Roma de Alfonso Cuarón: um caleidoscópio de imagens e documentos de uma América em preto e branco

            O Cinema pode nos trazer memórias do passado para melhor compreensão do presente, especialmente aquelas que concedem ferramentas para a sociedade entender e problematizar a realidade vivida. O premiado Roma (2018) de Alfonso Cuarón, apresenta um caleidoscópio de imagens e documentos de uma América em preto e branco, com feridas e cicatrizes sociais, dentre as quais, a exploração do trabalho dos povos originários e o massacre de estudantes mexicanos em 10 de junho de 1971 pelo grupo paramilitar “halcones” (falcões).

 

  1. Um caleidoscópio de imagens

            Roma faz parte da autobiografia de Alfonso Cuarón. Ambientada nos anos 70, quando o diretor ainda era um estudante do ensino fundamental, habitava no bairro de classe média, denominado Colônia Roma (por isso o nome do filme), na cidade do México, aos cuidados de Libória Rodrigues, ou simplesmente “Libo”, a quem dedica o filme.

            Ao que parece, o metarrelato de Alfonso Cuarón em Roma, “o cinema dentro do cinema”, caminhou de mãos dadas com a realidade, a exemplo das escolhas “arriscadas” que deram certo: não atores em papéis importantes, um filme de 1970 em formato digital, ou seja, “nada de grãos” em preto e branco; projeção de 65mm, o que proporcionou abertura de tela necessária para incluir detalhes, difíceis em recorde “quadrado”. Sem falar na utilização de elementos subjetivos, as panorâmicas, o closet pertinente, a ausência de roteiro para os atores, concedendo mais naturalidade as cenas; também a exploração do corpo feminino e masculino com cuidadoso trabalho fotográfico, inclusive na cena com nudez frontal do personagem “Fermin”; escolha por línguas faladas no México, mixteco e espanhol, um diferente processo cinematográfico, digno da história do cinema mundial.

            Mas nem tudo foi fácil para a carreira do filme Roma, este enfrentou uma discussão polêmica entre cinema e serviços de streaming no Oscar de 2019. Por ser o primeiro filme da Netflix a concorrer a premiação, foi duramente criticado por Steven Spielberg, para quem filmes de plataformas como a Netflix “poderiam concorrer ao Emmy, mas não ao Oscar”. Naquele mesmo momento, em entrevista, Alfonso Cuarón respondeu as críticas com uma indagação: “quantos cinemas você acha que lançariam um filme mexicano em preto e branco, em espanhol e em mixteco (língua nativa do México)?”. Um ano mais ou menos após essa polêmica, antes da pandemia se espalhar e as salas de cinema suspenderem as atividades, a Netflix consolidou-se como uma nova experiência de consumir cinema, o serviço de streaming recebeu 24 indicações ao Oscar 2020 e o CEO da plataforma afirmou que Roma abriu a porta para vitória de P            arasita: “a ideia de um filme falado em língua estrangeira poderia ter 10 indicações ao Oscar e vencer três” (UOL, 2020).

            No universo das personagens de Roma, as desigualdades de classe, etnia e gênero são evidenciadas na personagem “Cleo” (inspirada na trabalhadora doméstica e indígena “Libo”), que por sua vez é interpretada pela professora e indígena, Yalitza Aparício. Yalitza, por “não ser atriz”, foi alvo de comentários discriminatórios por parte de atores e apresentadores da TV Mexicana, que contestaram a indicação ao Oscar sob os seguintes argumentos: “não ter vocação nem futuro na área” e “ter a sorte das feias” (Najár, 2020). Todavia, muitas vozes se pronunciaram em favor da “performance” da professora, que recebeu o convite da ONU para atuar como embaixadora da Unesco pela luta por igualdade de gênero e combate à discriminação dos povos originários e, ainda, tornou-se membra da Academia de Cinema dos EUA (Globo, 2020).

 

  1. Uma América em preto e branco

            No fluxo das lembranças de Alfonso Cuarón há aparições de cachorros, em destaque o protagonista “Borras”, espécie que tem o mesmo nome do que interpreta na ficção, mas com uma história real muito triste: sofreu maus tratos e foi resgatado por Manuel Montero e Leonardo Serrano, que o encontraram “amarrado por um arame a uma parede de terreno baldio, a ponto de morrer de fome e sede” (El Comercio, 2020). Contudo, a presença de cachorros no filme Roma merece outras considerações. A exemplo a cena em que “Cléo” limpa as fezes de “Borras”, um trabalho repetitivo e sem muita eficácia, pois ao se afastar para cuidar de outras atividades, “Cléo” encontrará na volta a mesma sujeira para limpar. Talvez esta seja uma metáfora sobre o trabalho doméstico “infindável” e desvalorizado, que por sua vez remete há um passado colonial, em que os povos originários eram “aperreados”. O “aperreio” consistia em comer ou despedaçar os nativos, principalmente as índias, sobretudo as idosas ou “lentas”, que sofriam o “terror psicológico, a tortura física e a aplicação de pena de morte” (Piqueras, 2020).

            O “canibalismo canino” foi prática que o próprio Cristóvão Colombo utilizou nas primeiras campanhas de conquista repressiva. Mas, curiosamente, os cachorros que atravessaram o Atlântico em nada ou pouco tinham a ver com as espécies nativas domésticas encontradas pelo navegador. Estas eram pequenas, “bem alimentadas”, e para surpresa dos espanhóis, silenciosas. Nas palavras do próprio Colombo ao vê-las pela primeira vez: “Bestias de cuatro pies no vieron, salvo perros que no labraban” (Piqueras, 2020). “As bestas de quatro pés” eram mansas e caladas, neste sentido, impossível não observar a quietude e o silêncio de “Cléo” diante dos cachorros, desde as cenas em que eles aparecem vivos, latindo, pulando; ou mortos em cena, quando empalhados e pendurados na parede do quarto, observados enquanto a observam.

            A importância de Roma segue entrelaçando vidas para além das citadas: Libória, a inspiração para “Cléo” ficcional, Yalitza, a intérprete de “Libo”. Há outras evidências de desigualdades, como quando a personagem “Cléo” vai procurar pelo namorado “Fermin” para confirmar a gravidez, faz um percurso que desloca a personagem de um ambiente privado para o espaço público e periférico. É assim, de ônibus até a periferia da cidade, caminhando por ruas sem calçamento, onde casas improvisadas com restos de madeiras e teto de zinco compõem uma paisagem empoeirada e seca.

            Ao encontrar “Fermin”, que está treinando com um grupo, assiste com atenção até o final, quando se aproxima e pergunta se pode conversar com ele.  A resposta positiva é fria, ele está mais interessado em saber como foi encontrado. Depois, ao ser questionado se o treino é para as Olimpíadas, diz ser “mais ou menos”. Daquele momento em diante “Cléo” sofre a primeira ameaça, logo após informar que ele é o pai do filho que espera. “Fermin” grita segurando uma vara que jamais se envolveria com uma “faxineira de merda”.

            E é assim que a face violenta dos “halcones” aparece no filme Roma, na representação de “Fermin”.  Mas, o que eles eram? Sabe-se que “em 10 de junho de 1971, uma manifestação de estudantes contra a opressão do governo Luis Echeverría Álvarez foi atacada pelos ‘Halcones’ (Falcões, em português), um grupo paramilitar formado por jovens treinados pelo regime. O episódio ficou conhecido como Massacre de Corpus Christi – ‘El Halconazo’ é outro nome dado -, e virou símbolo da desigualdade na então pseudodemocracia mexicana, que chegou a ser chamada de ‘ditadura perfeita’ pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa, ganhador do prêmio Nobel.” (Dias, 2020)

            O grupo paramilitar reaparece mais adiante antes de entrar em ação no “massacre de Corpus Christi” ou “El halconazo”. Evento que no filme surge como resgate do crime de Estado que oficialmente matou 120 estudantes que protestavam pacificamente pela educação e liberdade. O diretor Cuarón afirmou em documentário, que teve sua consciência social despertada através das fotografias nos jornais sobre El Halconazo: “foi um protesto de estudantes e a imprensa os demonizou… pensei, como era estudante, isso poderia ocorrer comigo” (Camino a Roma, 2020).

            Depois do massacre de Tlatelolco, em 2 de Outubro de 1968 e da Marchar do Silêncio, os estudantes retomaram as ruas para protestar contra a imposição de uma nova lei orgânica que diminuía orçamento na Educação e criava um clima de vigilância e perseguição a estudantes e professores. Em uma das cenas sobre o dia em que ocorre a passeata, uma estudante aparece segurando um cartaz onde se ler “Por que? Repressão do desejo de Democracia”. (Camino a Roma, 2020). Era uma retomada do Movimento Estudantil por um “México livre” que atraiu a simpatia da classe média e por isso foi duramente reprimida pelo Estado. (Hobsbawm, 1995, p. 293)

            Segundo as conclusões do documento “La Verdad negada: informe histórico sobre la Guerra Sucia del Estado mexicano entre los años 60’s a los 80’s”, é no movimento estudantil de 1971 que o grupo paramilitar ‘Halcones’ aparece mais claramente. Os ‘Halcones” misturavam-se as reuniões e passeatas à paisana e tinha entre 18 e 24 anos de idade. Seu chefe imediato era o Coronel Manuel Díaz Escobar, “que em colaboração com outros chefes do exército mexicano e da polícia, bem como com o apoio de lutadores profissionais como Diantes Hernándes e Carta Brava deu formar a “Los Halcones” Os Halconazos foram recrutados entre garis, carregadores em mercados, membros de gangues e desempregados (Lá Verdad negada, 2012). “Os halcones não faziam parte da elite” foram recrutados pelo sistema como ferramenta da repressão. (Camino a Roma, 2020).

            Cuarón diz ter sido essencial recriar o som do México pela liberdade, assim como foi imprescindível o som do terror e os gritos das pessoas que se seguiram após a aparição dos ‘halcones’ que, de forma rápida, se misturaram no meio da multidão provocando pânico. (Camino a Roma, 2020). Em 10 de junho de 1971, eles usaram não só as suas habituais varas como armas de fogo de uso exclusivo do exército.

 

Considerações finais

            Fatos históricos como este foram usados como pretexto para a criminalização dos movimentos estudantis no México. Com o apoio da mídia, foi reproduzido o discurso acusatório do governo aos professores e estudantes de antinacionalistas e comunistas, quando era exercício de liberdade política que se exercia com as passeatas. Durante décadas o movimento estudantil do México foi apontado como principal responsável pelo acontecido e só recentemente, através do Centro de Investigações Históricas dos Movimentos Sociais (2012), a verdade antes negada, chegou ao conhecimento do mundo acadêmico e político. O Cinema o aproximou de todos nós.

 

REFERÊNCIAS

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CAMINO a Roma. Direção: Andrés Clariond, Gabriel Nuncio. México: 2020. (72min)

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COUSINS, M. História do cinema: dos clássicos do cinema mudo ao cinema moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

DIAS, Tiago.O massacre que matou 120 pessoas no México está no coração de “Roma”. Disponível em: https://www.google.com.br/amp/s/tab.uol.com.br/noticias/redacao/2018/12/27/o-massacre-que-matou-120-pessoas-no-mexico-esta-no-coracao-de-roma.amp.htm. Acesso em: 27 set 2020.

EBERSOL, Isadora; PENKALA, Ana Paula. Um olhar sobre a condição feminina no filme Roma. RELACult – Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade, [S.l.], v. 6, mar. 2020. ISSN 2525-7870. Disponível em: <http://periodicos.claec.org/index.php/relacult/article/view/1766/1147>. Acesso em: 20 set. 2020. doi:http://dx.doi.org/10.23899/relacult.v6i4.1766.

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La Verdad Negada: informe histórico sobre la Guerra Sucia del Estado mexicano entre los años 60’s a los 80’s. Centro de Investigaciones Históricos de los Movimentos Sociales, A.C. México, 2012

NAJÁR, Alberto. ‘Roma’, da Netflix: por que atores mexicanos estão atacando Yalitza Aparicio, indicada ao Oscar de Melhor Atriz. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-47278923. Acesso em: 26 set. 2020.

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 Kennya de Lima Almeida. Mestre em História do Brasil pela UFPE. Especialista em Direitos Humanos pela UFPE.

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0113208010179546

 

 Synara Veras de Araújo. Mestre em Direito – UNICAP. Especialista em Direitos Humanos – UNICAP. Especialista em Estudos Cinematográficos – UNICAP. Especialista em Advocacia Geral – UNICID.

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5104006940932005

 

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