia 4 de abril de 2016, um grupo de policiais com um mandato de prisão adentram a Favela de Acari, localizada em uma das áreas mais pobres da cidade do Rio de Janeiro. Algumas horas depois, cinco jovens estavam mortos e o mandato de prisão, objeto inicial da ação, não foi cumprido, pois o indivíduo que deveria ser conduzido não foi encontrado. Os dois fatos, aparentemente dissociados, uma vez que ocorreram em realidades espacialmente distantes e socialmente dispares, são retratos de um cotidiano de violência policial que se multiplica nas periferias das grandes cidades.
Vivenciamos uma retomada do controle dos corpos. Não obstante, as estruturas disciplinares do presente não se assentam mais no controle do corpo dos indivíduos. Em nossos dias, a disciplinarização passa pelo controle dos corpos coletivizados, dos indivíduos em grupos e territorializados. Giorgio Agamben (2004 e 2002) ilustra este processo, ao afirmar que o cárcere, estrutura física que simbolizou a apartação disciplinar, não representa mais o elemento norteador de nosso tempo, o campo, cujos exemplos mais significativos envolvem os campos de concentração alemães da II Guerra Mundial, tornou-se o elemento balizador da vida política.
Integrados pela exceção
Os campos de concentração alemães não representavam territórios situados fora do ordenamento jurídico. Não se tratavam de territórios alijados da atuação estatal, eles se integravam, pela exceção, ao conjunto de estruturas do Estado. Em outras palavras, os campos eram territórios que se encontravam excluídos e, simultaneamente, incluídos através da exclusão. Quem adentrava um campo nazista movia-se em uma zona de indistinção entre a exceção e a regra, na qual os próprios conceitos de Direito e de Proteção Jurídica perdiam significado.
Nos campos, como por exemplo em Auschwitz, se produziam cadáveres. No entanto, não se produziam mortes, uma vez que as vidas ceifadas envolviam indivíduos considerados como indesejados, desqualificados, seres viventes cujos corpos não carregavam um valor social.
Tal visão não foi abandonada e, em nossos dias, se manifesta nas periferias e áreas empobrecidas das grandes cidades, locais em que, assim como nos campos de concentração nazistas, se produzem mortes em massa. Agamben (2002) reforça esta condição ao chamar atenção para o que ele chamou de ‘Homo Sacer’. A figura do ‘homo sacer’ representaria a vida em sua condição biológica, a vida que não carrega um valor social e que por isso pode ser exposta à morte sem que se cometa um crime.
Não se trata de uma simples animalização do homem, mas da vida exposta cotidianamente à morte. A concretização de indivíduos matáveis representaria a materialização da biopolítica como uma modalidade moderna do poder, pela sujeição de determinados homens a condição permanente de homines sacri.
Por meio da criação de estereótipos, vastos contingentes populacionais e territórios específicos tornam-se foco do olhar policial e, consequentemente, das estruturas punitivas do Estado. O espaço, encarado como local estratégico do controle e de punição indiscriminada, assume um lugar central nas estruturas de coerção.
Circunscritos pela miséria, as camadas mais empobrecidas, consideradas como indesejadas, passam a constituir os, principais, objetos da repressão policial e, por isso, tornam-se os principais frequentadores das prisões e as maiores vítimas da letalidade estatal. Coletivamente instituída, a exceção transforma os indivíduos residentes das áreas pobres em sobreviventes. Mediante o entrelaçamento entre a vida e a morte, define-se uma ordem que torna impossível a diferenciação entre as condições de guerra e paz, materializando conflitos sazonais que produzem centenas de vítimas, direta e indiretamente.
Vidas indesejadas e a posição do Estado
No passado e no presente, nos campos nazistas e nas periferias do nosso mundo, a humanidade do homem deve ser questionada, uma vez que esses territórios constituem fábricas de morte. A necessidade de controlar uma massa de despossuídos, criada no interior de um sistema que amplia constantemente a desigualdade, se revela como uma questão fundamental de nosso tempo, e em nome do discurso de segurança promove-se uma distinção físico-territorial dos grupos hegemônicos e hegemonizados, valorizando-se a vida dos primeiros e desprezando-se a dos segundos.
Infelizmente, para as vidas consideradas como indesejadas e excedentes, cujos exemplos citados são os cinco moradores da Favela de Acari e o jovem estadunidense Michael Brown, mas que poderiam ser tantos outros, o Estado tem oferecido três possibilidades, a segregação punitiva, para os recalcitrantes, a apartação territorial, para os pacientes e comedidos, e a morte, produzida cotidianamente nas áreas pobres.
Outros caminhos existem, porém, dependem da capacidade de resistência e da não-aceitação da dinâmica de morte. Todavia, nossa capacidade de ouvir tais alternativas tem sido reduzida, uma vez que o Estado além de cercear os mais pobres do convívio social, lhes retira também as palavras, limitando as narrativas oriundas das periferias.
Ao lado da dominação, há sempre a insubordinação, o que, em suma, representa a vida e não a morte. É no extremo da vida nua, da vida considerada como indesejada, que devemos descobrir outras formas de qualificar a vida. Para que tal fato se concretize devemos encarar a violência de forma integrada, enquanto continuarmos acreditando que as mortes que se multiplicam nas periferias do mundo são fatos isolados, obras do acaso, não de uma conjuntura social compartilhada e tecida nos limites de nossa humanidade, estaremos longe de resolver este problema.
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. 142p. 2ª Edição.
______________ Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. 207p.
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 560p.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987. 262p.
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