Capital e trabalho constituem uma totalidade: um complementa o outro; um não existe sem o outro. Não é possível conceber trabalho assalariado em uma racionalidade diversa daquela capitalista. Por isso, Marx já referia que o capitalismo é tendencialmente favorável à maximização da exploração. O trabalhador assalariado é vendedor (da força de trabalho) e comprador (das demais mercadorias – consumidor). Já o capitalista, por sua vez, é comprador (da força de trabalho) e vendedor (da mercadoria). Ambos perseguem legitimamente o maior benefício nessa “relação”. Estão, portanto, em lados contrapostos. Curiosamente, hoje ganha espaço o discurso de que capital e trabalho são aliados, ambos pretendem o mesmo: o avanço da economia. Em nome desse discurso, torna-se possível defender a terceirização como algo bom para o trabalhador.
Trata-se de uma retórica perversa. Basta conversar com um trabalhador terceirizado para saber. Basta olhar a história. Exatamente porque estão em lados opostos, o capital sempre lutou contra a positivação de direitos dos trabalhadores, contra intervenções que implicassem limitações ao seu natural anseio de lucro. Não é diferente em relação à terceirização. Terceirizar é uma forma de reduzir custos. Sabemos bem que custos são esses. Regulamentar e ampliar a terceirização constitui medida que necessariamente atende a apenas um dos lados dessa relação: quando o capital ganha, o trabalho perde.
O discurso de que regulamentar a terceirização é algo positivo para os trabalhadores parte do pressuposto do mal menor. A comparação daqueles que defendem o PLC 30/2015 se dá entre o que diz o texto legal e o que estabelece a súmula 331 do TST. Se a terceirização é um fato e a realidade revela distorções nessa prática (como a facilitação do trabalho infantil ou em condições análogas a de escravo), melhor regulá-la do que “manter na informalidade mais de doze milhões de brasileiros”, que hoje já são terceirizados. Ocorre que esses trabalhadores, caso combatamos a terceirização, voltarão a ser contratados diretamente. Para eles, em lugar da precarização, haverá o vínculo direto com o verdadeiro empregador da força de trabalho, hoje eufemisticamente chamado “tomador de serviços”. Haverá responsabilidade, identidade de classe, visibilidade. Tudo isso sem que lei alguma precise ser editada. Tudo isso a partir do que determina a própria Constituição. O Direito do Trabalho – é bom que se relembre – já nasceu desafiando os fatos. Na contramão da forma como então eram reguladas as relações de trabalho, trouxe consigo a intervenção na vontade, para limitar as possibilidades de exploração do trabalho humano e impedir a redução do trabalhador à condição de coisa. Sabemos bem que toda essa disciplina protetiva é apenas um paliativo para a realidade objetivamente díspare entre capital e trabalho. Minimiza danos que não consegue, nem quer combater. Ainda assim, caracteriza-se como um parâmetro de civilidade, um mínimo sem o qual não é possível viver em sociedade.
Esse mínimo, na atual ordem constitucional, é a relação de emprego: uma relação jurídica entre dois sujeitos, que não admite atravessadores. O discurso do mal menor, portanto, não se sustenta sob ângulo algum. Perde-se em si mesmo e contraria as raízes do Direito do Trabalho. No próximo dia 29 de maio haverá uma greve geral no Brasil: estudantes, sindicatos e sociedade manifestarão contrariedade a esse retrocesso representado pelo PLC 30/2015. É importante participar desse momento histórico, para que não sejamos depois assombrados pelo peso da inércia que dará contornos ao futuro próximo das relações de trabalho. Não nos omitamos e, sobretudo, não aceitemos argumentos fáceis, repetidos há mais de dois séculos, que nada mais fazem do que maquiar a realidade que insiste em se revelar na face do trabalhador que sofre diretamente os efeitos da terceirização.
Valdete Souto Severo. Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. Especialista em Processo Civil pela UNISINOS, Especialista em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela UNISC, Master em Direito do Trabalho, Direito Sindical e Previdência Social, pela Universidade Europeia de Roma – UER (Itália), Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade da República do Uruguai (UDELAR), Mestre em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS. Doutoranda em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Diretora e Pesquisadora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS