Uma sociedade sem respeito

Coluna Democracia e Política

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Fonte: pixabay

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Violência contra a mulher

O tema do respeito está na ordem do dia. Por todo o lado, a exigência de respeito é invocada pela população. No programa Big Brother Brasil, o desrespeito à mulher tornou-se ingrediente da narrativa. No último dia 9 de abril, um vídeo onde Marcos aponta o dedo para uma Emily encurralada na parede viralizou na internet. Emilly aparece nas imagens brigando com o médico “- Não quero mais, transbordou. Por sua conduta e por sua atitude”, disse. Irritado, Marcos a encurra-la: “-Emilly, presta atenção. Você tem que ficar comigo independente de quem eu ache que ganhe”, disparou o brother. Ao mesmo tempo, no canal concorrente, o apresentador Silvio Santos humilhou em pleno ar a apresentadora Rachel Scheherazade. Anotou a jornalista Cynara Menezes, do blog Socialista Morena “O patrão, como muita gente o trata no SBT, ordenou que ela não volte a fazer comentários políticos em sua emissora. “- Mas quando você me chamou foi para dar a minha opinião”, disse uma constrangida Rachel, ao que o patrão retrucou com a mais machista das frases: “- Não, eu te chamei para você continuar com sua beleza, com sua voz, para ler as notícias, e não dar sua opinião”.

As cenas surpreenderam porque havia até agora um machismo dissimulado caracterizado pelo uso de expressões como “meu anjo”, “minha linda”, “minha querida” e “mocinha”, temos usados a exaustão por Marcos e Silvio Santos, cuja intenção não declarada era desautorizar a mulher, colocando-a num posto inferior ao que conquistou por direito, como afirma a advogada Ruth Manus. Agora é diferente: tratam-se de cenas de um machismo explícito que, segundo o blog Saúde Publica(da), ambos os casos deviam-se enquadrar numa “Conduta Discriminatória Machista’, a ser definida pela Psiquiatria, e o Machista, a ser definido pelo Direito, como um criminoso. Em ambos os casos, o problema é que tanto Marcos como Silvio Santos não se reconhecem como causadores de sofrimento mental. Por isso que o apelo social a que ambos sejam indiciados pela Justiça é a saída para fazer que uma geração de homens entenda que sua conduta é problemática. A educação não está sendo suficiente. É preciso mais.

Sob o tema que a discussão nas redes sociais sobre os casos evocam sobre a violência contra a mulher, está um tema maior, o do respeito, do que merece respeito e a defesa de uma ética do respeito, proposta para a tomada de posição em nossa época. Refletir sobre atitudes de respeito que invocam nossa moralidade é um tema rico, do qual a maioria das pessoas já tem uma noção, mas é maior ainda a dificuldade de definir seu conceito, o essencial do significado de respeito. Josep Esquirol, em seu “O respeito ou o olhar atento: uma ética para a era da ciência e a tecnologia” (Autêntica, 2008) afirma que“o essencial do respeito é dado pelo olhar”. Sabemos que pessoas e coisas devem ser respeitadas, que merecem respeito, o que significa que o respeito

“É uma atitude ética que nos vincula diretamente com as coisas, com o mundo” (Esquirol, p.8).

Refletir sobre o que merece respeito nos conduz a ideia de harmonia, fragilidade, segredo, pois só a partir delas entendemos porque coisas do mundo são dignas de serem respeitadas.

Com o final do BBB e após uma semana do caso protagonizado por Silvio Santos, é um bom momento para refletir sobre a importância de uma ética baseada no respeito. Não apenas porque ficou patente nos casos citados, mas porque vemos por todo o lado conquistas sociais, produtos da luta de trabalhadores, serem “desrespeitados”; vemos categorias sociais que conquistaram seu espaço sendo alvo de ataque sistemático de pessoas e organizações e vemos instituições importantes serem desrespeitadas em sua função: esse quadro mostra que o respeito no mundo está em processo de corrosão. Para Esquirol, uma das razões é o papel que assumiu a ciência e tecnologia “meu objetivo consiste em mostrar que o respeito é o eixo de uma cosmovisão diferente da tecno-científica” porque, segundo o autor, “ela nos torna menos unidimensionais e mais equilibrados do que a cosmovisão cientifica, cujo efeito é tornar superficiais qualidades humanas essenciais em benefício da produtividade”.

 

A linguagem coloquial

O respeito é uma palavra do dia a dia. Todo mundo usa, sabe o que significa, entende que pessoas e coisas devem ser respeitadas, serve para a construção de um discurso moral e político “Aparece por toda parte: “o respeito à dignidade humana”, “o respeito às coisas públicas”, “o respeito ao meio ambiente”, o respeito aos antepassados”, “o respeito a si mesmo”, “o respeito à justiça e a liberdade”, “o respeito à lei”, o “respeito às obras de arte”, “o respeito aos animais e a natureza”, “ o respeito ao sagrado”…” (Esquirol, p.9). Para Esquirol, a primeira característica do respeito é que ele é uma relação intencional, uma atitude que se expressa pelo imperativo “respeitar a…”.

Foto: UNICEF/ Donna DeCesare

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A segunda característica é que é um tipo de atitude que expressa uma virtude, a do “homem virtuoso”. Tanto que o respeito começa pela língua, pelo uso de uma “linguagem respeitosa”, quando nos dirigimos ao outro, evitando a linguagem vulgar, inconveniente, grosseria, marcada por insultos e ofensas “Falar respeitosamente de alguém significa ter cuidado com as palavras que se usa com relação à ele ou ela, evitando termos demasiado diretos e escolhendo, de preferência, os que se referem ou alcançam essa pessoa de forma suave e medida; palavras que, definitivamente, são capazes de guardar sempre uma distância, a “distância respeitosa”(p.10). Nada disso ocorreu com Silvio Santos e Marcos, e por esta razão, suas atitudes com Raquel Sheherazade e Emily foram vistas como desrespeitosas, foram as palavras e o modo como ambos se dirigiram as mulheres que caracterizaram para o público que estava sendo praticado, em cadeia nacional, um ato de violência.

O problema é que estas definições são imprecisas para definir o que é respeito. O respeito pressupõe reconhecimento, é definido primeiramente pela atenção: “tratar alguém ou algo com respeito significa, por enquanto, trata-lo com atenção. Em alemão, a palavra Achtung significa tanto respeito como atenção “A essência do respeito é o olhar atento”, por isso há respeitos superficiais porque não sobrevivem ao crivo do olhar atento, nem tudo o que olhamos acabamos respeitando, mas a questão é justamente essa, a de que possamos olhar as coisas e as respeitemos nesse processo. Marcos e Silvio Santos desrespeitam Emily e Rachel porque não detiveram seu olhar no significado de seu discurso.

 

O olhar atento é um olhar ético

O paradoxo do olhar é que é o sentido mais fácil de ser exercido, ao mesmo tempo que contrasta com a dificuldade do seu exercício, de “olhar bem”. Não é suficiente olhar para ver os objetos, é preciso reparara bem, prestar atenção para perceber sua profundidade. A televisão tem sucesso porque exige de nós apenas a percepção, não exige esforço de reflexão – ainda que alguns filmes de grandes cineastas estejam exatamente sendo construídos nesse sentido. É que olhar bem é dirigir o olhar, é concentrar-se, e por isso supõe esforço que tem como consequência o cansaço. A economia de poupança energética faz com que o olhar atento se torne incomum e raro.

Para Esquirol, a importância do respeito, do olhar atento, está não apenas em resgatar o outro, mas resgatar o próprio indivíduo de si mesmo. É que atenção dota o olhar de um significado moral, ele inclui um olhar da mente, “é com os olhos fechados que vemos mais claramente” (Esquirol, p.12), diz o autor “nem todos que olham, veem”. Não foi exatamente isso que fizeram Marcos e Silvio Santos, olhavam mas não viam em que condição de humilhação estavam colocando Emily e Rachel? Para Esquirol, quem afasta o olhar é quem melhor vê, porque a natureza do olhar é de chegar rapidamente e sem intervenções, é o mais indiscreto dos sentidos, por isso precisa ser desviado em muitas ocasiões. “O olhar atento é o que sabe olhar com discrição”. “Olhar atentamente não é cravar o olhar, e sim dirigir o olhar com cuidado, sem pressa e com flexibilidade suficiente, de maneira a poder desvia-lo assim que a situação o exija” (Esquirol, p.13). Quer dizer, o olhar tem sempre uma dimensão ético-moral. O olhar atento é um olhar ético. O olhar indiferente de Silvio Santos e Marcos tem uma significação moral, contrasta com ser solidário que eles poderiam ter sido e não foram. Por isso entendemos “haver tido uma atenção com alguém” como sinônimo de “trata-lo com respeito”.Se não olhamos com atenção, podemos pisar.

A atenção é o primeiro movimento com significação ética, o respeito requer atenção, e a atenção, uma aproximação. “Haver tido uma atenção para com alguém equivale a havê-lo tratado com respeito” afirma Esquirol. Tudo se resume as formas pelas quais não somos indiferentes ao outro, reparar sempre é converter alguém como destino do olhar “sem olhar, sem notar, não apenas desconheço, mas até posso pisar. A ignorância é antagônica ao respeito”, afirma. A filosofia antiga registrou isso nas Dissertações de Epiteto quando afirma que prestar atenção é garantia de boa conduta e de felicidade, além de apontar para a dificuldade de prestar atenção quando já se perdeu o costume de fazê-lo. Não é exatamente esta a condição de nossa sociedade, de que estamos perdendo o costume do respeito, não é assim que se referem professores a seus alunos, a pessoas célebres, inclusive no ambiente de trabalho? “Porque ser atento é um hábito, uma maneira de proceder na vida”, afirma Esquirol. A atenção procede da escola da vida, a ética do respeito não pode ser nenhuma fuga do mundo dos problemas da vida, ela está a serviço da orientação “Quem presta mais atenção melhor se orienta e mais respeita”.

 

Não há sociedade sem respeito

Fonte: pixabay

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A sociedade depende do respeito dos filhos pelo pais, do cidadão as leis e costumes, aos lugares e instituições. Mas o objeto de respeito mudou ao longo do tempo, de uma cultura para outra. Práticas de sacrifício de culturas do passado deixaram de ser objeto de respeito bem como direitos e privilégios de determinadas classes sociais ligados a uma concepção hierárquica de sociedade “é demasiado frequente que o que deve ser respeitado não o seja, e que o que é efetivamente respeitado não deveria sê-lo” (p.16). A falta de respeito é considerada por todos um mal sintoma social e a regra vale para situações de desrespeito em programas de televisão.

A origem do respeito como necessidade social está associada ao mito de Prometeu, como descrito no Protágoras de Platão. No mito, Epimeteu foi encarregado de distribuir as capacidades entre homens e animais. Quando chegou aos homens, havia gastado todos os dotes e não sabia o que fazer. Então deu a capacidade de fazer fogo ao homem, e o homem inventou a linguagem e a técnica que lhe permitiu criar o mundo. Mas ainda viviam dispersos, expostos ao perigo e ao viverem nas cidades, se atacavam entre si. Então Zeus, interviu e deu ao homem algo que ele ainda precisava, a justiça e o respeito “Zeus temeu que toda nossa raça sucumbisse e enviou Hermes, encarregando-o de dar aos homens o respeito e a justiça (aidos e dike), para que houvesse ordem nas cidades e vínculos de amizade entre seus habitantes”.

O respeito é visto como essencial à sociedade humana porque é fundacional, está vinculado a ordem que permite a existência da humanidade. No passado, era uma relação clara com o sagrado, uma relação originária, o respeito máximo era aquele devido ao sagrado. Na nossa sociedade, o sagrado perdeu o seu sentido pela emergência da visão técnico-científica do mundo. Porquê no passado o sagrado era motivo e prática de respeito? Porque obrigada ao homem se inclinar aquilo que era considerado a fonte de vida, daí o respeito aos deuses, aos antepassados e aos textos fundacionais como a Bíblia.“ A relação respeitosa com o fundacional é o que assegura a perduração e a subsistência do mundo humano” (Esquirol, p.18). Por isso o respeito nesse universo ocupa lugar moral importante.

 

A oportunidade da ética do respeito

Ver nos exemplos de Marcos e Silvio Santos a conveniência de uma reflexão sobre a ética do respeito para o mundo contemporâneo se faz porque pode nos orientar a ter uma visão mais rica do mundo. A reflexão sobre a atitude respeitosa possibilita por exemplo, o combate sobre dois valores dominantes em nossa sociedade: a indiferença e a avidez pela posse e consumo “a nossa é uma época de enaltecimento da facilidade. Ser indiferente não custa nada: para ser indiferente basta não fazer nada. E exceto o dinheiro, o consumo tampouco custa: todo o potente sistema econômico atual parece uma imensa conspiração tramada para nos submergir em um consumo fácil e desmedido. O movimento do respeito contrasta com essas tendências predominantes: enquanto a indiferença é a distância total, o respeito coincide precisamente com a proximidade (com esse acercamento que mantém, ao mesmo tempo, certa distância). O preocupante é o excesso de um tipo de movimento e a carência de outro: a sociedade contemporânea se caracteriza muito mais pela indiferença e pelo consumo do que pelo respeito” (Esquirol, p.19). Marcos e Silvio Santos foram indiferentes a Emily e Raquel, e chama a atenção que ambos tem entre suas qualificações, a riqueza e que façam suas ameaçadas com base em seu poder econômico.

Foto: Agência Brasil / Elza Fiúza

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A técnica tem configurado não apenas a vida, mas a visão da vida. O poder técnico cientifico, configura o social e o habitat, mas configura também nós mesmos. Mundo virtual, informática, engenharia genética, deterioração do meio ambiente. A ascensão do paradigma técnico-cientifico originou novas disciplinas ética, como a bioética, a ética ecológica, a ética da informação, etc. A ética do respeito é uma ética que precede todas elas, pois é uma relação de respeito com o Outro tomado em sua generalidade. A ética ecológica, que nos chama a respeitar a natureza para produzir bem-estar do homem é secundária porque a esta ainda está num cálculo de custos e benefícios; o campo dos direitos humanos é um campo de exposição do respeito, a principal finalidade da declaração é desenvolver o respeito a todas as liberdades. A ética do respeito é o primeiro campo do conhecimento que a tomá-lo por centro, tomá-lo como objetivo específico, preocupado com sua essência. “O que nos salva é olhar”, diz a cientista social Simone Weil.

 

O movimento do respeito

Josep E. Esquirol é professor de filosofia da Universidade de Barcelona e integra o grupo de investigação Ética da Ciência e da Tecnologia. Autor de inúmeros estudos sobre temas contemporâneos, seu atual interesse é enraizar a reflexão filosófica nas atitudes mais fundamentais do ser humano. Não é a única obra disponível sobre o tema. Richard Sennet, nascido em Chicago em 1934, professor da London Scholl of Economics e da Universidade de Nova York, é autor de Respeito, a formação do caráter em um mundo desigual.

A abordagem de Sennet é complementar a abordagem de Esquirol, porque a primeira é uma abordagem filosófica e a segunda, uma abordagem sociológica. Como abordagem sociológica, o pensamento de Sennet sobre respeito privilegia a responsabilidade social frente as desigualdades de gênero. O autor analisa concretamente serviços de saúde, educação e segurança para concluir a emergência de um mundo de “relações flexíveis” onde questões de respeito são recolocadas a todo instante: trabalhadores são acuados por gerentes insensíveis que nos desrespeitam a partir de exemplos tirados da própria experiência do autor.

O objetivo é mostrar os fatores que tornam o respeito mútuo algo difícil de alcançar. No mundo do trabalho onde estamos inseridos, o indivíduo vive a luta para conquistar sua autoestima e o respeito de seus pares, ao mesmo tempo em que enfrenta formas degradantes de compaixão, seja pela burocracia impessoal dos serviços sociais, como do voluntariado obrigatório. Para Sennet, somente o respeito mútuo pode minar o território das desigualdades. Marcos e Silvio Santos exatamente por estarem em situações de poder no mundo do trabalho (um dirige uma clínica, o outro, um império de comunicações), possuem tamanha tal auto-estima produz comportamentos indesejáveis pelos agentes.

Para Esquirol, o respeito é movimento como definia Aristóteles, dynamis, faz parte do movimento da vida como Eros, no que se refere a uma dimensão espiritual “O movimento do respeito é um aproximar-se que guarda distância, uma aproximação que se mantém a distância”, afirma. Para o autor, é que só com aproximação percebemos a singularidade das coisas, seu valor, o respeito pelo concreto, que me aproximo de uma pessoa, única. O respeito por essa razão exige uma pedagogia, aprendemos a respeitar, aprendemos a necessidade de manter uma distância e aproximação constantes do Outro, uma aproximação que não pode ser utilitarista, não pode pensar em benefícios “Kant também ressaltou isso citando Savaray, general de Napoleão que, ao recordar suas andanças na expedição ao Egito, comentava: “Não é preciso nem se aproximar muito, nem se afastar demais das pirâmides para experimentar toda a emoção de sua grandeza”: só guardando distância adequada é possível notar e respeitar o que deve ser respeitado. O aspecto de aprendizagem do respeito é este: o respeito é uma aprendizagem de como manter a distância devida.

Os exemplos mostram a supressão da distância, e, portanto, do respeito, ocorre em inúmeras situações e mundos: da união amorosa do casal protagonizado por Marcos e Emily à violência do discurso do poder do empregador Silvio Santos, o que está em jogo é a capacidade de manter distância. A violência é antípoda do respeito, é a supressão de toda a distância porque é a violação do outro, da pessoa do outro, em todas as suas dimensões, pois se trata de anular o outro exatamente como fizeram Marcos e Silvio Santos. Quando nos aproximamos do outro, somos afetados pelo outro: é o que a psicanalista Suely Rolnik, em sua obra Cartografia Sentimental da América, descreve como o funcionamento do desejo humano: apoiada nas ideias do filósofo Espinosa, Rolnik descreve os movimentos do desejo em sua capacidade de afetarem.

Fonte: pixabay

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Para Esquirol, trata-se do mesmo processo de afetação, entendido por outro conceito, o de respeito, e talvez, por essa razão, no caso de Marcos e Emily,é exatamente o fato de ser um casal que o desejo de poder se manifesta, porque nos termos de Rolnik, somos afetados pelos outros, temos nossa sensibilidade afetada “a aproximação traz consigo o aumento da vulnerabilidade e real afetação. Aproximar-se é achar-se comprometido. Então, a aproximação do respeito nunca se pode resumir a uma função utilitária” (Esquirol, p.50).

Na aproximação do respeito, perde-se segurança, enraizamento, nos tornamos vulneráveis. Ao contrário, no amor quase não há distância, mas amar também exige o respeito, a distância, e por essa razão o perigo do amor é o afã de apropriação e de domínio, exatamente como a critica das redes sociais percebeu o comportamento de Marcos, exemplo notável da supressão de toda a distância. A chave do respeito para Esquirol é: a distância justa. Não há medidas perfeitas, métodos de cálculo, cada um achará conforme sua capacidade de perceber, o ponto. Por isso fica claro que ambos ultrapassaram a distância justa, passaram do limite. No passado, a aproximação e respeito pelo sagrado impunha uma distância exata, e ultrapassamento era considerado sacrilégio. “Acontece com o sagrado absoluto o mesmo que com o fogo: queima se nos aproximamos excessivamente dele, não tem efeito se permanecemos muito longe. Entre esses dois extremos está o fogo, que aquece e ilumina” (p.52).

 

Voltando às origens

O respeito é a consciência de nossa finitude, exige aproximar-se sem tocar, sem manipular, oposto da indiferença, exige reflexão. Não foi a imagem mais agressiva justamente a de Marcos quase enconstando o dedo em Emily, esse aproximar-se quase tocando não é exatamente o principio da violência? Por isso, a etimologia da palavra: a palavra respectus deriva do verbo respicere, que significa “olhar atrás”, “olhar atentamente” “tornar a olhar”. Respicere tem a mesma raiz que spectare, ver, olhar, contemplar. Spectalum é o que se olha, respicio, é o olho atentamente, e respectus, o resultado do olhar atento. Assim, o respeito é tanto o olhar como o resultado desse olhar, olhar que olha duas vezes ou mais, com especial atenção. Esse esforço, afirma Esquirol, vale apena porque se olharmos bem, descobriremos o que vale ser objeto de consideração.

Por essa razão, na visão do filósofo coreano Byung Chul-Han, em sua obra “No enxame”(Relógio d’Agua, 2016), é preciso se preocupar como a ascensão das mídias sociais. São elas que substituem o pathos da distância pelo olhar sem distância, olhar típico do espetáculo. É a distância, concordam Han e Esquirol, que distingue respectare do spectare “uma sociedade sem respeito, sem o pathos da distância, desemboca numa sociedade do escândalo”(Han, p. 13). E ambos fatos foram escandalosos para a sociedade, foram a prova de que seus promotores são atores sem respeito algum.

O autor vai além. Para Han, o respeito é uma condição fundamental da esfera pública “onde o respeito desaparece, o que é público decai”. Vivemos a decadência da esfera pública porque vivemos numa crescente falta de respeito, e simultaneamente, uma é a causa de outra “A dimensão pública pressupõe, entre outras coisas, que, movido pelo respeito, o olhar se afasta da esfera privada”. O respeito é elemento essencial do espaço público, mas a ausência de distância e a exibição do privado, fazem que o privado se torne público, fim do decoro.

A acusação de Han dirige-se as mídias em geral “a mediatização digital lesa o respeito”, a firma. Nesse ponto, o argumento de Han desenvolve o pensamento de Esquirol: enquanto para este último, está na razão tecnociêntifica a razão da corrosão do respeito, Han exemplifica com o universo digital como modelo que produz a mistura do público e do privado, que, lembra o filósofo, estava presente no espaço completamente fechado ao exterior do templo grego, o adyton, técnica do isolamento e da separação, que gera veneração e admiração.

 

As mídias sociais

Fonte: pixabay

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Na origem da cultura sem respeito estão as mídias sociais em sua exposição pornográfica da intimidade e da esfera privada. As redes sociais expõem encontros de famílias, momentos que deveriam ser íntimos porque fazem a privatização dos meios de comunicação, transferem para o espaço privado recursos de comunicação. Han cita o semiólogo Roland Barthes, para quem a vida privada é uma “zona de espaço, de tempo, em que não sou uma imagem, um objeto”: hoje, para Han, não se tem vida privada porque não há esfera onde não sejamos imagem, não sejamos objeto. A invenção do Google Glass é justamente transformar o olho humano numa câmara, afirma o autor.
Outro elemento que faz com que as mídias digitais impulsionem o movimento em direção ao fim do respeito é que elas eliminam o nome ”O respeito está ligado ao nome. O anonimato e o respeito excluem-se mutuamente. A comunicação anônima que a digitalização promove, opera uma destruição maciça do respeito” (Han, p14).

Há, na internet, a proliferação de shitstorms (tempestades de merda), representadas pelas ondas de indignação e injúrias que ocorrem nos meios de comunicação e é seu anonimato que as torna tão violentas “O nome e o respeito estão ligados. O nome é a base do reconhecimento, que se produz sempre em termos nominais. As práticas como a responsabilidade, a confiança ou a promessa são também de natureza nominal. A confiança pode ser definida como fé no nome”, afirma Han (p.15). Que faz o digital: cinde mensagem e mensageiro, informação e emissor, isto é, destrói o nome.

A comunicação digital torna possível a falta de respeito e discrição, e por isso, emergem a injúria e a indignação. As redes possibilitam que o afeto seja objeto de transmissão imediata, transforma o meio digital em meio afetivo, os participantes da comunicação não consomem informações de forma passível, ao contrária, geram-nas de forma ativa, sem hierarquia, sem separação do emissor do receptor, ocorrendo num sentido, de cima para baixo e com isto, destruindo a ordem do poder. O respeito forma-se através de atribuição de valores pessoais e morais: é o declínio dos valores que mina a cultura do respeito. Vivemos numa sociedade sem respeito recíproco.

Bibliografia

ESQUIROL, Josep M. O respeito ou o olhar atento. Uma ética para a era da ciência e da tecnologia. Belo Horizonte, Autêntica, 2008.
HAN, Byung-Chul. No enxame: reflexões sobre o digital. Lisboa, Relógio d’Agua, 2016.
SENNET, Richard. Respeito. A formação do caráter em um mundo desigual. Rio de Janeiro, Record, 2004.

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.

 

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