Uniões homoafetivas e o atual conceito de família

Artigo veiculado na 27ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.

 

Maria Berenice Dias*

Com a Constituição Federal o conceito de família se alargou. Afastou-se do modelo convencional da família constituída pelos sagrados laços do matrimônio, para enlaçar uma multiplicidade de conformações familiares: assim, famílias reconstruídas, informais, monoparentais, família formada por pessoas do mesmo sexo etc.

Tal foi a transformação porque passaram as estruturas familiares que se fez necessário buscar um novo conceito de família que albergasse todas as novas formas de convívio que as pessoas encontraram para alcançar a tão almejada felicidade.

O parâmetro deixou de ser o casamento. Também a capacidade procriativa ou o exercício da sexualidade não mais servem para defini-la, quer em face da liberação sexual em que vivemos, quer diante das múltiplas formas de reprodução assistida, que está permitindo a todos, independentemente de terem um par, realizarem o sonho de ter um filho.

Foto: Agência CNJ

Foto: Agência CNJ

Diante dessa nova realidade, o elemento identificador das várias formas de viver, está em sua origem, ou seja, é o vínculo afetivo que se encontra presente em todas as formas de convívio. Neste novo conceito precisam ser inseridas as famílias homoafetivas que, por ser alvo de tanta descriminação e preconceito que o legislador sempre preferiu ignorar e a justiça não ver. No entanto, as uniões existem e negar-lhe a tutela jurídica é negar tudo o que se vem construindo em respeito aos direitos humanos.

O silêncio legal gera um círculo vicioso perverso: a omissão do legislador leva o Judiciário a negar o reconhecimento de direitos em face da inexistência de lei, como se para o reconhecimento de direitos fosse necessária a existência de regra jurídica. Essa visão tão limitante e limitada é usada como mecanismo de exclusão social.

Porém nada, absolutamente nada justifica relegar os vínculos homoafetivos ao desabrigo do direito e com isso negar-lhes direitos. São uniões que têm origem em um elo de afetividade. A convivência leva ao entrelaçamento de vidas e ao embaralhamento de patrimônio. Como a responsabilidade mútua é uma consequência de toda a relação de convívio, é descabido permitir o enriquecimento injustificado.

No momento em que se emprestam efeitos jurídicos a determinado vínculo não há como deixar de reconhecer que se está tutelando o afeto. Ou seja, o afeto passou a merecer a tutela jurídica, tornou-se o elemento estruturante da família. Este é o conceito de família trazido pela Lei 11.340/06, a lei de combate a violência doméstica, por todos conhecido como a Maria da Penha. Define família como qualquer relação íntima de afeto (art. 5º, III) independente de orientação sexual (art. 5º, parágrafo único). Deste modo não mais se pode negar, que as uniões de pessoas do mesmo sexo, estão enlaçadas nesse novo conceito de família. Não ver, não reconhecer, não emprestar efeitos jurídicos é a maior fonte de chancelar injustiças.

A isso não se pode prestar a justiça, que tem por missão dar a cada um o que é seu. E, o seu de cada um nada mais é do que assegurar a parcela de felicidade a que todo tem direito.

Não se pode falar em estado democrático de direito, quando se nega visibilidade a uma parcela de cidadãos. Imperativo que os operadores do direito assumam a responsabilidade de, enfim, fazer justiça.

Não se pode esperar pelo legislador que, preocupado em não decepcionar o seu eleitorado, tem enorme dificuldade em votar a favor de lei que proteja parcelas minoritárias da sociedade, alvo do preconceito e discriminação.

No vácuo legislativo é necessário que a justiça cumpra sua missão.

Não se pode deixar de fazer justiça pelo singelo fato de inexistir lei que regulamente a situação trazida a julgamento.

Deixar de reconhecer, por exemplo, direitos sucessórios ao parceiro sobrevivente, transmitindo a herança aos parentes que repudiavam o falecido por ser homossexual, é uma injustiça.

Impedir que companheiros de diferentes nacionalidades permaneçam juntos, negando visto de permanência, é uma injustiça.

Exigir a prova da participação efetiva para proceder à divisão proporcional dos bens amealhados durante o período de convívio, é igualmente uma injustiça.

Negar a duas pessoas que querem consolidar sua relação familiar pela adoção de um filho, é uma injustiça, aliás, uma injustiça muito maior para com a criança que muitas vezes fica depositada em abrigos e orfanatos, na espera de um lar.

Quando, burlando o patrulhamento, um par consegue um filho – seja por adoção, seja por meio dos modernos métodos de concepção assistida – a negativa de gerar um vínculo de parentesco da criança com seus dois pais ou duas mães, faz com que se deixe de atribuir responsabilidade a um dos pais, bem como não garante direitos à criança, com relação a quem considera também seu pai ou sua mãe.

Mas com certeza o caminho está aberto. Como sempre os primeiros passos são dados pela doutrina, pelos juízes com sensibilidade para ver a realidade e coragem para respeitar as diferenças.

*Advogada especializada em Direito das Famílias, Sucessões e Direito Homoafetivo; Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS; Vice-Presidente Nacional do IBDFAM.

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