Artigo veiculado na 27ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.
Ives Gandra da Silva Martins*
Tem a Constituição Brasileira inúmeros defeitos, mas assegurou, de um lado, o equilíbrio dos poderes e, de outro lado, maior segurança jurídica, em face da valorização do Poder Judiciário, que passou a ter ampla atuação, para preservação do império das leis e manutenção do Estado Democrático de Direito.
Nenhuma outra Constituição brasileira (1824, 1891, 1934/37, 46 e 67) teve a abrangência democrática e o equilíbrio que a atual lei suprema conformou.
Deve-se tal equilíbrio ao fato de que toda a elaboração de nossa lei maior ter objetivado um sistema parlamentar de governo, ideal frustrado nas discussões finais do texto, em plenário da Constituinte, com o que alguns dos mecanismos de controle dos poderes, próprios do parlamentarismo, remanesceram no texto brasileiro. A própria medida provisória, cujo teor foi, quase por inteiro, cópia da Constituição de um país parlamentarista (a italiana), demonstra que a mudança do “rumo dos ventos”, no plenário da Constituinte, não foi capaz de alterar o espírito que norteara as discussões nas Comissões, até então.
Creio que a solução não foi ruim.
Criou-se um Poder Judiciário, como guardião da Constituição (artigo 102), que tem exercido com plenitude tal função, evitando distorções exegéticas que poderiam pôr em risco a democracia no País; um Poder Legislativo, com poderes reais de legislar, não poucas vezes tendo rejeitado medidas provisórias do Executivo; e um Poder Executivo, organizado dentro de parâmetros constitucionais, que lhe permitem adotar as medidas administrativas necessárias para que o País cresça e viva plenamente o regime democrático, sem tentações caudilhescas por parte de seus presidentes.
Por esta razão, nestes vinte anos, o Brasil conheceu um “impeachment” presidencial, superinflação – não hiperinflação, que sempre desorganiza as economias – escândalos como dos anões do congresso, do mensalão e da Casa Civil, alternância do poder e jamais, aqui, se falou em ruptura institucional, numa demonstração de que as instituições funcionam bem. Os três Poderes, nos termos do art. 2º da lei suprema, são “independentes e harmônicos”.
Ora, tal equilíbrio inexiste na Venezuela (a Constituição tem 350 artigos e 18 disposições transitórias), em que os cinco poderes são reduzidos a um, pois o povo é manipulado pelo Executivo e o Poder Legislativo e Judiciário, além do Ministério Público são poderes acó- litos. O presidente pode convocar referendos e plebiscitos (artigo 238 inciso 22), dissolver a Assembléia Nacional (inciso 21) e governar por leis habilitantes (inciso 8). Esta é a razão porque o Presidente Chávez, um verdadeiro aprendiz de ditador, perpetua-se no poder.
O Equador não fica atrás (Constituição com 444 artigos, 30 disposições transitórias e 30 de um regime de transição). Por ela pode o presidente dissolver a Assembléia Nacional (art. 148), direito que é dado também a Assembléia Nacional de destituir o presidente, hipótese, todavia, em que também se dissolve (130).
A Bolívia, com sua Constituição de 411 artigos e 10 disposições transitórias, tem no artigo 182 o instituto da magistratura eletiva por sufrágio universal para um mandato de 6 anos.
Normalmente, os poderes políticos, numa real democracia –e não na simulação de democracia dos 3 países analisados- são o Poder Executivo e o Legislativo. Suas forças se equivalem, não existindo apenas um poder forte, o Executivo, e um fraco o Legislativo. O Poder Judiciário é sempre um poder técnico, vale dizer, um poder cuja função é a preservação da lei produzida pelo legislativo. Por esta razão, é que, nas verdadeiras democracias, o povo não participa diretamente na sua escolha e de seus membros.
Como se percebe, há um profundo abismo entre a Constituição Brasileira, de 3 Poderes harmônicos e independentes, e as Constituições dos 3 países mencionados, em que, de rigor, apenas um poder existe (o Executivo), os demais são vicários. O chamado “poder popular”, permanentemente convocado, é de facil manipulação pelo presidente, visto que, nas consultas à sociedade, jamais poderia o povo examinar em profundidade a complexidade legislativa da consulta, como, por exemplo, discutir uma Constituição de algumas centenas de artigos!!!
Lembro, por fim, que um dos instrumentos da segurança jurídica no país refere-se ao papel das Forças Armadas, definido no “caput” do artigo 142 da C.F. assim redigido:
“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Qualquer dos Poderes constituídos brasileiros (Executivo, Legislativo e Judiciário) pode chamar as forças armadas para restabelecimento da ordem e da lei.
Apesar da disposição do artigo 142 da C.F., o equilíbrio de poderes existente na democracia brasileira é tal ordem, que jamais passaria pela idéia de qualquer cidadão ou de qualquer autoridade não acatar a decisão do poder judiciário, ou de qualquer governante não cumprir as leis produzidas pelo Poder Legislativo.
Concluindo este breve artigo, estou convencido de que há um processo inverso à democracia, que começa a invadir diversas nações da América Latina, nas quais o equilíbrio dos poderes deixa de existir, para a criação de um caudilhismo do século XIX e utilizando-se a manipulação do povo, no mesmo estilo de Hitler, Mussolini e Stalin.
Felizmente, o Brasil, graças a Constituição de 1988, não corre o risco que os nossos vizinhos estão vivendo.
*Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFIEO, UNIFMU, do CIEE/O ESTADO DE SÃO PAULO, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército – ECEME e Superior de Guerra – ESG; Professor Honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia); Doutor Honoris Causa da Universidade de Craiova (Romênia) e Catedrático da Universidade do Minho (Portugal); Presidente do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO – SP; Fundador e Presidente Honorário do Centro de Extensão Universitária.