Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Sujeitos de Direito Invisíveis. O clamor silenciado de crianças e adolescentes em situação de rua. Gabriela Maria Fernandes Mendonça Albuquqerque. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2020, 148 p.
Em Coluna Lido para Você anterior, me debrucei sobre um importante registro que se prestou também a celebrar os 29 anos do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Digo também, porque a rigor, a Coluna cuidou de oferecer notícia para os Editores, sobre a Dissertação de Mestrado, de Gabriela Maria Fernandes Mendonça, defendida e aprovada na UnB, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (CEAM), há pouco mais de um ano (https://estadodedireito.com.br/sujeitos-de-direito-invisiveis-o-clamor-silenciado-de-criancas-e-adolescentes-em-situacao-de-rua/).
Então, referindo-me à Dissertação, da qual fui o Orientador, puis em relevo tratar-se, para além do estudo de caso, de uma percepção teórica sobre o jurídico, de poder dar conta de uma subjetividade politicamente constituída, de sujeitos coletivos que se inscrevem nos movimentos sociais, forjando com seu clamor, a denúncia das violações que sofrem, a elaboração de uma agenda de reivindicações e competência enunciativa de direitos, o que se deu com a sua organização, ao tempo da Constituinte de 1988, por meio do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua no Brasil.
No trabalho, a Autora aludia a conquistas do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, nessa conjuntura, pondo em relevo diretamente o artigo 227 da Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente que dele decorre, na medida inclusive que representam rompimento paradigmático com a teoria da situação irregular para sufragar a teoria da proteção integral, numa pretensão de universalidade, expressa numa cidadania alargada que reconhecimento a subjetividade jurídica de crianças e adolescentes no Brasil.
Não obstante esse processo rico em protagonismo aquisitivo de direitos, a Autora se perguntava no contemporâneo sombrio que atravessamos o que é o silêncio de crianças e adolescentes em situação de rua, em face dos retrocessos que acontecem seguidamente, tal como indicado na abertura desse texto.
Ela mostrava, em face das ameaças em curso e desse silêncio, não só das crianças mas de seus mais estimados aliados, o crescente distanciamento entre norma e realidade, criando o paradoxo da clivagem entre crianças e adolescentes em situação de rua e direito da criança e do adolescente, dando ensejo, como vimos acima já não mais como resquícios, mas como retorno regressivo da teoria da situação irregular que serve de nutriente para respostas autoritárias, higienistas, criminalizadoras, numa dinâmica avassaladora de desconstrução social do paradigma de proteção.
Nas suas conclusões, antes considerações finais, a Autora como que se ressente de que o protagonismo do MNMMR, após as importantes conquistas normativas alcançadas, dá lugar novamente ao silenciamento de crianças e adolescentes em situação de rua: “São silenciadas pela sociedade que não as enxerga, pelas políticas que não as alcança, pelo estigma que as mancha, pelas antigas concepções do situação irregular, pela indiferença que não deu lugar ao direito à diferença, pela violação ao seu direito de serem simplesmente crianças e adolescentes. Seu clamor por direitos ainda existe, seu direito ainda está nascendo deste clamor que se dá das mais diversas formas, mas não são mais ouvidas, permanecem à sombra da invisibilidade social, são estigmatizados e excluídos, vivem na condição de sujeitos de direito (reconhecidos normativamente) invisíveis (socialmente)”.
A Dissertação apostava no sujeito da emancipação de si próprio, projeto em construção, no que me faço aliado (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. A Construção Social e Teórica da Criança no Imaginário Jurídico. In A Razão da Idade: Mitos e Verdade. Brasília: MJ/SEDH/DCA, 2001; na mesma direção, A Razão da Idade: Contra a Redução da Maioridade Penal, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 33-34) ), livro editado num tempo, mesmo em governo com orientação econômica neoliberal (FHC) de Ministério da Justiça mais cidadania e promoção dos direitos humanos (PNDH1; PNDH2) e menos interior e segurança, sobre o qual, em breve, o terei Lido para Você.
Com eles, os sujeitos, titulares de seu próprio clamor, diretamente colhido pela Autora em entrevistas, trata-se de ouvir com a máxima atenção que “A gente queria pedir pra eles olhar mais pra gente, que a gente tá que nem uma comida quando bota fogo, esquece e queima. A gente estamos esquecidos”, porque “nós é gente” e que em relação a titularidade jurídica reivindicada “não basta ficar no papel, queremos justiça”.
Tive imenso gosto de redigir o prefácio no qual inseri os elementos que acabo de referir e noto com satisfação que a Editora se moveu pelas boas razões que traduzem a sua iniciativa: “Milhares de crianças e adolescentes no Brasil povoam as calçadas dos centros urbanos, vivendo uma realidade de exclusão e de total violação a direitos fundamentais. O clamor desses pequenos sujeitos de direito foi ouvido na década de 80, culminando na instauração da doutrina da proteção integral pela Constituição da República de 1988 e pela promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Contudo, à sombra da invisibilidade, as amarras paradigmáticas que construíram uma representação social extremamente negativa da infância pobre no Brasil seguem assombrando crianças e adolescentes que vivem em situação de rua. O Direito deve ser entendido não apenas sob o ponto de vista epistemológico, sob a égide do qual corre o risco de tornar-se letra morta, como também sob a perspectiva prática. A verdadeira mudança social somente poderá ser vislumbrada se o direito for efetivado e, assim, atingir seu máximo potencial transformador. Nesse sentido, a presente obra levanta reflexões substanciais acerca do lugar da criança e do adolescente no ordenamento jurídico e do paradoxo entre a norma protetiva e a realidade de violação a direitos fundamentais impregnada na sociedade brasileira”.
A esse clamor responde o trabalho intelectual de Gabriela Maria, num esforço reverso ao social naturalizado na indiferença desumanizadora, que ao contrário do que revela a fábula instigante de Carlo Collodi, na bela tradução de Marina Colasanti (As Aventuras de Pinóquio, Companhia das Letrinhas), em que a marionete, pela mediação do afeto e da escola, se transforma em criança, faz com que por malícia, falta de empatia, ausência de políticas e uma cultura de descarte, acabem por fazer com que muitas crianças se transformem em bonecos de pau.
Pois bem, contra essa indiferença e em apelo a políticas humanizadoras, solidárias, fraternas e emancipatórias, andou bem a Lumen Juris em celebrar 30 anos de uma qualificada experiência editorial, no ano em que o ECA completa igual tempo. Vejo com alegria que a Dissertação de Gabriela Maria Fernandes Albuquerque se presta bem a marcar a dupla efeméride. Creio que o diligente Cristiano Mabilia se mostrou atento a sugestão que fiz na Coluna e cuidou de editar a obra.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |
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