Em 21 de maio de 2015, o psicanalista Contardo Calligaris publicou, na coluna que assina no jornal Folha de S. Paulo, o texto “Desejo e Necessidade” (disponível em: http://migre.me/q2pKp). Nele, defendeu que a prática de crimes está ligada mais ao desejo de cometê-los do que, propriamente, a uma necessidade vital, nos moldes do chamado “furto famélico”.
O tema é polêmico e está no centro dos debates públicos sobre política criminal. Suscita posições apaixonadas e oposições intestinais, sobretudo quando a discussão sai da esfera especializada em direção à esfera pública.
Calligaris não adota o estilo polemista cada vez mais comum nos textos opinativos publicados na mídia, cujo papel na formação da opinião é bastante discutível. Todavia, a abordagem, tal como apresentada, parece imprópria e imprecisa.
Imprópria porque emitida no momento em que o parlamento brasileiro, com amplo apoio da sociedade civil, faz avançar uma pauta legislativa casuística, fetichizada e marcada por inúmeros retrocessos em matéria de direitos fundamentais. Estão em andamento projetos de emenda à Constituição e projetos de lei que propõem desde a redução da maioridade penal (PEC nº 171/93) ao enquadramento, como crime hediondo, do homicídio praticado contra policiais e bombeiros militares, e integrantes das Forças Armadas, do sistema prisional e da Força de Segurança Nacional, quando em serviço (PL nº 3131/08).
Pautas civilizatórias, tais como a ampliação das hipóteses legais de abortamento, ancoradas numa definição precisa de quando começa a vida, e a descriminalização das drogas, perigam permanecer em compasso de espera por muito tempo.
É compreensível que Calligaris tenha pretendido lançar luzes sobre certa leitura sociológica vulgar, que abstrai o caráter multifacetado do crime. Contudo, ao fazê-lo no exíguo espaço da coluna de um jornal impresso, pode ter obtido o efeito inverso: fornecer argumentos para quem lê a criminalidade sob o enfoque meramente comportamental.
O texto é também impreciso. Calligaris afirma que há mais pobres do que ricos nas prisões porque estes dispõem de melhores advogados. A assertiva só seria verdadeira se viesse acompanhada por um trabalho complexo de pesquisa, que comparasse a prática de crimes por ricos e pobres segundo as respectivas proporções na população brasileira. Se os dados coincidissem, então se poderia falar em diferenças no acesso à Justiça.
E ainda que se admitisse que o foco comportamental prepondere, como faz crer Calligaris, isso jamais poderia ser traduzido na forma de desejos em estado puro, dissociados de um amplo horizonte de condicionantes. Ademais, toda ação praticada por pessoa capaz – inclusive a prática de delitos – é antecedida de decisões motivadas por desejos que orientam a ação.
Para compreender o problema segundo um ponto de vista interdisciplinar, recomendaria a leitura das várias obras do filósofo alemão Axel Honneth, autor, entre outros, de Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais (Kampf um Anerkennung no original em alemão – 2a ed., Ed. 34, 2009). Neste texto, Honneth indica a existência de três dimensões do reconhecimento: o amor (ou auto-respeito), o direito e a solidariedade (na forma de estima social). Ele recorre ao rico caldo reflexivo produzido por seus antecessores na tradição da teoria crítica da Escola de Frankfurt e a referenciais teóricos da psicologia, em especial Donald Winnicott e Herbert Mead.
À plenitude das três dimensões, no âmbito do indivíduo, corresponderia uma existência (ou vida) emancipada. O desrespeito observado nas três dimensões, por sua vez, seria capaz de distorcer essa existência, produzindo sofrimento e impedindo a emancipação do sujeito. Não é temeroso afirmar, nesse sentido, que o quadro impõe restrições à formação das subjetividades e, portanto, criam obstáculos à dimensão do desejo, conformando-o a limites.
Países com o perfil de colonização do Brasil experimentaram processos defeituosos de integração social. Acesso à educação e à cultura, saúde, condições de moradia e, principalmente, fragmentação e iniquidades marcam a trajetória dos indivíduos, a ponto de criar situações de inviabilidade social, tema abordado por Honneth na releitura que fez do categoria da “reificação”, trabalhada por György Lukács. O exemplo da pessoa em situação de rua é eloquente: ela é em tudo desprovida de humanidade, sendo, no limite, um objeto despersonalizado.
De que maneira é possível se falar, então, de desejo como desejo-em-si? Dito de outra forma: como desejar bem se as alternativas postas pela vida permitem poucas escolhas?
Calligaris chega próximo dessa conclusão, quando liga a prática de crimes a situações de exclusão (no sentido de não-pertencimento). Talvez tenha faltado dizer que estes casos, provavelmente, preponderam.
Aparentemente, faltou espaço a Contardo Calligaris para trabalhar melhor essas questões. Formar opinião, todavia, impõe uma responsabilidade extra: a identificação correta dos pontos de partida, etapa fundamental para a elaboração de diagnósticos e de reflexões.
Autor: Wilson Levy Braga da Silva Neto – Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo. Graduate Student Fellow do Lincoln Institute of Land Policy. Professor assistente na PUC-SP e colaborador do programa de pós-graduação em Direito da UNINOVE.