As leis são insuficientes, hoje; todos sabemos. Cada vez mais; muitos sentem. Frequentemente, inconstitucionais; alguns percebem.
A velocidade dos avanços econômicos é alta. Das evoluções sociais, quase tão alta. Do atingimento de consenso nos parlamentos, muito menor.
A ilusão de completude dos códigos desapareceu. A crença na harmonia entre os diversos micros sistemas legais é incipiente. A expectativa de justa solução dos conflitos, caso a caso, é imensa.
O Poder Judiciário, talvez, tenha cumprido a função social esperada do mesmo, até aqui. A partir de agora, muitos esperam muito mais. Ou, na verdade, desde mais tempo.
Araken de Assis tratando dos antigos assentos de Portugal e de nossa legislação processual, afirma que se o precedente formula regra geral e abstrata …(é)… inconstitucional o art 927, III e IV, referindo-se ao nosso Código de Processo Civil. [i]
Victor Marcelo Pinheiro afirma que as teses jamais podem ser consideradas regras legislativas (…) as teses não inovam o sistema jurídico e não apresentam uma eficácia própria separada das rationes decidendi dos casos em que adotadas.[ii]
O Judiciário, diante de leis imprecisas e diante de vazios legislativos, não recebe a atribuição de elaborar normas gerais. Recebe, sim, o aviso, implícito, de que os casos individuais possuem diversidade significativa e devem ser melhor examinados, em suas peculiaridades e evolução.
Nesta situação, mais do que antes já era, é desejável um direito processual participativo. Não se trata de transferir o dever de julgar, e, sim, de confirmar a legitimidade do Judiciário e do próprio Estado. Os aprendizados anteriores, de direito processual e de organização do Judiciário, devem ser superados e não simplesmente abandonados.
Audiências públicas e atuação dos amicus curiae contribuem para maior legitimidade e aceitação social, especialmente das decisões que pretendam uniformizar os julgamentos.[iii] Sessões não secretas, transparência de todos os atos e, inclusive, seminários são instrumentos necessários para as uniformizações, mais do que em julgamentos singulares. [iv]
Julgar sozinho é cada vez mais inviável, sendo oportuno falar-se em cooperação.[v] Até mesmo, conhecer os fatos, sozinho, é impossível, sendo inadiável ultrapassar, igualmente, os limites do direito probatório de outros tempos.
Perfecto Andrés Ibáñez assinala que la jurisdicional es así una actividad , ciertamente de poder, pero de naturaleza esencialmente cognoscitiva. [vi]
Alfonso de Julius-Campuzano assinala os limites do legicentrismo, a limitação do poder pelo Direito e as possibilidades de um constitucionalismo fuerte. [vii]
A democracia interna do Judiciário deve ser alcançada, através de meios a serem descobertos. O estabelecimento de boas regras processuais e procedimentais é relevante. A escolha das administrações, com maior e mais amplo debate, certamente, é, quase que antes, o primeiro.[viii]
A democracia externa do Judiciário pode ser alcançada, através de inúmeros meios já conhecidos. A exata compreensão do tema da uniformização dos julgamentos, provavelmente, pode vir a ser outro meio eficaz para este objetivo. Aperfeiçoamentos do direito probatório são inadiáveis.
Os avanços da tecnologia da informação permitiram o conhecimento do conceito de interoperabilidade.[ix] No Direito do Trabalho, para enfrentamento do quarto lugar do Brasil, em acidentes e doenças do trabalho, é preciso valer-se da estatística, com o conceito de Ntep – Nexo Técnico Epidemiológico.[x]
A grandiosidade dos números da força de trabalho, acidentes e doenças merece estudo. Já se percebeu que, além dos casos e causas individuais, há de se examinar os adoecimentos e riscos coletivos.[xi]
Cristian Starck aponta que a questão que se esconde no tema Jurisdição Constitucional e Tribunais Ordinários (…) tem pouco a ver com a clássica divisão de Poderes. Trata-se da delimitação de competências dentro do Poder Judiciário. [xii]
Bianca Richter, dentre tantos novos debates, aponta que o juiz natural é essencial ao exercício da função jurisdicional (…) diversos institutos processuais utilizados atualmente que atacam estes parâmetros teóricos gerais do juiz natural (…) também em outros ordenamentos jurídicos.[xiii]
As alterações processuais têm sido inúmeras, também em nosso País. No direito processual do trabalho, existiu a repercussão das alterações de 1994 no CPC de 1973, a Lei 13.015 com rica experiência de quase dois anos, o NCPC e a reforma trabalhista, Lei 13.467, limitando a edição e revisão de súmulas, com constitucionalidade questionável e já questionada.[xiv]
Ao início destas linhas, não se disse que é bom que os parlamentos não consigam elaborar leis claras; apenas, se fez esta constatação de que não conseguem. Não se disse que o Poder Judiciário não precisa de regras processuais claras; apenas, se expos que não é fácil alcançá-las.[xv]
Ao se aproximar de uma década, ainda, é necessário denominar o Código de Processo Civil com o adjetivo novo. Os artigos 938 e 1.013, por exemplo, ainda não foram bem compreendidos.
Note-se que os dois artigos antes mencionados não são novidades. Apenas, ampliam o poder do Relator, cuja tendência já existia, e, por outro lado, preservam o princípio da celeridade.[xvi] Tais artigos são mero desdobramento do que havia no artigo 515, do Código de Processo Civil anterior.[xvii]
Pierre Dardot e Christian Laval indicam que existe, entre nós, uma concepção que vê a sociedade como uma empresa constituída de empresas.[xviii]
Cristhian Starck, agora citado por segunda vez, indica que os direitos fundamentais crescem como recifes de coral (…) para impedir retrocessos nos direitos fundamentais.[xix]
Os aprendizados para o desenvolvimento das empresas servem muito pouco para a organização do Poder Judiciário. Aqui, a celeridade processual depende da legitimidade social e vice e versa.
Os números dos recursos de revista são conhecidos e divulgados, no Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul, com grande transparência, detalhamento e opções de consulta por Turma, por tema, por ano, por desembargador, por advogado, etc.[xx] Pessoalmente, participo da Turma com segundo menor número de recursos de revista, sabendo, de qualquer modo, que todas Turmas possuem números muito semelhantes.[xxi]
A uniformização de julgamentos que trava o avanço social não contribui, habitualmente. Toda uniformização que não concretize o aperfeiçoamento civilizatório, provavelmente, ficaria melhor com o esclarecimento de que é provisória, enquanto as condições econômicas e sociais não o permitem.
O Poder Judiciário quando aceita o retrocesso social, igualmente, se enfraquece. Mais do que isolamento social, é verdadeiro auto enfraquecimento. É auto esfacelamento e incentivo à busca de outros meios de, supostamente, solucionar os conflitos.
Peter Berger tem a percepção de que a modernização leva a uma enorme transformação na condição humana, passando do destino para a escolha (…) o fundamentalismo é um esforço para restaurar a certeza ameaçada. [xxii]
A desejada segurança jurídica, bem como a certeza, nas esferas social e individual, não virão da simples, simplória e anti-histórica concentração de poderes.[xxiii]
Não é razoável imaginar que um juiz, outros poucos profissionais e dois advogados, um para cada parte, sejam suficientes para bem solucionar setenta milhões de processos.[xxiv]
É viável ter-se um Judiciário, não apenas para julgar e, sim, antes disto, igualmente, para melhor conhecer a realidade.[xxv]
A poesia do Uruguai lembra um menino, que não conhecia o mar e, ali, chegando, diante da imensidão, pediu ao pai que lhe ajudasse a olhar.[xxvi]
Ricardo Carvalho Fraga
Desembargador TRT RS
Porto Alegre, outubro de 2023
[i] Araken de Assis, Dos assentos aos precedentes e sua inconstitucionalidade, no livro Súmulas, Teses e Precedentes – estudos em homenagem a Roberto Rosas, Coordenação de Gilmar Ferreira Mendes e Victor Marcel Pinheiro, Rio de Janeiro: GZ, 2023, pg 106.
[ii] Victor Marcelo Pinheiro, A Fixação de Teses pelo STF e a sumulização dos precedentes constitucionais, no mesmo livro antes mencionado, Súmulas, Teses e Precedentes – estudos em homenagem a Roberto Rosas, Coordenação de Gilmar Ferreira Mendes e Victor Marcel Pinheiro, Rio de Janeiro: GZ, 2023, pg 249.
[iii] Alexandre Freitas Câmara, Levando os padrões decisórios a sério – formação e aplicação de precedentes e enunciados de súmula, São Paulo: Atlas, 2022, pgs 196 e 199, entre outras.
[iv] O Tribunal de Justiça de Minas Gerais tem realizado Seminários para tratar das uniformizações de jurisprudência, conforme se percebe em vídeo de 8 de agosto de 2023,
https://www.youtube.com/watch?v=wKgcDhXxC3U
[v] O princípio da cooperação está expresso no NCPC, Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”.
[vi] Perfecto Andrés Ibáñez, El Juez, la Ley y la Jurisprudencia, no livro Derecho Judicial – el derecho da creación judicial a la luz del siglo XXI, Barcelona: Bosch Editor, 2022, pg 36.
[vii] Alfonso de Julius-Campuzano, El Estado Constitucional – normativas de las constituciones contemporâneas e interpretación de la constitución, no mesmo livro Derecho Judicial – el derecho da creación judicial a la luz del siglo XXI, Barcelona: Bosch Editor, 2022, pgs 497, 506 e 516.
[viii] Neste sentido, a forma de escolha da Administração no Tribunal Regional do Trabalho, do Rio Grande do Sul,
https://www.trt4.jus.br/portais/trt4/modulos/noticias/575317
[ix] José Eduardo de Resende Chaves Junior trata do direito processual eletrônico e do conceito de interoperacionalidade em
https://emporiododireito.com.br/leitura/conexao-e-processo
[x] O Supremo Tribunal Federal, em abril de 2020, declarou a constitucionalidade do art 18-A inserido na Lei 8.213, através da Adin 3.931, Relatora Ministra Carmen Lucia Antunes Rocha,
https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2541930
[xi] Paulo Rogério Albuquerque de Oliveira está atento aos números da previdência. Diz que o benefício previdenciário é individual, todavia, o olhar é coletivo, especialmente momento 24min de
https://www.youtube.com/live/AYhBIEfDpd0?si=8a6d5_UCtk2CPk4F
[xii] Christian Starck, Ensaios Constitucionais, São Paulo: Saraiva, 2020, pg 288.
[xiii] Bianca Richter, Precedentes, Vinculantes e Assunção de Competência, São Paulo: Almedina, 2.023, pgs 227 e 230.
[xiv] O Supremo Tribunal Federal examinou a inconstitucionalidade da Lei 13.467, ao dificultar a edição e revisão de súmulas,
https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5731024
[xv] A resposta não pode ocorrer antes da pergunta, no dizer de Lênio Streck, momento 43min50seg de
https://www.youtube.com/watch?v=pMWIHKLOIUI
[xvi] Foram vários os textos de Juízes do Trabalho no Rio Grande do Sul, individuais e coletivos, e um de Minas Gerais, entre eles:
a)livro de Bem-hur Silveira Claus,
https://www.amazon.com.br/Fun%C3%A7%C3%A3o-Revisora-Tribunais-Racionalidade-Recursal/dp/8536188758
b)texto do Juiz em Minas Gerais, Luiz Ronan Neves Koury,
https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/3951
c)texto de Luiz Alberto de Vargas e o signatário, Fatos e Jurisprudência, in
https://ricardocarvalhofraga.wordpress.com/category/fatos-e-jurisprudencia/
[xvii] A palavra desdobramento nos chegou ao conhecimento nas primeiras leituras do NCPC pelo advogado Juan Hatzfeld dos Santos.
[xviii] Pierre Dardot e Christian Laval, A Nova Razão do Mundo, São Paulo: Boitempo, 2016, pg 321.
[xix] Christian Starck, obra antes citada, agora, página 296.
[xx] Site do TRT RS, opção recursos de revista, ao pé da página inicial ou, direto, em https://dados.trt4.jus.br/extensions/RR/RR.html
[xxi] No TRT RS, dentre onze Turmas, duas tem realidades diferentes porque seus integrantes participam, acima de tudo, de julgamentos em processos de execução e, menos em recursos ordinários.
[xxii] Peter Berger, Os múltiplos altares da modernidade, Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, pgs 26 e 34.
[xxiii] Reporto-me a outros textos recentes de que participei:
- a) Comunidade de Interpretação – Uniformização da jurisprudência é diferente de concentração de poderes,
- b) Uniformizações da jurisprudência,
https://www.migalhas.com.br/depeso/374865/uniformizacoes-da-jurisprudencia
- c) Certeza de maior civilidade, com os colegas Gilberto Souza dos Santos, Marcos Fagundes Salomão, Maria Madalena Telesca,
https://www.migalhas.com.br/depeso/352676/certeza-de-maior-civilidade
[xxiv] Setenta e sete milhões era o número de processos, no Judiciário, ao final de 2019, conforme divulgado no Seminário organizado pelo STF e STJ, em setembro de 2021, momento 10min10seg de https://www.youtube.com/watch?v=KWIPrP-bYes
[xxv] Alice apontou que os julgamentos necessitam de certa cronologia, nos seus atos e, antes disto, até mesmo, lista de presenças, https://www.culturagenial.com/livro-alice-no-pais-das-maravilhas-lewis-carroll/
Isto foi lembrado pelo advogado Amarildo Maciel Martins, em debate organizado por Julian Lisboa, que participei, momento 1h9min58, https://www.youtube.com/watch?v=hCZpsgBDUuE&t=783s
[xxvi] Coletânea de Eduardo Galeano, in https://meajudaaolhar.wordpress.com/