Coluna Reflexões sobre Direito Público e Democracia, por Felipe Bizinoto Soares, articulista do Jornal Estado de Direito
Sob o ponto de vista de um ordenamento jurídico (mais para o lado ocidental) contemporâneo, fato é que o diploma jurídico de maior hierarquia dentro de um Estado é a Constituição, a qual, segundo L. R. Barroso[1], é concebida como o conjunto de normas inscritas no texto fundamental estatal e que dizem respeito às decisões políticas fundamentais ligadas à estruturação e às finalidades do Estado, às posições jurídicas fundamentais.
Como forma última e mais rebuscada para resguardar tanto a Constituição em seu sentido formal (= diploma de maior hierarquia) quanto em seu sentido material (= preceitos relativos ao Estado e às posições jusfundamentais) é que existe o chamado controle de constitucionalidade, que consiste em um juízo de verificação da compatibilidade de determinado ato estatal com os requisitos de validade inscritos na Constituição[2].
A partir dessa visão de última ratio é que, p. ex., a Constituição do Brasil (CRFB/1988) estabeleceu que ‘’Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal’’ (art. 102, I, a).
Essa perspectiva brasileira do paradigma do juiz atém-se a uma visão certamente limitada no sentido de que o que é jurídico ou não passa direta ou indiretamente pelo filtro constitucional. Ocorre que o filtro constitucional, então, é o parâmetro máximo dentro de um sistema, surgindo a seguinte dúvida: há como analisar a compatibilidade de normas constitucionais em relação a algum outro parâmetro (p. ex., o Direito internacional ou alguma supralegalidade não positivada)?
É a partir dessa dúvida que Otto von Bachof[3] desenvolveu a chamada teoria da inconstitucionalidade das normas constitucionais, a qual parte da no ambiente da Alemanha pós-guerra, na década de 1950, o Tribunal da Baviera (VerfGH da Baviera) proferiu determinadas decisões no sentido de afirmar que certas normas constitucionais originárias da Lei Fundamental violavam o Direito suprapositivo, baseando-se a Corte em certa ideia de justiça para conformar o Direito positivo a determinados princípios suprapositivos.
Antes de ingressar, porém, na aplicação da teoria acima ao ambiente jurídico brasileiro, cabe uma digressão de linhas gerais acerca da diferença entre Poder Constituinte e Poder Constituído (também chamado de Poder Constituinte Derivado).
O Poder Constituinte, também chamado de Poder Constituinte Originário, é concebido como o poder político que inaugura uma ordem jurídica sem se ater a predeterminados preceitos materiais (ilimitado) ou processuais (incondicionado)[4].
Segundo o desenvolvedor de tal divisão, Emmanuel J. Sieyès[5], a Constituição é o documento por meio do qual uma nova ordem jurídica é criada dentro de certos limites espaciais e em relação a determinado conglomerado populacional. O Poder Constituinte seria a manifestação inicial, ilimitada e incondicionada que cria a Constituição.
Por outro lado, o Poder Constituído, também chamado de Poder Constituinte Derivado, é aquele criado pela Constituição. Trata-se, segundo Emmanuel J. Sieyès[6], de um poder jurídico inaugurado, material (limitado) e formalmente (condicionado) submisso aos preceitos constitucionais.
É a partir dessa divisão entre Constituinte e Constituído que Luiz A. David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior[7] afirmam que o Poder Constituído compreende o conjunto de funções, entes, entidades e órgãos criados pela Lei Fundamental. Rosah Russomano[8] traça um escorço histórico sobre a teoria da tripartição funcional do Poder e demonstra que Executivo, Legislativo e Judiciário são Poder Constituído, ainda mais por estarem sujeitos ao quadro de competências que cada função estatal exerce dentro do território.
Feitas essas considerações, volta-se à ideia da inconstitucionalidade das normas constitucionais originárias, teoria esta que foi inicialmente aceita no ambiente alemão, mas que posteriormente o próprio Tribunal da Baviera (BVerfGE 3, 225) repeliu ao afirmar que não há hierarquia entre normas constitucionais elaboradas pelo próprio Constituinte.
Além disso, uma questão é no nome dado à teoria: inconstitucionalidade de normas constitucionais seria uma contradictio in terminis, pois o parâmetro utilizado por Otto von Bachof[9] não é o texto constitucional, e sim um conjunto normativo supralegal, parâmetros de justiça com os quais o sistema positivo deveria se conformar. Em última instância, a hierarquia interna dentro de uma mesma Constituição estaria sustentada em normas acima do texto constitucional, p. ex., a dignidade humana e o devido processo jurídico. Por isso, haveria um controle de supraconstitucionalidade, uma teoria da ‘antisupraconstitucionalidade’ das normas constitucionais originárias.
Sob o viés prático constitucional brasileiro, pergunta-se: poderia o Judiciário, na figura do Supremo Tribunal Federal, exercer o controle de supraconstitucionalidade? Poderia a Corte Constitucional decidir que certa norma originária da CRFB/1988 é incompatível com algum ideário de justiça mais ou menos consolidado no âmbito internacional e na história brasileira?
A histórica constitucional brasileira de 1988 responde às perguntas acima a partir de duas correntes. A primeira foi sustentada pelo Governo do Rio Grande do Sul na ação direta de inconstitucionalidade (ADI) n. 815-3. A ideia desta vertente é de que há ideários mais ou menos consolidados na humanidade e que são superiores aos textos constitucionais por serem, justamente, pautados na justiça e em algo que transborda as fronteiras estatais.
A segunda corrente também consta no referido procedimento de fiscalização de compatibilidade e nutre visão antagônica à primeira corrente, afirmando que não há como haver referido controle. Em síntese, a ideia-base dessa vertente é a unidade da Constituição, que parte da ideia formal-constitucional de inexistência de hierarquia entre as normas constitucionais[10].
Das duas vias, a segunda é a que tem mais sustento para a contemporaneidade. Explica-se a partir de uma visão sociológica, outra filosófica e uma última jurídica.
Sobre a perspectiva sociológica, Zygmunt Bauman[11] atesta que a sociedade encontrou progressividade na velocidade no processo erosivo das estruturas morais a partir dos desestruturalistas (particularmente em F. Nietzsche). A sociedade hodierna não tem sustentos fortes, suas fundações são líquidas e, portanto, são amórficas. Socialmente dizendo, a sociedade não tem valores comuns, pois o estatuto moral universal kantiano foi desmantelado, deixando um mundo líquido no qual as pessoas tratam umas às outras tais quais produtos, bens consumíveis (e, portanto, descartáveis).
Corroída a base social, isso se reflete na base filosófica: consoante Michael J. Sandel[12], a ideia de justiça (da qual parte a primeira corrente) é extremamente volátil e passa por acepções múltiplas dentro de uma mesma época: os utilitaristas, os libertaristas, os liberais, os solidaristas, de Aristóteles a Alasdair MacIntyre. As correntes que permeiam a noção de justiça são várias e mais dúbias nos dias de hoje em razão da falta dos mencionados sustentáculos sociais.
Que nem acontece (não apenas) no Brasil atual, deixar a alguns – particularmente aos magistrados – o preenchimento de pautas jurídicas mediante concepções individuais de justiça leva a riscos de instabilidade jurídica, abala a estrutura jurídica, a qual tem como um dos seus cernes a segurança. Não é à toa que desde o início do séc. XX há diversos juristas tratando sobre a teoria da decisão judicial, eis que o Estado-Juiz, quem concentra o maior grau de anseios sociais, baseia-se em textos com maior elasticidade, ainda mais em razão das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados.
No plano jurídico, duas razões podem ser suscitadas para que a corrente negativa à viabilidade da aplicação da teoria das normas constitucionais originárias ‘antisupraconstitucionais’. A primeira diz respeito à mencionada noção de unidade da Constituição: o Constituinte originário não criou hierarquia entre as normas constitucionais. Segundo J. J. Gomes Canotilho[13], as normas constitucionais constantes originariamente numa Constituição (em sentido) formal têm igual dignidade.
Uma segunda razão é íntima à unidade e ao Poder Constituído. De acordo com Celso R, Bastos[14], as funções de Estado compõem o Poder Constituído e, por isso, encontram seu fundamento na Constituição, expressão do Poder Constituinte.
Como função submissa ao texto constitucional, o Judiciário brasileiro está atido ao que consta na Lei Fundamental, a saber, exercer ‘’a guarda da Constituição’’ (art. 102), não do Poder Constituinte.
Ambas as ideias acima foram sagradas na ADI 815-3, de relatoria do Ministro Moreira Alves, asseverando que ‘’A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras é incompossível com o sistema de Constituição rígida’’.
Sobre o primeiro motivo jurídico, a Corte Constitucional, no julgado mencionado, asseverou que ‘’Na atual Carta Magna ‘’compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição’’ (artigo 102, ‘’caput’’), o que implica dizer que essa jurisdição lhe é atribuída para impedir que se desrespeite a Constituição como um todo’’. Com relação ao segundo motivo, constou que ao Supremo ao Supremo não cabe ‘’exercer o papel de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto da mesma Constituição’’.
E mais: colocando em xeque a terminologia adotada por Otto von Bachof, salientou o Ministro relator que a alegada violação suscitada pelo governo estadual ‘’não importa questão de inconstitucionalidade, mas questão de ilegitimidade da Constituição (…), e para resolvê-la não tem o Supremo Tribunal Federal (…) competência’’.
A segunda vertente sagra uma das noções basilares do Direito, qual seja, a de segurança que o fenômeno jurídico confere (ou, ao menos, tenta) aos fatos sociais relevantes, eis que exprime uma perspectiva dotada de maior previsibilidade e escapa de visões fragmentadas (e muitas vezes contrapostas a outras) de justiça, bem como lega às Cortes Constitucionais, guardiãs últimas das ordens constitucionais, um papel de suma importância, mas que não pode extrapolar ao que o próprio Constituinte, por meio da Lei Fundamental, legou a cada função de Estado.
Referências:
ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Verbatim, 2018.
BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? Trad. José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 2014.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
BASTOS, Celso Ribeiro. Elementos de Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1976.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Augusto de Souza Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. Afinal, o que é controle de constitucionalidade? Disponível em: https://estadodedireito.com.br/afinal-o-que-e-controle-de-constitucionalidade/. Acesso em 20 set. 2020.
RUSSOMANO, Rosah. Dos Poderes Legislativo e Executivo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1976.
SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Trad. Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. Qu’est-ce que le tiers État? Sydney: Wenworth Press, 2018.
Notas:
[1] Curso de Direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 107.
[2] PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. Afinal, o que é controle de constitucionalidade? Disponível em: https://estadodedireito.com.br/afinal-o-que-e-controle-de-constitucionalidade/. Acesso em 20 set. 2020.
[3] Normas constitucionais inconstitucionais? Trad. José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 2014.
[4] ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Verbatim, 2018, pp. 44-45.
[5] Qu’est-ce que le tiers état? Sydney: Wenworth Press, 2018.
[6] Idem.
[7] Curso de Direito constitucional. Cit., p. 47.
[8] Dos Poderes Legislativo e Executivo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1976, pp. 25 e ss.
[9] Normas constitucionais inconstitucionais? Cit., pp. 48 e ss.
[10] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional: teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 174; MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 33. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 533; AGRA, Walter de Moura. Curso de Direito constitucional. 9. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, pp. 684-685.
[11] Modernidade líquida. Trad. Plínio Augusto de Souza Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 7 e ss.
[12] Justiça: o que é fazer a coisa certa. Trad. Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
[13] Direito constitucional: teoria da Constituição. Cit.
[14] Elementos de Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1976, pp. 8-9.
* Felipe Bizinoto Soares de Pádua é Articulista do Jornal Estado de Direito, Advogado, Pós-graduado em Direito Constitucional Material e Processual, Direito Registral e Notarial, Direito Ambiental Material e Processual pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É monitor voluntário nas disciplinas Direito Constitucional I e Prática Constitucional na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É membro do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Justiça Constitucional: STF, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. |
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