Tribunal Popular. A Luta por Direitos Humanos no Jardim Ângela

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

Tribunal Popular. A Luta por Direitos Humanos no Jardim Ângela. Wellington Pantaleão. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021, 216 p.

 

                                   

           

Começam a ser fortes e são muito bem-vindas as mobilizações que hoje colocam a justiça brasileira em xeque, e a demonstrar desconforto e desconfiança sobre se mostrar apta a cumprir seu fundamento numa sociedade democrática e republicana.

A participação institucional de amplos setores do sistema judicial e do ministério público nos acontecimentos que produziram o afastamento de uma presidência legitimamente eleita e impediram suspeitamente uma candidatura a mesma presidência, mais aprofundaram esse mal-estar.

Entre essas mobilizações, vejo e participo com empenho da convocação que está sendo feita nesse momento para instalar, no Brasil, um Fórum Social Mundial Temático Justiça e Democracia. A partir de uma convocação de entidades, organizações e movimentos que convidam, apoiam e se coordenam para o realizar, entre elas o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua,  os termos dessa convocação, numa apresentação ampla no dia 22/11, por meio do Programa de Gustavo Conde -https://www.youtube.com/watch?v=8lDcpkwl-v8  –  e de todas as organizações que se associam nessa rede de comunicação e que se designam a partir do seguinte ponto de partida: JUSTIÇA E DEMOCRACIA, necessidade de somar esforços para criarem iniciativas conjuntas de resistência, frente a esse desassossego.

 Motivados pelos processos dos fóruns sociais, estas organizações buscam ampliar contatos e agregar novos movimentos e organizações para, num primeiro momento, promover um espaço de encontros e de compartilhamentos de percepções e informações e, num segundo momento, buscar construir condições para ações concretas e coletivas frente a desafiadora conjuntura atual.

Para a centena de entidades convocadoras, tal como expressa a carta convocatória, os motivos e a urgência são conhecidos. A chamada sociedade moderna se acomodou ante as milhares de situações de violações de direitos humanos, com destaque especial ao escancarado racismo estrutural que nos assola e à manipulação da democracia através de técnicas cada vez mais sofisticadas de disseminação de notícias falsas. Toda a estrutura econômica e social se alimenta e está alicerçada nas desigualdades inerentes ao sistema capitalista, que leva ao extremo a exploração do trabalho humano, e mantém-se centrada não só no racismo, como na violência contra as mulheres e a comunidade LGBTQIA+, na segregação dos desiguais, na violação dos direitos dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, entre outras.

Conforme a Carta de Convocação, é preciso desnudar quem são os autores dessas violações, com especial atenção para a responsabilidade das instituições estatais, sem perder de vista as violações perpetradas também por pessoas, grupos, organizações e setores econômicos. É preciso denunciar todas as violações, criar um potente movimento de solidariedade nacional e internacional, somar esforços e buscar construir saídas. É preciso pensar alternativas, caminhos. E todos eles passam pela defesa intransigente da democracia e da justiça.

Toda essa disposição tem muita aderência aos enunciados propostos por Boaventura de Sousa Santos e em suas reflexões orientadas para uma revolução democrática da justiça, título de um livro de referência (Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez Editora, 3ª edição, 2011). Aliás, esses enunciados, aplicados à pesquisa que conduzi no interesse de edital do  Ministério da Justiça, mereceram da equipe do notável professor uma aquiescência, em termos, expressa no parecer pedido pelo MJ para avaliar o trabalho feito, valendo destacar do parecer – http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/15Pensando_Direito3.pdf  – a consideração em todo caso, embora abonadora mas que aponta para questões que se armam problematicamente para o futuro que se seguiu àquela conjuntura, sob muitos aspectos, desastrosa para o País e não só para o Sistema de Justiça: “A justiça brasileira está neste momento colocada perante o desafio da sua democratização. Trata-se de um desafio exigente sobretudo quando se têm em conta que o sistema judicial é um campo de conflito em que interesses económicos e corporativos têm forte incidência e tendem a prevalecer. A proposta analisada está consciente do grau de exigência desse desafio e procura enfrentá-lo com êxito ao tentar incorporar em um único modelo de agenda política: reflexão académica, pesquisa empírica, participação social e concertação política. Nesse sentido, deve ser saudada. Enquanto modelo de agenda política destinado a uma Secretaria de Estado, a proposta deve ser ressaltada pelo seu carácter inovador na medida em que busca aproximar poder político e justiça tendo em vista a transformação democrática de um e de outra”.

Agora, a Lumen Juris lança Tribunal Popular. A Luta por Direitos Humanos no Jardim Ângela de Wellington Pantaleão. Conforme a descrição da página da Editora, a obra é resultado da pesquisa realizada sobre as repercussões do Tribunal Popular do Jardim Ângela, realizado em 2002, quando a região administrativa da zona sul de São Paulo ainda figurava, segundo dados da época, com índices altos de homicídios. O autor apresenta outras experiências populares de tribunais, demonstrando com base na teoria, que essa prática se constitui em modelo legítimo e plural do direito, construído a partir das realidades locais de cada comunidade, por meio de processos emancipatórios enquanto sujeitos de direitos.

Penso que o livro de Wellington Pantaleão da Silva, eu o disse em prefácio, deve ser saudado por se concertar a essas mobilizações. Ao estudar o Tribunal Popular do Jardim Ângela, realizado no ano de 2002, compreendeu que ele se consistiu numa estratégia do Fórum em Defesa da Vida, movimento social articulado nos oitenta bairros que compõem o Jardim Ângela, para exigir a construção de um hospital e o reforço do policiamento. Em que pese o Poder Judiciário ter sido uma alternativa real para a demanda do Fórum, a incerteza sobre os resultados possíveis e a letargia que tomaria conta do processo fizeram com que houvesse a percepção de que a interação social junto aos poderes públicos poderia ser mais efetiva.

Seu estudo, trazido para o livro, constata que “violações de direitos são passíveis de serem mitigadas, por meio da emergência de novos sujeitos coletivos que consensuam pelas suas identificações com o problema, a fim de construir uma perspectiva plural do direito positivado pelo Estado burguês, ao realizar processos de poder dual, ainda que em contexto não revolucionário”.

Com base em autores que estudaram a estratégia popular de julgamento moral ou político de temas que mobilizam o social e requerem protagonismo comunitário, o livro põe em relevo uma iniciativa popular que tem sido objeto de muita atenção dos estudiosos. Eu próprio tratei do tema sob a mesma perspectiva que o Autor, articulando teoricamente as implicações de dois conceitos que são pressupostos ao fenômeno estudado: o de dualidade de poderes e o de pluralismo jurídico.

Com efeito, meu texto – Para uma Crítica da Eficácia do Direito (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1984), emprestou ao Autor, quando orientei trabalho acadêmico na Universidade de Brasília, essas categorias e lhe ofereceu as indicações bibliográficas que fundamentaram a sua análise da realidade vivenciada no Jardim Ângela. Assim é que estão presentes no seu livro as leituras de Michel Foucault (Sobre a justiça popular, in Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979); de Boaventura de Sousa Santos (Justicia Popular, Dualidad de Poderes y Estrategia Socialista. Papers: Revista de Sociologia 13, 1980; A participação popular na administração da justiça nos países capitalistas democráticos. Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. A Participação Popular na Administração da Justiça. Lisboa: Livros Horizonte Lda, 1982; Law and Revolution in Portugal: The Experiences of Popular Justice After the 25th of April 1974. The Politics of Informal Justive, vol. 2. Academic Press, inc, 1982). Também diretamente ligado a uma experiência de tribunal popular, a sentença proferida por José Paulo Bisol Habeas da SQN 110. Tribunal Popular in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). O Direito Achado na Rua. Brasília: Editora UnB/Curso de Extensão Universitária à Distância/Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos/Universidade de Brasília, 1987).

Para além do estudo de caso específico, com a caracterização da realidade do Jardim Ângela que proporcionou a experiência de um tribunal popular, o livro traz um registro valioso na forma de considerações sobre a composição dos Tribunais Populares, identificando experiências de Tribunais Populares no Brasil de modo a demonstrar que não apenas no Jardim Ângela, naturalmente, mas em outras localidades do Brasil, as comunidades se reúnem para levar pelo caminho do pluralismo jurídico, a releitura do direito.

No livro, os registros são atualizados para situar em 2008, a instalação de um Tribunal Popular no salão nobre da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, com a finalidade de processar e julgar o Estado por seus crimes praticados, em sua maioria, contra a população jovem e negra das periferias, além de outras violações.

Nesse Tribunal, anota o Autor, foram realizadas quatro sessões temáticas, sendo que a quinta e última sessão foram realizadas para julgar o Estado brasileiro. A primeira sessão foi destinada às ações de violência policial verificadas no Complexo do Alemão, na cidade do Rio de Janeiro; a segunda sessão teve como foco a violência estatal no sistema prisional e as execuções sumárias ocorridas na Bahia contra a juventude negra; a terceira sessão esteve voltada para os crimes de maio de 2006 ocorridos em São Paulo e as práticas sistemáticas de execuções sumárias; a quarta sessão voltou-se especificamente para a violência estatal contra os movimentos sociais e a criminalização das lutas sindicais por terra e meio ambiente.

Para o Autor foi importante trazer ao trabalho um trecho da sentença proferida pela Juíza Kenarik Boujikian (da Associação Juízes para a Democracia) convidada pelo Tribunal Popular, que reafirma a urgência da construção do direito por meio do pluralismo jurídico e de suas formas populares de se dar e se exercer.

A obra destaca também, o Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil, também conhecido pelo “Tribunal do Golpe”, que teve seus trabalhos conduzidos pelo Professor Doutor Juarez Tavares, professor titular da UERJ e Professor Visitante da Universidade de Frankfurt.

            Segundo o Autor: “o referido Tribunal se destaca em sua condução, quando comparado aos demais Tribunais Populares, por ter sido levado adiante por um jurista, professor e advogado, que, creio, tinha um perfil bastante adequado ao tipo de matéria a ser apreciada e à linguagem do público presente. Nesse caso, não existia um representante do Estado para julgar as causas ali apresentadas, o que, a meu ver, restou claro nos demais Tribunais. Ainda que populares, referidos Tribunais contaram com personalidades ligadas à estrutura estatal para dizer o direito e por essa razão, torna-se difícil desassociar a pessoa à instituição”.

            No seguimento dessas iniciativas, estabelecidas depois que já concluída a pesquisa que dá conteúdo ao livro, e por instigação das questões candentes que expõem o esgarçamento dos sistemas de justiça, ganha adesão e relevância a instalação em curso de um Tribunal Popular Internacional sobre Sistema de Justiça.

            Entre as entidades e movimentos sociais que participam da construção do tribunal, estão: Articulação Justiça e Direitos Humanos – JusDh, Plataforma dos movimentos sociais pela Reforma do Sistema Político, Terra de Direitos, INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos, Cáritas Brasileira, Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – Renap/DF, Associação de Juízes para Democracia – AJD, Intervozes, Levante Popular da Juventude, Artigo 19, MAM – Movimento Pela Soberania Popular na Mineração, Instituto Pro Bono, UnB – Grupo O Direito Achado na Rua, AATR – Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais, Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social – Cendhec, Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, MNDH – Movimento Nacional de Direitos Humanos, Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ, ACT Promoção da Saúde, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Central de Movimentos Populares – CMP.

            O Tribunal Popular Internacional sobre Sistema de Justiça é uma iniciativa desenvolvida desde 2019 por diferentes movimentos sociais, sociedade civil organizada, entidades e organizações, com o objetivo de popularizar o debate público sobre a complexa relação estabelecida entre o sistema de justiça brasileiro e a sistemática violação aos direitos humanos. Na Universidade de Brasília, assim como em outras universidades públicas, ele assume o desenho de projeto de extensão, engajando estudantes de diferentes cursos de graduação e pós-graduação com a metodologia dos tribunais populares, que historicamente tem sido aplicada por movimentos sociais para denunciar graves violações aos direitos humanos. São objetivos específicos do projeto: i. Denunciar violações de direitos humanos cometidas pelo Sistema de Justiça brasileiro; ii. Construir parâmetros sobre o Sistema de Justiça que queremos; iii. Fomentar a utilização local da metodologia dos tribunais populares; iv. formar e informar a sociedade sobre o funcionamento do sistema de justiça e o seu impacto nos Direitos Humanos e na democracia.

            Na obra o Autor alinhava enunciados conclusivos destacados do arranjo analítico dos aspectos teórico e empírico relativos à pesquisa que deu origem ao livro. Cada um desses enunciados serve de descritor explicativo para o aspecto destacado para análise. Quero me ater à conclusão geral que o estudo de caso proporciona, para pensar a realidade brasileira na conjuntura. Diz o Autor: “onde as eleições não são respeitadas e se apeia presidente eleito do cargo por meio de golpe parlamentar, poderá reforçar as forças populares e democráticas deste país, que diante dos retrocessos verificados em algumas pautas, como a PEC dos gastos públicos e as reformas da previdência e trabalhista, buscarão, se não no âmbito nacional, mas no âmbito local, pautar suas demandas com peso de representação política”.

É aí que a “temática me provoca a pensar sobre passos futuros a serem dados, devido ao grande interesse pelo tema” quando mais “se espraia nos dias de hoje” a necessidade de mobilizar “as forças populares e democráticas”. A estratégia do tribunal popular se mostra valiosa para pautar no simbólico da ação política, um protagonismo potente porque carregado de eticidade e com clara perspectiva de alargamento do acesso democrático à justiça e que se tem mostrado extremamente apto para a abertura de espaços para a ampliação das condições democráticas de realização da justiça em nosso país.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

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