O contínuo massacre
O mês de abril de 2016 passou, mas ficará marcado na história do Brasil. Vinte anos depois do massacre de Eldorado dos Carajás, o sangue de trabalhadores rurais sem terra segue sendo derramado no solo brasileiro. Assassinatos, emboscadas, execuções contra o povo pobre, negro e índio do nosso país continuam acontecendo de forma rotineira, muitas vezes, com a participação dos órgãos policiais e a chancela de setores do chamado “Sistema de Justiça”, em especial, do Ministério Público e do Judiciário. Órgãos que teriam como missão defender a Constituição e os Direitos Humanos, mas que por ação ou omissão não tem garantido esses direitos.
Nesses últimos meses, o Brasil tem sido o palco de uma série de violências e arbitrariedades. Defensores(as) de direitos humanos e militantes de movimentos sociais do campo, da cidade e da floresta foram presos(as), baleados(as) ou mortos(as) em Rondônia, Pará, Maranhão, Paraíba, Bahia, São Paulo e Paraná, para falar apenas dos casos mais recentes. Não se trata de casos isolados, mas de toda uma tradição política autoritária que permanece e se configura num verdadeiro Estado de Exceção, que persegue, criminaliza e mata os lutadores e lutadoras do povo. Não se trata de uma mera hipótese, mas de uma situação vivida na pele de quem luta por justiça e vastamente confirmada por diversas pesquisas científicas, por observadores internacionais e até pela própria Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Trata-se de uma infinidade de conflitos oriundos, sobretudo, do modo como se constituiu o nosso capitalismo dependente e a estrutura agrária do país. Cabe recordar que a Constituição Federal de 1988 determinou – nos artigos 184, 185 e 186 -, que a propriedade rural deve cumprir uma função social e ambiental, sob pena de desapropriação, por interesse social, para fins de reforma agrária. Nesses dispositivos constitucionais, também, estão previstos requisitos e/ou critérios para que uma propriedade cumpra a sua função social, são eles: que seja produtiva; tenha aproveitamento racional e adequado; seus recursos naturais sejam utilizados de forma adequada e haja preservação do meio ambiente e que sua exploração favoreça o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores. A terra é um bem comum, o que significa que deve ser para o uso de todos(as) e para a garantia das necessidades humanas fundamentais.
Mercantilização da terra
No entanto, o modelo econômico capitalista, implantado desde a colonização a ponta de espada e bala, expropriou as terras comunais, as transformou em propriedade privada e, por conseguinte, em mera mercadoria. A terra se concentrou como propriedade nas mãos de poucos e destinou seus antigos ocupantes ao trabalho quase servil no campo ou como mão de obra barata nas cidades. Atualmente a terra é explorada por grandes corporações econômicas, que se apropriaram inclusive de terras públicas pelo sistema que conhecemos como grilagem e que consolidaram um modelo agrícola baseado nas monoculturas, nos transgênicos e no uso indiscriminado de agrotóxicos.
No atual cenário brasileiro, em que a busca pelo poder político e econômico macula os princípios éticos e constitucionais, não nos faltam exemplos de como as empresas agem para manutenção de seus interesses, violando os preceitos constitucionais, os direitos humanos e ceifando vidas de trabalhadores.
Nesse contexto, o município de Quedas do Iguaçu-PR teve seu nome inserido em mais um ato de abuso e violência contra aqueles que defendem a terra como bem comum e fonte de vida com dignidade.
Emboscada
Em Quedas do Iguaçu está localizada a Fazenda Rio das Cobras, supostamente, de propriedade da empresa Araupel. A empresa afirma ser a proprietária da área de 35 mil hectares. No entanto, em verdade ela se apropriou ilicitamente dessas terras públicas, sendo que seus títulos foram determinados nulos pela justiça em 1ª e 2ª instância. A ação judicial movida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA tramita desde 2004. O INCRA foi imitido na posse de parte dessa área, cerca de 23 mil hectares, tendo realizado assentamentos naquela área. O juízo de 2ª instancia ainda determinou que a Araupel adquirisse 10,7 mil hectares de terras e repasse ao INCRA para que famílias dos Trabalhadores Rurais Sem Terra sejam assentadas.
Na área em questão estão acampadas 1.500 famílias de trabalhadores/as que reivindicam que estas áreas públicas sejam destinadas para a Reforma Agrária. No último mês, ocorreu uma emboscada contra os trabalhadores acampados que resultou na morte de 2 sem terra e inúmeros feridos. Os relatos das vítimas indicam que a emboscada foi comandada pela polícia militar do Paraná juntamente com a milícia armada contratada pela empresa. A emboscada aconteceu em uma das estradas que dá acesso ao acampamento dos Sem Terra.
Sangue
No dia 07 de abril de 2016, Leomar Bhorback (25 anos) e Vilmar Bordim (44 anos) foram executados. Leomar deixou a esposa grávida de 09 meses, Vilmar deixou a esposa e três filhos. Vilmar levou um tiro pelas costas, fato confirmado recentemente pelo laudo do IML, ou seja, uma ação típica de uma execução. Outros agricultores ficaram feridos, dois foram hospitalizados. As vítimas esperaram horas por atendimento, pois foi impedido pela polícia militar que alguém se aproximasse do local, mesmo se fosse para socorrer as vítimas, entre outras tantas violações de Direitos Humanos ocorridas naquele dia 07 de abril.
Exceção
Além de terem sido vítimas de emboscada, no hospital os dois feridos tiveram negado o seu direito a uma conversa particular com seus advogados e, como se não bastasse, invertendo completamente os fatos, foi requerido pela polícia civil e decretada pelo judiciário local a sua prisão preventiva. Contudo, graças à assessoria dos advogados populares da região a prisão preventiva foi convertida em prisão domiciliar.
Diante da situação e de todos os fatos que comprovam a tendenciosa investigação dos órgãos policiais do Paraná entidades fizeram requerimento de investigações sobre o conflito ao Ministro da Justiça que determinou que a Polícia Federal realizasse uma investigação própria sobre o ocorrido no intuito de garantir que os responsáveis sejam punidos.
Num momento de crise como o que estamos vivendo no Brasil, o acirramento dos conflitos sociais é algo latente. O golpe em curso e o fascismo social já mostraram a sua forma de fazer política. Contudo, ainda nos assombra a naturalização e aceitação dessas violências e arbitrariedades pela sociedade brasileira e por parte do poder judiciário, pois se omitir num momento como este, já é uma tomada de posição. Como defensores de direitos humanos, não podemos nos calar: são tempos de sangue e exceção.
Elaine Rissi- Advogada Popular da RENAP. Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Goiás – UFG.