Supressio e Surrectio nas Relações Familiares

Coluna Direito da Família e Direito Sucessório

Essas duas expressões são derivadas do sistema alemão que trata da supressio ou Verwirkung e da surrectio ou Erwirkung.

a) Supressio: Apesar de nossa legislação não tratar de forma positiva esse assunto, podemos encontrar no Código Civil, art. 330 um exemplo da supressio e ainda guarda similitude com a prescrição e com a decadência.

Na supressio as expectativas são projetadas apenas pela injustificada inércia do titular por considerável decurso de tempo, que poderá variar conforme o caso específico, somando ainda a existência de indícios objetivos de que o direito não seria mais exercício. Assim, para Aguiar Júnior, “na supressio temos um direito que não foi exercido durante um determinado lapso de tempo e em razão disso não mais poderá ser exercido em razão de contrariar a boa-fé”. [1]

Para Menezes Cordeiro, jurista português “Diz-se supressio a situação do direito que, não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa fé.”[2] E continua afirmando que:

Foto: Pixabay

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A supressio tem origem jurisprudencial. As suas manifestações mais antigas deram-se no domínio da venda de ofício comercial, a favor do comprador, ficando consignadas em decisões do então Reichsoberhandelsgericht. A questão esquematiza-se desta forma: os §§ 346 ss. HGB, na versão em vigor na altura, permitiam ao vendedor na compra e venda comercial, havendo mora do comprador no levantamento da coisa, a sua venda de ofício, atribuindo-lhe, ainda, uma pretensão pela diferença do preço. A lei não fixava, porém, um prazo para o exercício destas faculdades. Podia, pois, acontecer que o vendedor, dando a impressão de se ter desinteressado do contrato viesse, mais tarde, inesperadamente, a actuar as suas pretensões, de modo ruinoso para o comprador. Entendeu-se, bem, haver aí, em certas circunstâncias, uma demora desleal no exercício do direito, contrária à boa fé.[3]

A jurisprudência pátria tem se manifestado acerca desse assunto, assim em diversos julgados já podemos visualizar a presença desse tema, bem como os conceitos apresentados pelos doutrinadores, como por exemplo:

EMENTA: ADMINISTRATIVO. SERVIÇO PUBLICO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. CONTRATO DE MUTUO FIRMADO PELO USUÁRIO E A CONCESSIONÁRIA. CORREÇÃO MONETÁRIA. CLAUSULA CONTRATUAL. PRINCIPIO DA BOA-FÉ. LIMITAÇÃO DO EXERCÍCIO DO DIREITO SUBJETIVO. “SUPRESSIO”. 1. A “supressio” constitui-se em limitação ao exercício de direito subjetivo que paralisa a pretensão em razão do princípio da boa-fé objetiva. Para sua configuração, exige-se (i) decurso de prazo sem exercício do direito com indícios objetivos de que o direito não mais seria exercido e (ii) desequilíbrio, pela ação do tempo, entre o beneficio do credor e o prejuízo do devedor. Lição de Menezes cordeiro. (…) (Apelação Cível n 70001911684, segunda câmara cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relatora Desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza:, julgado em 04/12/2000)

O Superior Tribunal de Justiça, conforme o voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, no Julgamento do Recurso Especial no. 207.509-SP, da relatoria do Ministro Sávio de Figueiredo Teixeira reconheceu a teoria da supressio, vejamos:

O MINISTRO RUY ROSADO DE AGUIAR:

(…)

  1. Tenho como admissível a teoria da suppressio, segundo a qual o comportamento da parte, que se estende por longo período de tempo ou se repete inúmeras vezes, porque incompatível com o exercício do direito,  pode levar a que se reconheça a extinção desse direito, com base na boa-fé objetiva.

No caso dos autos, a egrégia Câmara examinou os fatos da causa e concluiu que o documento de fl. 28 representava o acerto final das contas entre empregadora e empregado, tendo o decurso de tempo consolidado essa conclusão. Daí a improcedência da reconvenção.

Para modificar esse julgamento, seria necessário rever os fatos e lhes dar nova qualificação jurídica, considerando-os insuficientes para a conclusão a que, com base neles, chegou a r. Câmara.

Posto isso, com respeitosa vênia, não conheço do recurso.

É o voto.

(STJ – RECURSO ESPECIAL Nº 207.509 – SP (1999/0021894-9), Relator MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, Recorrente Kubota Brasil Ltda e Recorrido Paulo Akira Kurosaki, 4ª. Turma, Acórdão Publicado em 18/08/2003).

Outra importante decisão referente à supressio refere-se a seguinte situação:

Processual Civil. Civil. Recurso Especial. Prequestionamento. Condomínio. Área comum. Utilização. Exclusividade. Circunstâncias concretas. Uso prolongado. Autorização dos condôminos. Condições físicas de acesso. Expectativa dos proprietários. Princípio da boa-fé objetiva.

– O Recurso Especial carece de prequestionamento quando a questão federal suscitada não foi debatida no acórdão recorrido.

– Diante das circunstâncias concretas dos autos, nos quais os proprietários de duas unidades condominiais fazem uso exclusivo de área de propriedade comum, que há mais de 30 anos só eram utilizadas pelos moradores das referidas unidades, pois eram os únicos com acesso ao local, e estavam autorizados por Assembléia condominial, tal situação deve ser mantida, por aplicação do princípio da boa-fé objetiva.

(STJ- RECURSO ESPECIAL Nº 356.821 – RJ (2001/0132110-4), Relatora Ministra Nancy Andrighi – 3ª. Turma. Data do Julgamento 23/04/2002)

b) Surrectio: Nesse caso estamos diante de um exercício continuado de uma situação jurídica ao arrepio do que foi convencionado ou do ordenamento jurídico implica nova fonte de direito subjetivo, estabilizando-se tal situação para o futuro.[4]

Também no caso da surrectio os nossos tribunais já tem-se manifestado a cerca do referido instituto, vejamos:

DIREITO CIVIL – LOCAÇÃO RESIDENCIAL – Situação jurídica continuada ao arrepio do contrato. Aluguel. Cláusula de preço. Fenômeno da surrectio a garantir seja mantido a ajuste tacitamente convencionado. A situação criada ao arrepio de cláusula contratual livremente convencionada pela qual a locadora aceita, por certo lapso de tempo, aluguel a preço inferior àquele expressamente ajustado, cria, à luz do Direito Civil moderno, novo direito subjetivo, a estabilizar a situação de fato já consolidada, em prestígio ao Princípio da Boa-Fé contratual (TJMG – 16ª Câm. Cível; ACi nº 1.0024.03.163299-5/001-Belo Horizonte-MG; Rel. Des. Mauro Soares de Freitas; j. 7/3/2007; v.u.).

Analisando o conceito de surrectio e procurando diferenciar bem da supressio Marcelo Colombelli Mezzomo nos apresenta a seguinte explicação:

A surrectio, ao contrário da supressio, representa uma ampliação do conteúdo obrigacional. Aqui, a atitude de uma das partes gera na outra a expectativa de direito ou faculdade não pactuada. Ordinariamente, a doutrina tem apontado para a necessidade da presença de três requisitos, conforme lembram Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro:.

“Exige-se um certo lapso de tempo, por excelência variável, durante o qual se atua uma situação jurídica em tudo semelhante ao direito subjetivo que vai surgir; requer-se uma conjunção objectiva de factores que concitem, em nome do Direito, a constituição do novo direito; impõe-se a ausência de previsões negativas que impeçam a surrectio[5]

Conclui-se, portanto que a surrectio é o instituto jurídico que faz surgir um direito que anteriormente não existia, seja em razão de contrato ou seja em razão do ordenamento jurídico. Portanto, diante da inércia, da não manifestação, então, mesmo sendo contrária a norma jurídica, nos deparamos com o nascimento de um direito arrepio da norma em razão da inércia. Essa idéia já se encontra assente na expressão jurídica, o direito não socorre a quem dorme.

E o que esses dois institutos têm a acrescentar ao direito das famílias?

Podemos citar os exemplos apresentados por Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald para ilustrar porque da necessária compreensão desses institutos e como eles refletem no direito das famílias:

Foto: Pixabay

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a) Primeiro Exemplo: ocorre quando um cônjuge descobre, logo após o casamento, algum fato grave que desabona a honra e a boa fama de seu consorte – antes deconhecido – o que lhe faculta requerer a anulação do casamento, nos termos do art. 1.557 da Lei Civil. No entanto, ao invés de requerer a invalidação das núpcias, o consorte continua coabitando com o cônjuge, mesmo após a descoberta do fato.

b) Segundo Exemplo: também é possível reconhecer a incidência da supressio em situações jurídicas atinentes à pensão alimentícia. Bastaria imaginar a hipótese de um credor de alimentos (alimentando) que se mantém inerte por longo período de tempo, criando no devedor (alimentante) a expectativa de que não há execução porque não há necessidade fática de recebimento da pensão. Nesse caso, o comportamento do credor, omitindo-se de uma execução de alimentos (quando poderia fazê-lo), poderá caracterizar a supressio, caso não tenha sofrido, por evidente, nenhum embaraço impeditivo na propositura da demanda;

c) Terceiro Exemplo: Em situação contrária, o devedor de alimentos (o alimentante), apesar de ter sido exonerado judicialmente do dever de prestar, resolve, por conta própria, sponte sua, manter o pensionamento, reiterada e sistematicamente, poderá estar criando no beneficiário uma expectativa, que pode se apresentar digna de pretensão jurídica, por conta desse comportamento.[6]

E esses são apenas alguns exemplos em que podemos constatar a presença da supressio e da surrectio no âmbito das relações familiares e sendo assim, faz-se necessário compreender o alcance desses dois institutos no âmbito familiarista.

O princípio da boa-fé objetiva perpassa todo o sistema jurídico e como tal não podemos esquecer dele, especialmente no direito das famílias, em que o princípio da solidariedade encontra-se tão presente.

Referências:

[1] AGUIAR JÚNIOR, 1991 apud SEGALLA, 2000. SEGALLA, Alessandro Schirrmeister. Da possibilidade de utilização da ação de despejo pelo fiador do contrato de locação. Disponível em:<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=605>. Acesso em: 27 de setembro de 2017.

[2]MENEZES CORDEIRO.  Da Boa Fé no Direito Civil. Coimbra: Livraria Almedina, 1997, p. 797 e ss. apud SEGALLA, 2000. SEGALLA, Alessandro Schirrmeister. Da possibilidade de utilização da ação de despejo pelo fiador do contrato de locação. Disponível em:<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=605>. Acesso em: 27 de setembro de 2017.

[3] MENEZES CORDEIRO.  Da Boa Fé no Direito Civil. Coimbra: Livraria Almedina, 1997, p. 798 e ss. apud SEGALLA, 2000. SEGALLA, Alessandro Schirrmeister. Da possibilidade de utilização da ação de despejo pelo fiador do contrato de locação. Disponível em:<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=605>. Acesso em: 27 de setembro de 2017.

[4] FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. Direito Civil – Teoria Geral. 6ª. edição. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2016, p. 522.

[5] MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A boa-fé objetiva e seus institutos . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1212, 26 out. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9087>. Acesso em: 28 set. 2017.

[6] FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias. Vol. 6. Salvador: Editora Juspodium, 2016, p. 129.

renata vilas boas
Renata Malta Vilas-Bôas é Articulista do Estado de Direito, advogada devidamente inscrita na OAB/DF no. 11.695. Sócia-fundadora do escritório de advocacia Vilas-Bôas & Spencer Bruno Advocacia e Assessoria Jurídica, Professora universitária. Professora na ESA OAB/DF; Mestre em Direito pela UPFE, Conselheira Consultiva da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Acadêmica Imortal da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Integrante da Rete Internazionale di Eccelenza Legale. Secretária-Geral da Rede Internacional de Excelência Jurídica – Seção Rio de Janeiro – RJ; Colaboradora da Rádio Justiça; Ex-presidente da Comissão de Direito das Famílias da Associação Brasileira de Advogados – ABA; Presidente da Comissão Acadêmica do IBDFAM/DF – Instituto Brasileiro de Direito das Familias – seção Distrito Federal; Autora de diversas obras jurídicas.

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