Artigo de Sidinei José Brzuska
Ouço no rádio, com alguma frequência, notícias assim: a brigada militar prendeu hoje, mais uma vez, fulano de tal, cometendo crime de roubo no centro de Porto Alegre.
– Detalhe, Rosa, é a décima quinta vez que fulano está sendo preso por esse tipo de crime.
– Tem coisas que a gente não consegue entender, Rafael. Como é que uma pessoa pode ser presa tantas vezes. Tudo bem que o Judiciário tem que cumprir a Lei. Mas como que uma pessoa, com essa ficha, estava solta? O ouvinte não aceita e não consegue compreender como isso pode seguir ocorrendo. É um retrabalho para a polícia.
Daí, entra outro jornalista, por telefone.
– Pois é Rosa. Esse é o Brasil, o país da impunidade. Vai lá na Europa, nos Estados Unidos, para ver se isso acontece!? Mas aqui é o Brasil né. Todos os dias a polícia fica prendendo esse tipo de gente, que não devia ter saído da cadeia. Mas vamos lá… sobre o futebol….
Quando notícias assim são veiculadas em jornais digitais surgem dezenas, centenas de comentários, apontando uma única solução para o problema. Uma bala. Mata e resolve de uma vez.
O João (o nome é verdadeiro) é uma dessas pessoas. Tem 28 anos, olhos claros e já perdeu a conta de quantas vezes foi preso. Abandonou a escola no 2º ano do ensino fundamental. Entra na sala de audiências com o cabelo ensebado. Senta e fica inquieto. Não para de se mexer. Fica olhando para todos os lados. Tá na fissura, como se diz. Tem apenas breves momentos de calma ao contemplar a bela vista da cidade de Porto Alegre que o terceiro andar do Presídio Central proporciona.
Os dentes estão amarelados com cáries bem visíveis. Muito magro. As pontas dos dedos da mão direita estão queimadas e calejadas, de fumar restos de cigarros de maconha e marica de crack dentro do central, o que faz “todo os dias”. A camisa está molhada. Alguém deve ter lhe alcançado a roupa, pois é falta de respeito ir para a audiência sem camisa.
Pergunto se eu colocasse na mesa, maconha, cocaína ou crack, o que ele pegaria primeiro?
-Crack, responde prontamente, sem vacilar.
Peço que levante a camisa, deixando à mostra as costelas. Tem marca de tiro?
– Não. Só de “facãozasso”.
João, diga-me uma coisa, qual é a última lembrança que tu tens do teu pai? Os olhos azuis ficam mais brilhosos por um instante:
– “Uma ambrusilha”. “O pai teve lá em casa e fez uma ambrusilha. Depois, nunca mais”.
E quantos anos tu tinhas?
– oito anos.
E desde quando você mora na rua?
– desde os nove.
(…)
Esses detalhes o rádio não conta. Por isso os coloco aqui. O João voltará, um dia, para a rua. E talvez um dia encontre aquela bala, quando então diremos que foi feita justiça.