Sobre derrubar estátuas: a memória como uma arena de disputas

  Coluna (Re)pensando os Direitos Humanos, por Ralph Schibelbein, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

        Vivemos tempos intensos. Em meio a pandemia e aos problemas que ela vem escancarando, se reacendeu o debate necessário sobre o racismo e a violência policial. A partir do assassinado de George Floyd, homem negro estadunidense, morto por um policial, o mundo se colocou a refletir sobre os abusos de policiais que agem com muita truculência e pouca assertividade. E principalmente a questionar uma polícia, que enquanto parte da instituição estatal, age de forma a reproduzir um racismo estrutural.  No Brasil esse debate se faz fundamental, visto que temos na escravidão nossa chaga maior, e na nossa polícia ainda predomina resquícios de uma ditadura militar. Racismo e violência policial são temas carregados de história, memória, percepções coletivas e institucionais.

        Nesse contexto, nas últimas semanas, podemos perceber através de notícias midiáticas e das redes sociais, o caloroso debate no mundo inteiro a respeito das derrubadas de estátuas, as quais representam uma insatisfação geral com esses monumentos que carregam consigo uma memória. Mas afinal, o que é memória e como essa se relaciona com o presente?

        A memória é uma arena de disputas. Um lugar misterioso onde o passado se transforma em presente. É uma atualização do passado no presente, trazendo do passado o que interessa no presente e construindo uma ordem para a desordem das experiências vividas. Neste sentido, a memória é um duplo ato de lembrar e esquecer, ordenando hierarquicamente e selecionando o que é ou não importante. Esse espaço é permeado pelo poder que força o esquecimento de algumas coisas e cria a lembrança de outras.

        Devemos ter o cuidado de não confundir passado com história. A chave está em perceber que a memória não é o que aconteceu, mas o que sobrou daquele passado. É a nossa interpretação sobre o ocorrido. E nesse sentido, ela pode ser diferente em cada pessoa. Cabe ressaltar que a memória também pode ser alterada. Existe a memória pessoal de cada indivíduo e a chamada memória coletiva. Assim existem, portanto, lugares de memória. Espaços e símbolos que auxiliam na fabricação de uma memória coletiva.

        As estátuas são uma das formas mais antigas de se prestar homenagem e tornar a memória em um símbolo. Como forma de permanecer, atravessando o tempo e os lugares, os monumentos históricos cumprem um papel de ecoar um passado. Personagens de grandes feitos, símbolos de importantes conquistas, significado e permanência de valores, noção de pertencimento e identidade. Muitos são os motivos e critérios que giram em torno da construção e preservação de patrimônios históricos.

        Muitas vezes, esvaziados de sentido, as estátuas viram parte da paisagem, motivo para fotografia ou até mesmo espaço para pichação e vandalismo. Porém o que chama atenção no cenário atual é o incomodo que esses monumentos podem trazer a partir do que significam e representam.

        Dando sentido ao passado, a memória não é pacífica. O sociólogo Michael Pollack retrata sobre a dimensão conflituosa da memória pelo uso político, onde na medida em que ela é um lugar importante de construção de identidade e da sensação de pertencimento, é muito comum que grupos políticos acionem a memória para poder interferir nas construções identitárias. Neste contexto, a memória se estabiliza, encontra um espaço de visibilidade através dos monumentos. As estátuas derrubadas a partir de uma mobilização social nas últimas semanas, retrata o quanto esses monumentos, carregados de memória, são preenchidos também por relações de poder praticadas pelos grupos hegemônicos, denominando o que deve ou não ser lembrado, e o que deve ou não ser esquecido.

        Essas memórias que não são as amplamente compartilhadas entre os grupos hegemônicos, mas que merecem atenção, e que estão sendo reivindicadas ao longo dos anos, em especial nas últimas semanas, são as memórias conflituosas e silenciadas, que conforme o conceito de Pollack, são as “memórias subterrâneas”. Dar voz a esses indivíduos significa dar a possibilidade de compreender como os múltiplos sujeitos históricos vivenciaram determinado processo.

        Vale ressaltar ainda, que a memória também se relaciona com projetos de futuro, pois a maneira como ordena-se o passado no presente diz muito sobre os caminhos que se quer seguir como sociedade, selecionando algo que legitime percepções do que somos. Neste sentido, pode-se compreender a ação da derrubada das estátuas, pois a memória que a mesma carrega, está sujeita a relacionar-se com projetos coletivos de futuro. É importante questionarmos se essas memórias legitimam as percepções do que somos e do que queremos ser. Analisando as ações conflituosas das estátuas, percebemos a notável (re)significação que os sujeitos estão dando aos monumentos.

        Existem alguns lugares que retratam momentos de um passado terrível e que não se quer de volta. Podemos citar os campos de concentração que foram preservados e atualmente funcionam como museus a céu aberto. Também o próprio Coliseu, palco das batalhas em que escravos eram oferecidos a morte. Para falar da realidade nacional, há como referenciar o pelourinho, espaço para castigar os escravos ou até mesmo a estátua do bandeirante, responsável por capturar indígenas e escravos, Borba Gato. Vale lembrar que espaços e estátuas têm conotações diferentes. Sobretudo na questão de (re)significação.

        Não estamos aqui propondo que se derrube ou destrua os monumentos e os espaços históricos. Tampouco defendemos a permanência de homenagens que afronte nossas ideias de democracia e direitos humanos, tão valiosas. Estamos provocando a reflexão e sobretudo a importância que os lugares e obras de   memória possuem na construção da identidade de um povo.

        Quando algum lugar histórico ou símbolo de homenagem e reconhecimento, passa a ser combatido e atacado, significa que algo está mudando. Resta saber quais serão os critérios e parâmetros para tais medidas.

        Em um país que tem no seu próprio nome a marca da exploração e carrega um presente sem olhar para seu passado, parece ser fundamental que possamos refletir sobre o significado dessas construções históricas. Enquanto houver escola com nome de ditador, estaremos fadados a repetir um autoritarismo sem questionar? Devemos manter ruas com nomes de personagens que lideraram governos autoritários? Está correto a manutenção de praças homenageando políticos comprovadamente inescrupulosos? Mas se fossemos repensar todas homenagens será que sobraria algum humano que no passado não tenha tido comportamento machista, racista, preconceituoso e intolerante? Qual o limite entre o que está pessoa pensava e como ela agia? Devemos tomar cuidado para não cairmos no anacronismo (que é olhar para um passado julgando-o com o olhar do presente.) Porém, é necessário lembrar que refletir sobre o presente a partir das experiências passadas é um caminho para se pensar as ações futuras.

        Memória enquanto arena de embates, está a serviço do poder. E desta forma, conforme o tempo passa e as relações se transformam, heróis podem virar vilões e excluídos da história podem vir a tornarem-se homenageados. O Elevado de São Paulo, construído no regime militar, na gestão Maluf (ARENA) foi batizado de Costa e Silva em homenagem ao segundo governante da ditadura militar no país. Tempos depois, no governo de Haddad (PT) o elevado passou a chamar-se João Goulart, fazendo referência ao último presidente antes do golpe de 1964. Porém até hoje é popularmente conhecido como “minhocão”. A avenida Castelo Branco, em Porto Alegre, em homenagem ao primeiro governante do regime militar de 1964, mudou para avenida da Legalidade e Democracia, para fazer homenagem ao Leonel Brizola, crítico à ditadura, que liderou o movimento pela legalidade e democracia. Porém, atualmente voltou a chamar-se Castelo Branco. A estátua de Luís XV foi derrubada durante a revolução francesa e deu lugar a guilhotina. Atualmente, o país não se vê mais representado no símbolo do absolutismo, tampouco no passado da revolução sangrenta, e adotou um monumento para a concórdia.

        Numa tentativa de dar voz aos projetos futuros e de não silenciar memórias “esquecidas”, os diversos grupos sociais se organizam e derrubam monumentos, os quais não os representam mais, marcando assim, essa grande arena de conflitualidade que é a memória. Fica a lição de que devemos buscar derrubar nossos preconceitos, (re)significar nossos olhares e refletir sobre o tipo de sociedade que queremos construir.

 *Ralph Schibelbein é Professor, Mestre em Educação (UDE/ UI – Montevidéu- 2016), onde estudou a relação da educação e dos Direitos Humanos com o processo de (re)socialização. Pós-Graduado em História, Comunicação e Memória do Brasil pela Universidade Feevale (2010), sendo especialista em cultura, arte e identidade brasileira. Possui licenciatura plena em História pelo Centro Universitário Metodista IPA (2008) e pela mesma faculdade é graduado também em Ciências Sociais (2019). Atualmente é Mestrando em Direitos Humanos na Uniritter e cursa licenciatura em Letras/Literatura (IPA). 

 

 

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