Estamos em um presídio, o maior do Brasil, lugar de “bandidos perigosos”. É dia de triagem e eu, como psicóloga, preciso escutar aqueles que foram presos nos últimos dias. Quando o policial militar grita o número da minha sala no fundo do corredor, os dados do destino já foram lançados pelo sistema penal e será muito difícil incidir sobre a forma como eles caíram. Não sei o que atravessará o corredor até mim, mas espera-se pela regra. Ou melhor, por aquilo que a norma estabelece como regra.
Em termos de Brasil, como diria Arnaldo Cezar Coelho[1], “a regra é clara”. A marca histórica de 607.700 pessoas presas que o Brasil alcançou em 2014 – colocando o país entre as quatro nações que mais aprisionam – tem um perfil aparentemente homogêneo: 93% homens, 56% jovens até 29 anos e 67% negros. Além disso, os dados apontam que em pleno século XXI, 80% das pessoas que adentram nas prisões do país não possui sequer o ensino fundamental (Fonte: Ministério da Justiça – Infopen, 23/06/2015). Tratam-se dos mesmos personagens que engrossam as estatísticas de homicídio, que só em 2014 atingiu mais de 56.000 brasileiros, fazendo do país o líder mundial em homicídios absolutos (Fonte: Ministério da Saúde – Datasus, 2014). São números fortes, que esclarecem, mas também reafirmam. Mostram que se você é jovem, negro, morador de periferia e abandonou a escola, seu lugar comum é a prisão ou a cova rasa. Tem-se, nessa perspectiva, “números-borracha” que apagam rostos e assim, contribuem na aceitação de abordagens governamentais seletivas, negligentes ou até, abusivas. Pois é muito mais fácil bater na cara de quem não passa de um percentual de baixo retorno. Mas e se o número falasse, o que contaria?
A voz do policial no fundo do corredor da prisão abre uma porta para esta escuta. É a autorização institucional para que dois universos possam se encontrar e, com sorte, perfurar o muro de imagens estereotipadas. Nesse caso, o susto é evidente, pois a sala técnica vira o cenário de um filme de ficção científica onde corpos emergem do caldo espesso da marginalidade. Processo psicofísico, orquestrado por perguntas do tipo: “- Como você veio parar aqui? Me conte com quem você pode contar?” E cuja melodia é dada por respostas como: “A Sra pode ligar pra Dona Célia da Padaria da esquina, é a única pessoa com quem podia contar”. Depoimentos que fazem com que da “massa carcerária” salte um braço, estique uma perna, escute-se uma tosse, brilhe um olhar. Dos sinais vitais, pode-se passar para outro nível de visão, o da subjetividade. É quando feridas se fazem ver. Há muito sangue, tabefe, arma e ilusão. Primeiramente aprendidos e logo depois replicados. Mas há também momentos-espelho, quando as palavras trazem algo de familiar, algo de “meu também”. Geralmente, este é o ápice, quando o sujeito expulsa as últimas gotas da “lava carcerária” e apresenta-se como indivíduo, assim como eu.
Mas enquanto filosofo sobre meu ofício, um jovem real já transita pelo corredor de azulejos quadriculados rumo a minha sala. Com as mãos algemadas para trás chega Jonas, 19 anos, negro e morador de uma favela de Porto Alegre. Tem uma tatuagem no rosto, “1996” em números romanos, o ano de seu nascimento. A primeira entrevista do dia confirma o perfil criminal dado pelas estatísticas. Mas paira um estranhamento inicial. Jonas não mede mais do que um metro e meio e seu rosto conserva traços infantis que constrangem. A regra do “bandido perigoso” está sendo profanada. As maiores agressões partem da zona da boca: Jonas tem um sorriso largo e confiante que não combina com o ambiente. Não se trata de uma confiança na vida, mas uma crença no próprio sorriso, no que ele expressa de alma. Passa pela minha cabeça nesse momento, que fora da sala seu sorriso não será visível, pois em seu rosto já brilha o número tatuado, símbolo que conecta a favela, à prisão e à morte. Jonas é uma metáfora da violência no Brasil: assumiu o número em que lhe aprisionaram.
O jovem conta que criou-se em uma Vila da Zona Sul de Porto Alegre, próximo ao valão, que desde que nasceu nunca foi encanado. A água podre do esgoto pintou e perfumou seu cenário de vida. As frestas da casa de compensado e madeira de doação aclimataram o ambiente, conectando-o desde cedo à frieza do Rio Grande do Sul. Conta que na vila sempre teve muito grito, tiro e confusão: a trilha sonora do gueto. Que mesmo com medo, aprendeu a gostar disso tudo porque vem de gente como ele, gente feita do mesmo barro (SIC). Mesmo assim, quando estava cansado da balburdia ou queria entender algum sentimento botava-se a cantarolar músicas. Aos 13 anos tornou-se compositor e cantor. Do funk social, com sua contestação chorosa, ao Rap Gângsta, com sua crítica ácida, e ancorando por fim, no que era mais buscado pelo público: o funk ostentação. Passou a fazer shows, com um cachê que chegou a R$ 500,00, em bailes até fora do Estado.
Além do número “1996” tatuado abaixo do olho, Jonas tem o número “33” marcado em sua ficha policial, de maneira repetida. Trata-se do artigo do Código Penal Brasileiro que identifica o crime de tráfico de drogas. Questionado, afirma que não gosta do tráfico, mas gosta da gente do tráfico. Que está sempre por perto, cantando e inventariando a vida, quando a polícia chega. Deixa entrever que é dali que tira a poesia que dá vida a suas músicas. É dali também que tira a matéria para compor sua forma de vida. Jonas é um menestrel[2]: divulga as obras de outros autores para o mundo. Canta as bravuras dos guerreiros da favela, floreia os ataques dos inimigos, poetiza os amores proibidos e assim, atualiza a memória de um tempo e de um lugar: o gueto brasileiro. É leal a corte que o acolheu e tem uma relação de amor com o público que o aplaude, porque sabe que ele conhece o que canta. Talvez por isso já tenha entrado e saído da prisão, sem “nunca pegar em armas” (SIC), como orgulha-se.
Conta que recentemente mataram seu rei. O traficante que também era produtor musical e financiava sua carreira. Não sabe como será agora, talvez tenha que pegar em armas. Teme que a poesia não tenha espaço para consumo em tempos de guerra sem líderes certos. Antes de retornar para a galeria pergunta se quero ouvir uma de suas músicas. Digo que sim. A dificuldade com as algemas não impedem o gingado, a melodia e a mensagem. Assisto a uma bela apresentação do menestrel. Percebo que a instituição prisional prende o corpo, mas não a mente. Existem outras formas de captura muito mais eficientes.
Jonas retorna e eu fico pensando sobre quanta potência de vida tive à minha frente. Sobre como o Estado poderia ter aproveitado esses talentos, nas instituições por onde ele passou desde criança. O rei do tráfico teve essa sensibilidade. Exposto a morte desde pequeno, Jonas insistiu em viver, tendo como armas as relações, a melodia e o sorriso.
O pensamento dura pouco. No fundo do corredor, o policial já grita o próximo número e a vida nas prisões do Brasil segue a sua matemática.
Fernanda Bassani
Doutoranda em Psicologia Social e Institucional -UFRGS
Psicóloga
[1] Arnaldo Cesar Coelho, é ex-arbitro de futebol e conhecido comentarista esportivo de uma rede de televisão.
[2]Menestrel, espécie de poeta-cantor da Idade Média, que referia histórias de lugares reais ou imaginários, ficando geralmente vinculado a uma corte. Embora criassem seus próprios contos, muitas vezes memorizavam e floreavam obras de outros (Massaud, 2002)