A Constituição Federal de 1988 atribuiu aos municípios a competência pela execução da política urbana, com base em normas gerais de direito urbanístico editadas pela União e, de forma concorrente, pelos Estados. Essas normais gerais têm sua maior expressão no Estatuto da Cidade, Lei 10.257, de 2001, que regulamenta o capítulo constitucional da política urbana.
O Estatuto da Cidade estabelece diretrizes a serem observadas pelos municípios e coloca à sua disposição instrumentos que prometem induzir, se bem utilizados e – evidentemente – implementados, o cumprimento da função social da propriedade urbana. Com assento nessas bases e no binômio Plano Diretor e Gestão Democrática, espera-se a construção de cidades mais justas ou menos desiguais.
Além do Estatuto da Cidade, há, no entanto, outras leis federais que devem orientar a atuação municipal nesse campo. Anterior a ele e à própria Constituição Federal, há a Lei 6.766, de 1979, norma geral de parcelamento do solo urbano, que deve ser seguida no que não contrarie ao texto constitucional. Posterior a ele e a essa, como remédio para o já feito, há a Lei 11.977, de 2009, norma geral de regularização fundiária de assentamentos urbanos.
A Lei 11.977 e a Lei 6.015 tratam dos dois caminhos existentes hoje na legislação para o parcelamento do solo urbano, isto é, para o ato de transformar gleba em lote urbano. O primeiro, partindo do concreto (o parcelamento de fato) para o abstrato (o desenho transformado em norma); o segundo, do abstrato (o desenho fundado na norma) para o concreto (o parcelamento implantado conforme).
Em tese, a subordinação que há entre essas leis, com o Estatuto da Cidade no topo federal e o Plano Diretor no topo municipal, deveria se refletir numa subordinação também dos processos: o parcelamento do solo urbano submetido a um planejamento geral da cidade que assegurasse alguma lógica de ordenamento territorial; alguma lógica de desenho urbano.
Infelizmente, não é assim. Nem toda cidade tem um planejamento geral. Nem toda cidade que tem um planejamento geral segue esse planejamento geral. Nem toda cidade que tem e segue um planejamento geral – aliás, quase nenhuma – imprime alguma lógica de desenho no seu desenvolvimento urbano.
No frigir dos ovos, as cidades brasileiras têm sido desenhadas pelo ato privado de transformar gleba em lote – quer seja esse ato formal ou informal. O Poder Público intervém antes, com regulação, ou depois, com regularização, mas o alcance de ambas as medidas, restritas ao parcelamento do solo, garante pouca qualidade urbana; garante muito lote – lugar de apropriação privada – e pouco espaço público – lugar de apropriação coletiva. Um tanto pior agora com os “condomínios fechados”.
Em cidades já saturadas, basta olhar para trás; nas cidades em que ainda há terra, basta olhar para hoje, ou amanhã – se não alterarmos essa lógica. Lógica que não conecta o plano, na escala macro – que em regra desconsidera seu suporte, o meio físico – ao projeto, na escala micro – que em regra desconsidera o conjunto. Lógica que não conecta um pedaço com o outro.
Em matéria de urbanismo, é certo que nos faltam muitas coisas. Entre essas, nos falta a essencial cultura da costura: a escala intermediária, essa que constrói o sentido comum próprio da dimensão pública da cidade. Basta olhar as normas gerais de direito urbanístico para ver que esse hiato – grave, porque é nesse buraco que se assenta o chão onde pisamos – também está lá. A nossa abordagem – legal, instrumental, processual, prática – sobre o urbano desconsidera a dimensão da paisagem: dos cheios, dos vazios, dos percursos, das paradas.
Então, a essas alturas, seja para conectar o plano ao projeto; seja para conectar um loteamento com o outro; seja para conectar a cidade que se expande com a cidade existente; seja para conectar o trabalho à moradia; seja para conferir sentido ao já saturado, por meio de intervenções públicas pontuais ou estruturantes (da urbanização de favelas aos grandes eixos de transporte); ou simplesmente por entender que a cidade se realiza do plano pra baixo e do lote pra fora, no espaço público; é urgente coser os nós dessa trama para, enfim, (re)fazer o tecido.
Ana Paula Bruno é Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. Analista de Infraestrutura do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Gerente de Regularização Fundiária Urbana da Secretaria Nacional de Acessibilidade e Programas Urbanos do Ministério das Cidades. Professora de graduação e de pós-graduação.