Tá lá um corpo estendido no chão – a cada duas horas uma mulher morre no Brasil

Coluna Ó Mulheres, por Luciane Toss, articulista do Jornal Estado de Direito

 

  • Luciane Toss[1]

   

     Milhares de mulheres são mortas todos os anos no Brasil. Nomear as mortes que se dão em cenários de desigualdade de gênero, com recortes importantes e alarmantes em relação à raça como feminicídio é um passo importante para visibilizar, não só  a violência, mas a negligência do Estado. O conceito, que surge em 1970, define um crime de ódio.

       O feminicídio é a expressão finalística das violências cometidas contra as mulheres em uma sociedade marcada pela construção de desigualdades de gênero, étnicas, econômicas, sociais e culturais. É quando a discriminação e a opressão se tornam morte.

       Isto não é um evento isolado. As mulheres costumam passar por episódios sistemáticos de violências até chegar ao óbito. São abusos sexuais, violências psicológicas, ofensas morais, coações patrimoniais e várias agressões físicas.

       Este artigo está repleto de estatísticas. Elas estão aqui para desconstruir o discurso dominante, masculino e heterossexual que legitima a opressão e a violência que machuca, desmoraliza e assassina mulheres todos os dias no Brasil.

       Aqui, a cada duas horas uma mulher morre e a cada dois minutos uma de nós sofre algum tipo de violência (o índice também cresceu 0,8%). Então mostrar, permanente e incessantemente, o quanto se assassinam mulheres por serem mulheres é absolutamente necessário não só por que o Estado, mas também porque a sociedade que continua entendendo que mulheres podem ser violadas, torturadas, encarceradas e mortas pelo simples fato de ser mulheres.

       O recente Mapa do Fórum Nacional de Segurança Pública divulgou que 1206 mulheres já morreram em 2019. Quatro por cento a mais do que em 2018 no mesmo período. A faixa etária preferencial são as mulheres de 30 anos. Sessenta e um por cento das mulheres são negras e 70,7% tinham no máximo ensino fundamental.

 

 

       Se formos falar em violência sexual, no ano passado, a marca é de 180 estupros por dia, sendo que dos 81,8% praticados contra o sexo feminino, 53,8% foram contra meninas de até 13 anos de idade.

       Em 8 estados brasileiros os índices de violência aumentaram e no Rio Grande do Sul, meu estado, se mata dez vezes mais mulheres do que no resto do pais.

 

 

       O crime é de autoria conhecida (determinada). Quase oitenta e um por cento (80,8%) dos assassinos está ou estava em casa: são maridos, companheiros, namorados, parceiros.

 

 

       Conforme as Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres (2016) o feminicídio é uma expressão utilizada para denominar as mortes violentas de mulheres em razão de gênero, ou seja, que tenham sido motivadas por sua condição de mulher.  O Código Penal Brasileiro tipifica o feminicídio como crime hediondo, como o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição de sexo feminino, quando o crime envolve violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.  A lei 13.104 de 2015, a Maria da Penha, estabelece como característica de feminicídio, o crime:

VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:

§2º -A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime

envolve:

I – violência doméstica e familiar;

II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

       Sendo a vítima identificada socialmente como mulher, o homicídio tentado ou consumado também podem ser tipificados como feminicídio. De acordo com as diretrizes antes citadas, os feminicídios podem envolver violência doméstica e familiar, tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, exploração sexual de meninas e adolescentes, uso do estupro como meio de controle no crime organizado, disputa de territórios e de quadrilhas.

       A partir do julgamento da ADO-26 (que criminaliza a homofobia) há entendimentos de que homicídios contra travestis e transexuais podem ser qualificados como feminicídios se praticado contra a mulher trans por razões da condição do sexo feminino.

 

As violências invisíveis: os casos não computados

        O Mapa da Violência nos revela os dados de registros policiais, dos casos relatados nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, das mulheres que chegam às Defensorias Públicas, regra geral, vítimas de violência doméstica e familiar sexual e/ou física.

       A  violência sexual pode ser definida como qualquer ato sexual ou tentativa de obter ato sexual, investidas ou comentários sexuais indesejáveis, ou tráfico ou qualquer outra forma, contra a sexualidade de uma pessoa usando coerção. Pode ser praticada, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), por qualquer pessoa, independentemente da relação com a vítima, e em qualquer cenário, incluindo a casa e o trabalho.

       Mas também no contexto de violência doméstica e familiar, quando a violência sexual é praticada por alguém que faz parte da sociabilidade da vítima, de sua rede social, o conceito é mais amplo. A Lei Maria da Penha descreve em seu artigo 7, alínea III, a violência sexual  entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.

       Os dados estatísticos são tidos como meramente referenciais da realidade. Uma vez que os crimes sexuais estão entre as menores taxas de notificação à polícia.

 

 

       A lei estabelece como violência física toda e qualquer conduta que ofenda a integridade corporal da mulher: espancamento, lesões com objetos cortantes (facas, estiletes, canivetes), ferimentos por queimaduras ou armas de fogo,  atirar objetos, sacudir ou apertar os braços, estrangular ou sufocar.

 

       Entre fevereiro de 2018 e fevereiro de 2019, 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento no Brasil, enquanto 22 milhões (37,1%) de brasileiras passaram por algum tipo de assédio.  Após sofrer uma violência, mais da metade das mulheres (52%) não denunciou o agressor ou procurou ajuda.

       Os dados são de um levantamento do Datafolha feito em fevereiro encomendada pela ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) para avaliar o impacto da violência contra as mulheres no Brasil.

       O Art. 7º da Lei Maria da Penha (11.340/2006) ainda estabelece outros três tipos de violência que são abrangidas pelas medidas de proteção da norma:

II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

       A violência contra a mulher e o feminicídio podem e devem ser evitados pelo Estado e pela sociedade. É fundamental que tenhamos políticas públicas sérias e programas efetivos e eficazes para combater a morte das mulheres.

       A criação de serviços em todo o território nacional, com investimento financeiro adequado com a  descentralização do atendimento, tirar a Casa da Mulher brasileira do papel, ampliar as Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher,  instrumentalizar os Núcleos de Defensoria Especializados e torná-los itinerantes e volantes.

       Aperfeiçoar serviços integrados com acolhimento de qualidade e perspectiva de gênero. Não basta apenas a mulher denunciar, ela deve ser acolhida, ouvida, orientada por equipes e profissionais especializados e serviços multidirecionais nos mesmos espaços para ela e para seus filhos e filhas.

        Manter e instrumentalizar a produção de dados e indicadores para elaboração, implementação e monitoramento das políticas públicas –  quem são essas mulheres? Porque estão morrendo?  Quem são seus assassinos?

       E, por fim, e mais importante,  promoção ações de prevenção à violência e desconstrução das desigualdades de gênero, envolvendo educação e mídia. Um menino que cresce vendo os homens da sua casa espancando, abusando, humilhando e explorando sua mãe, irmãs, tias, avó tende a reproduzir o comportamento violento que aprendeu ao longo da vida. Muitas meninas levam uma vida toda para perceber que foram abusadas sexualmente quando crianças.

       Nosso maior desafio é educar, formar e mudar,  garantindo que gerações futuras não reproduzam estatísticas e dados como os que estão nesta coluna.

 

Denuncie: Disque 180

Chame a Polícia: Disque 190

 

[1] Luciane Lourdes Webber Toss, Sócia-Fundadora da Consultoria Ó Mulheres!, Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais e Mestra em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos onde cursou Especialização em Direito Privado. É especialista em Nuevos Rectos de Derecho Público pela Universidad de Burgos – UBU (ESP), em Derechos Humanos y Derecho del Trabajo pela Universidad Castilla La Mancha de Toledo – UCLM (ESP) e em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Fundação Escola da Magistratura Trabalhista – FEMARGS. Atualmente cursa especialização em Direitos Humanos e Políticas Públicas, tambem na Unisinos. Integra o grupo de pesquisas CNPQ UFRGS Trabalho e Capital: Retrocesso Social e Avanços Possíveis. É professora da FEMARGS e da Fundação do Ministério Público – FMP.

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