A responsabilidade civil é questão central no Direito Civil, especialmente numa realidade moderna de exposição cada vez maior a riscos, como sói acontecer em situações de relações de consumo ou danos ambientais, v.g., e, consequentemente, à existência de danos, muitos dos quais restam irressarcidos.
Justamente por isso, passou-se a observar, modernamente, o desenvolvimento e aprimoramento do fenômeno jurídico da objetivação da responsabilidade civil, desprendendo-se da noção de culpa e trabalhando, em muitas situações, com a ideia apenas de tornar-se responsável, conquanto não culpado, como, p. ex., na cláusula geral de responsabilidade objetiva insculpida no CC 927 par. ún.: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
Ou seja, em muitas situações, tratou-se de centrar o estudo na questão do dano e não na discussão de culpa, desprendendo-se da ideia de ilicitude como pressuposto necessário para a responsabilização civil, viabilizando-se falar, inclusive, em responsabilidade civil por atos lícitos.
O modelo de responsabilidade civil centrado na ideia da culpa há muito já se revelou insuficiente, traduzindo-se o dano existente não reparado em um dos mais fundamentais problemas do direito, como há muito apontava Enneccerus (Tratado de derecho civil, tomo I, vol. II, 2.ª parte, pp. 844/845).
Esse problemase explica em razão antiga concepção da ideia de responsabilização, fortemente calcada na culpa [responsabilidade subjetiva].
Assim, nos primórdios, a regra jurídica se consubstanciava na concepção de que sem culpa não haveria que se reparar o dano [como, p. ex., se observa nos brocardos nullus videtur dolo facere qui suo jure utitur, enemo damnum facit, nisi qui id fecit, uod facere jus non habet].
Esses brocardos revelam a concepção moral subjacente à ideia de responsabilidade, no sentido de que só deve tornar-se responsável aquele que agiu sem direito ou com culpa, em suma, responsabilizando-o por um ato ilícito.
É justamente esse componente ético presente nessa ideia de responsabilidade civil (subjetiva) que contribui para que houvesse dano sem reparação.
E por mais que a conceito jurídico da responsabilidade civil (objetiva) tenha evoluído ainda se encontra presente – ou ao menos inconscientemente latente – a ideia de culpa quando se fala em responsabilidade civil.
Contudo, a modernidade – especialmente séculos XIX e XX, caracterizados por uma grande transformação da sociedade [com o incremento da industrialização], gerando um agravamento dos danos –,demonstrou que há necessidade [prática] de reparar o dano, sem, entretanto, traduzir-se com isso sempre um apenamento da conduta, uma reprovação moral da conduta.
Em razão disso, quando se comete o equívoco de confundir-se a responsabilidade objetiva com uma presunção de culpa [présomption de faute juris tantum (Geneviève Schamps. La mise en danger: un concept fondateur d’un príncipe géneral de responsabilité, p. 31)], permanece ainda, nessa confusão, a reprovação da conduta, permanece o componente ético do apenamento, porquanto “culpa presumida, ainda que presumida, é culpa” (Giselda Hironaka. Responsabilidade pressuposta, p. 295), daí falar-se em presunção de responsabilidade [responsabilidade pressuposta; présomption de responsabilité] (Geneviève Schamps, idem).
Livrar-se dessa ideia de responsabilidade civil como «apenamento»constitui o grande desafio da modernidade, traçando-se como ratio essendi da responsabilidade civil objetiva não o apenamento e sim la réparation des dommages.
Deste modo, enquanto a responsabilidade civil subjetiva mantém a conotação de apenamento [punitiva], não há (ou não deveria haver), na responsabilidade civil objetiva, qualquer reprovação ética de apenar-se ou punir-se, mas, como regra, tão-somente a ideia de reparar-se o dano. Trabalha-se, assim, apenas com a ideia [prova] de dano e nexo de causalidade.
Sendo que a responsabilidade civil objetiva sem culpa e não com presunção de culpa tem duas importantes consequências para o mundo do direito: (i) haverá um número menor de danos sem reparação; (ii) o quantum indenizatória deverá limitar-se a tão-somente reparar o dano, posto que não terá qualquer caráter de apenamento [punitivo; responsabilidade-sanção].
Para que possamos trabalhar com um ideal prático de um menor número de danos irressarcidos, é preciso que não se compreenda responsabilizar (objetivamente) com culpar (v. Castanheira Neves. Digesta, 3.º vol., p. 132).
Thiago Rodovalho
Professor-Doutor da PUC|Campinas. Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP, com Pós-Doutorado no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht em Hamburgo, Alemanha. Membro do IASP, do IDP, do IBDP e do IBDFAM. Autor de diversas publicações no Brasil e no exterior. Advogado em SP.