Luiz Eduardo Oliveira; José Eduardo Franco (dir.). Dicionário dos Antis: a cultura brasileira em negativo. Campinas: Pontes, 2021, 860p.
Jean Pierre Chauvin*
Suponho que haverá poucas experiências de leitura mais inusitadas que nos depararmos com um dicionário de feição enciclopédica, com oitocentas e sessenta páginas, que comporta mais de uma centena de verbetes, assinados por cento e treze autores atuantes em diversas áreas do conhecimento.
Ainda assim, dizê-lo é pouco, levando-se em conta que o projeto que deu origem a este monumental Dicionário dos Antis teve início em 2012. Isso significa que, por mais de sete anos, Luiz Eduardo Oliveira (Docente da Universidade Federal de Sergipe) e José Eduardo Franco (Professor Catedrático da Universidade Aberta) agregaram numerosos colegas, a maior parte deles sediados no Brasil e em Portugal, estimulando-os a assumir a autoria de verbetes: todos iniciados pelo prefixo “anti”.
A tarefa não era pouca, nem pequena, pois nutria-se de uma ideia que constituía feliz ousadia. Em tempos de fragmentação dos saberes, proliferação de conceitos binários e deslumbramento com amenidades, corria-se o risco de o plano de trabalho não ser levado adiante, tendo em vista o desafio de reunir numeroso grupo de pesquisadores capazes de repensar a história, a sociedade, as artes, as ciências e a cultura sob o prisma do negativo.
O primeiro verbete, preparado por Ieda Maria Alves, trata justamente do prefixo: “Anti-, originário do formante grego ant(i)-, de antí “contra, diante de, em vez de”, é registrado em unidades lexicais eruditas formadas no grego, a exemplo de antártico, antídoto, assim como em unidades constituídas nas línguas modernas”. De certa forma, ele também funciona como uma declaração de princípios: previne e instrui o consulente de que está diante de uma obra capaz de introduzir a dúvida, descolonizar sua percepção das coisas, sugerir releituras do mundo, para além das fórmulas maniqueístas.
Afortunadamente, o que o projeto tinha de inovador materializou-se em um bem cultural de inegável impacto, publicado sob os cuidados da editora Pontes. Na Apresentação ao volume, Oliveira e Franco estabelecem as premissas da obra, iniciada com quase uma década de antecedência: “Além do seu contributo empírico, o dicionário permitirá uma reflexão mais profunda sobre os fundamentos teóricas das produções discursivas ‘anti’. O estudo metódico de uma quantidade significativa de discursos ‘anti’ permitirá uma reflexão profunda sobre os limites da modernidade”.
Se o leitor procura por outras pistas do que vai nele, bastará percorrer o Sumário, com seus cento e dezesseis verbetes, para ter melhor ideia da abrangência antevista nos temas que o volume comporta. De “antiaborto” a “antixenofobismo”, o dicionário oferece densas reflexões que envolvem política, comportamento, estética, economia, sistemas de governo, educação, literatura, religião etc., etc., etc., sem perder de vista o caráter inovador da obra e o seu feitio heterodoxo.
De fato, se o dicionário de sinônimos nos habituou a buscar os sentidos denotativo e figurado das palavras (correntes ou em desuso); se o dicionário de regências nos ensina a empregar nomes e verbos em acordo com o registro padrão da língua; se o dicionário de história faculta reconstituir eventos, situados temporal e espacialmente, elegendo protagonistas de batalhas, leis e revoluções; se o dicionário de mitologia auxilia a compreender melhor a genealogia dos deuses e semideuses durante a Antiguidade; se o dicionário de simbologia permite descobrir associações entre os objetos e as características que os animam; se o dicionário de filosofia traduz conceitos e apresenta a biografia de célebres pensadores que pontuam nossa existência, o Dicionário dos Antis se propõe a coisa bem diferente.
Sim, porque afora a amplitude e seriedade revelada na leitura dos verbetes, deve-se ressaltar o cunho interdisciplinar que orienta a confecção do dicionário. Para dizê-lo sinteticamente, talvez seja mais seguro parafrasear o que vai na quarta capa: trata-se de uma obra que coloca a história (em que o próprio dicionário está inscrito) sob a perspectiva dos contrários.
Quer dizer, o subtítulo (a cultura brasileira em negativo) responde pelo primeiro estranhamento do leitor, estimulando-o a repensar o que implicam as acepções do termo “negativo”: revelar o avesso da história, como faríamos ao revelar um rolo de filme? Contrastar o que supomos saber com as referências que os autores dos verbetes trazem? Assumir a perspectiva do outro, num tempo em que vivenciamos a superinflação do individualismo?
A esse respeitom há uma discussão tão ou mais instigante, anunciada por Pierre Antoine Fabre (École de Hautes Études em Sciences Sociales – Paris) no Posfácio: “O ‘anti-’ faz existir um polo positivo, pressupõe seu oposto, postula uma certa forma de unidade de seu contrário, ao mesmo tempo em que unifica sua própria pluralidade”. Nesse sentido, o Dicionário dos Antis não é apenas uma obra de referência; pode ser consultado ou lido como um tratado que incentiva a enxergar as pessoas e coisas pelo avesso da ideia pronta, contradizendo o poderoso (mas sempre limitado) império do senso comum.
- Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada, é docente do curso de Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde ministra disciplinas de cultura e literatura brasileira.