Teoria Constitucional e Ciência Política em Países Subdesenvolvidos: uma imprescindível relação

A Constituição consubstancia-se, antes de tudo, numa tentativa de contenção do poder político. Logo, a Constituição tem, como principal intuito, pode-se dizer, a dominação do sistema político pelo jurídico. Convém dizer que é um grande desafio a que o constitucionalismo se propõe.

Também é importante destacar o conteúdo inegavelmente político das Constituições, sendo, em momentos da história muito recente, inclusive, consideradas pelo seu viés unicamente político. Nesse sentido, recorda-se que a discussão de força normativa da Constituição deu-se apenas no século XX, com intensidade, de fato, após a Segunda Guerra Mundial. Ademais, pode-se incluir que o Direito – e assim, evidentemente a Constituição – é obra do poder político. Nessa perspectiva, Norberto Bobbio bem destaca essa relação, ao afirmar que “direito e poder são duas faces de uma mesma moeda: só o poder pode criar direito e só o direito pode limitar o poder”[1].

Nesse sentido, o elemento político encontra-se no próprio impulso do nascer constitucional como documento normativo e também na sua condução quanto efetivação, incluindo, aqui, a atuação do Poder Judiciário e também o próprio conteúdo constitucional. Nesse sentido, a Constituição acaba por representar a interpenetração entre os dois sistemas, o político e o jurídico. E isso, por si só, já justifica a imprescindibilidade da Ciência Política para estudar e entender uma Constituição de modo pleno, pois se consubstancia na área do conhecimento que permite estudar e compreender as forças políticas que a rodeiam e, por vezes, justificam seus dogmas.

Feitas tais considerações, compreende-se que o constitucionalismo e a política estão entrelaçados, formam uma relação muito estreita. Compreender esse movimento é também compreender a Constituição em sua completude, e isso inclui compreender suas forças sociais e políticas, que constitui o próprio conceito de Constituição. Nesse sentido, reafirma-se, aqui, a concepção dialética de Constituição (de Rudolf Smend e Herman Heller) [2], de modo que se concebe a impossibilidade de compreender o Direito a partir do seu isolamento com a realidade social. Que o significado da Constituição, em sua completude, só pode ser obtido a partir da conexão entre norma objetiva e realidade social.

Para tanto, a dogmática do Direito Constitucional, não é capaz, sozinha, de compreender a Constituição de 1988 em sua totalidade, razão pela admite-se a imprescindibilidade da Ciência Política para compreensão do documento normativo.  Assim, a compreensão de tais forças políticas e sociais perpassa pelo estudo, inevitável, da ciência política.

Tem-se a ideia de que a política nasce junto ao surgimento do Estado ou, é possível afirmar, que uma organização política surge antes mesmo que a própria formação do Estado (em seu sentido jurídico), sendo este compreendido como uma relação assimétrica, em que há uma ampla gama de governados, alguns governantes e o uso da força coercitiva.

De tal modo, cumpre assinalar, que o Direito Constitucional nasce a partir da Teoria do Estado, área do conhecimento que estuda a formação do Estado, seus modelos e instituições, bem como, em dado momento, o exercício do poder dentro dessas estruturas. Nesse sentido, a partir do constitucionalismo moderno, em que a Constituição passa a ser o documento legitimador do poder político, ela, juridicamente, também passa a dispor sobre as estruturas do Estado, tendo, precisamente, nesse momento da história, previsto em si toda a organização estatal, como a tripartição dos poderes, o federalismo, a república, o parlamentarismo, dentre outros. Matérias antes reservadas à Teoria do Estado que passam também, inevitavelmente, a ser objeto do Direito Constitucional, tendo, portanto, as duas áreas, também muitos pontos de convergência.

A forma como o poder político se movimenta nessa estrutura estatal, de igual modo, era objeto da Filosofia Política e também da Teoria do Estado. A Ciência Política ganhou espaço como ciência autônoma apenas no final do século XIX, ainda depois do surgimento do Direito Constitucional como área autônoma dentro do Direito. Ademais, antes de ser vista com ciência autônoma, a Ciência Política era vista e estudada dentro do Direito Constitucional, tendo sido, este, considerado “uma das Ciências Políticas”. E como bem aponta Paulo Bonavides, o influxo do Direito Constitucional sobre o desenvolvimento da Ciência Política poderá, por vezes, diminuir, mas nunca se extinguir, pois o Direito Constitucional abrange ampla área da coisa política, sendo as instituições do Estado a que se dedica, o lugar em que se desenrolam “os principais fenômenos do poder político constitucionalmente organizado”.[3]

Veja que a relação entre essas áreas, Ciência Política, Direito Constitucional e Teoria do Estado, em especial as duas primeiras, que se quer enaltecer aqui, são estreitas. E será ainda mais estreita a relação, quase que uma relação de interdependência, em países subdesenvolvidos. Segundo Bonavides, sociedades menos desenvolvidas e mais atrasadas economicamente sofrem de maior instabilidade e oscilação de suas instituições políticas. De igual modo, o Direito Constitucional será menos eficaz e menos capaz de organizar as instituições de modo efetivo, ocorrendo “um crescente hiato entre a ordem constitucional estabelecida e a realidade política”, diminuindo a “possibilidade de toda a vida política – inclusive o comportamento e o poder de decisão dos indivíduos e grupos – recair na órbita do direito regulamentado e das instituições criadas”.[4] Sendo assim, assinala que em países nominalmente democráticos as disposições constitucionais operam, minimamente, nas instituições de poder, enquanto nos países desenvolvidos operam de forma máxima. [5]

Em sentido semelhante, Georges Burdeau aponta que, em sociedades estáveis em que os interesse divergentes puderam ser conciliados, o Direito Constitucional aparece em primeiro lugar, pois as regras cobrem maior parte da atividade política.[6] Nesses países – completa – “a vida política real e a vida política institucionalizada juridicamente tendem a coincidir” (tradução nossa),[7] de modo que se pode compreender a vida política a partir do próprio Direito Constitucional. Nessas sociedades, portanto, o Direito Constitucional atua por sua própria teoria, a explicar suas instituições previstas normativamente a, naturalmente, se espelharem na realidade em que opera.

No entanto, nas sociedades subdesenvolvidas, a vida política real e a vida política juridicamente institucionalizada são dotadas de inúmeras controvérsias que o Direito não é capaz de compreender unicamente pela perspectiva institucional normativa. Aqui, “o comportamento político e do funcionamento do poder transcorre fora das regiões oficiais ou do direito público legislado”, em que “A eficácia do sistema fica nesse caso preponderantemente sujeita à imprevisível ação de grupos de pressão, lideranças políticas ocultas e extensivas, organizações partidárias lícitas e clandestinas, elites influentes, que produzem ou manipulam uma opinião pública dócil e suspeita em sua autenticidade”. [8]

Veja que para compreender o caminhar das instituições normativas, nesses casos, só se faz possível se se compreende outros elementos para além do normativo, é dizer, as forças políticas, o processo de poder. É mais comum, é verdade, nesses países, os golpes de Estado, o atuar político ao arrepio da Constituição, as discrepâncias econômicas, os violentos privilégios, a seletividade do Direito, a dificuldade de universalização de direitos e implementação de uma democracia de fato, o descompasso entre realidade constitucional e Estado Constitucional, dentre outros. Aqui, o Direito Constitucional acaba por configurar “um conjunto formal de regras pelas quais a vida se ausentou”, aparecendo, a Ciência Política, “como disciplina apta a prestar contas da realidade”.[9]

Em países como o Brasil, em que o desafio latente e maior do constitucionalismo continua a ser a dominação do sistema político e a replicação de seu conteúdo normativo na realidade social, a Ciência Política é indispensável ao estudo do Direito Constitucional.

Num Estado Constitucional que vê passar trinta e seis anos de sua construção e permanece, em muitos e sensíveis âmbitos, sem reverberar na estrutura social (e institucional) de seu país, só pode se compreender por outra via, que não de seus dogmas, já que não assentam lugar na realidade. Portanto, faz-se imprescindível uma aproximação do Direito Constitucional com a Ciência Política, a compreender a Constituição em sua totalidade – tendo como perspectiva o conceito de Constituição a partir da concepção dialética – e também a lançar luzes em sua própria estrutura normativa e função, tendo em vista sua fonte e conteúdo político.

Ademais, a Ciência Política é capaz de aclarar as dificuldades de concretização, compreendendo as forças políticas e o pensamento político que rodeia a Constituição e que, de certa forma, a conduz. Portanto, diante da necessária ligação do Direito Constitucional com a Ciência Política pelos motivos expostos, enaltece-se, também, a necessidade do desenvolvimento da teoria social conjuntamente com o desenvolvimento da teoria constitucional.

 

 

[1] BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 7 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 23.

[2] SMEND, Rudolf. Constitucion y Derecho Constitucional. Trad. José M. Beneyto Pérez. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985; e HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Trad. Lycurgo Gomes da Mota. São Paulo: Martins Fontes, 1968.

[3] BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 23 ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p 46.

[4] Id. ibid., p 49.

[5] Id. ibid., p 49.

[6] BURDEAU, Gorges. Méthode de la Science Politique. Paris: Dalloz, 1959, p. 141

[7] “Dans une société stable, sûre d’elle-même où les inévitables oppositions d’interérêts et d’idées ne vont pas jusque’à abranler l’unité nationale foncière, le droit constitutionnel occupe la primière place. Il en est ainsi parce que ses règles couvrent la plus grande partie de l áctivité politique. Vie politique réelle et vie politique juridiquement institutionnalisée tendent à coïncider. Par conséquent on est enclin, sans recevoir des faits un démenti trop brutal, à considérer la totalité des phenoènes politiques sous l’angle du droit constitutionnel”. (BURDEAU, Gorges. Méthode de la Science Politique. Paris: Dalloz, 1959, p. 141).

[8] BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 23 ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p 49

[9] BURDEAU, Gorges. Méthode de la Science Politique. Paris: Dalloz, 1959, p. 141.

 

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Jessica Fachin

Em Estágio Pós-Doutoral (UnB). Doutora em Direito Constitucional (PUCSP). Mestre em Ciência Jurídica (UENP). Graduada em Direito (PUCPR) e Licenciada em Letras (UEL). Professora Substituta na Universidade de Brasília (UnB) e professora Permanente no Programa de Mestrado em "Direito, Sociedade e Tecnologias" das Faculdades Londrina. Membro do IAB - Instituto dos Advogados Brasileiros. Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB/SP. Advogada.

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