Artigo veiculado na 26ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.
Elpídio Donizetti *
A última onda reformadora do CPC conferiu, entre outras inúmeras novidades, nova redação ao art. 518. Na crista da efetividade do processo, o §1º, acrescentado pela Lei 11.276 de 08/02/06, trouxe a inovação de que “o juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal”.
Pareceu aos ainda crentes na benevolência do legislador que a nova previsão propunha-se a encurtar parcela sobressalente do ritual cabalístico a que hoje ainda damos o nome de processo. Na prática, porém, os resultados são outros, e os recursos que abarrotam as prateleiras do meu gabinete no TJMG confirmam essa realidade.
Além de uma série de pressupostos de admissibilidade de recursos, cujo debate não comporta nos limites deste texto, o legislador instituiu o que se denomina súmula impeditiva de recurso. Trata-se, em linhas gerais, de ferramenta processual introdutória da jurisprudência consolidada do STJ e do STF no âmbito do juízo de admissibilidade recursal.
Devo confessar que, num primeiro momento, a minha ingenuidade falou mais alto e enxerguei no art. 518, §1º um paliativo para a avalancha de recursos que chegam aos tribunais. Não obstante o engessamento, porquanto a famigerada “sumula impeditiva” obstaculiza o debate das partes sobre o conteúdo do ato decisório, incauto, inegável me pareceu que o dispositivo contribuiria para a celeridade. Afinal, alardeavam que a tal súmula impediria recursos.
Que nada. A miraculosa criação, paradoxalmente, aumentou o número de recursos. Explico. No levantamento estatístico por mim levado a efeito no âmbito do meu tribunal não encontrei um caso sequer em que o juiz tenha negado recebimento à apelação e a parte não tenha agravado. Assim, em casos tais, em vez de julgar uma apelação, o tribunal passou a julgar esta e o agravo interposto contra a decisão que inadmitiu o apelo.
Fato é que não se pode depositar todas as fichas em comandos revisadores de procedimentos, so-bretudo quando engendrados na vã expectativa de que os litigantes abdicarão da garantia do contradi-tório, o que, a toda evidência, inclui a prerrogativa de impugnar as decisões judiciais. As soluções para a morosidade do processo, definitivamente, não se encontram em regrinhas como a do art. 518, §1º. E, infelizmente, parcas são as iniciativas de juristas e legisladores no sentido da verdadeira efetividade, que em última análise reside num processo justo.
É certo que a perspectiva de um processo justo e efetivo constitui um desafio para o qual a comunidade jurídica contemporânea tem sido insistentemente convocada. Mas não nos iludamos: as conquistas miradas nunca poderão derivar de um modelo vertical, concebido nos castelos de Brasília e imposto à sociedade goela abaixo. Mais do que um arquétipo embasado na inteligência ilusória do legislador, a efetividade do processo, nos dias de hoje, deve levar em conta a complexidade das relações humanas e o pluralismo inerente à vida democrática.
Nesse momento vem-me à mente uma passagem bastante engraçada da Copa do Mundo de 1962. Uma das estrelas da seleção brasileira, o craque Mané Garrincha, foi certa vez avisado pelo técnico Aimoré Moreira sobre algumas mudanças no esquema tático de jogo. O objetivo era aumentar as chan-ces de conclusão de jogadas até então só tentadas. Garrincha, algumas horas antes do memorável jogo contra o Chile para as semi-finais, escutou todas as ponderações de Moreira sem demonstrar hesitação. Ao final, porém, do alto da sua sábia ingenuidade, fez a pergunta que não queria calar: “mas vocês combinaram com os adversários para eles não marcarem a gente nas novas posições?”
Muito mais perspicaz que o legislador pátrio, o nosso sagaz Mané – que alguns viam como um limítrofe – já antecipava um problema que hoje contamina a aptidão de várias normas trazidas pela última onda reformadora, entre elas o art. 518, §1º. E aqui fica a minha pergunta: essa súmula impeditiva impede, na verdade, o quê? A resposta é óbvia: nada. Porque se esqueceram de combinar com os litigantes, estes, justificadamente, insistem em fazer valer as suas razões, ainda que à custa de mais um recurso. Em sendo assim, podemos denominar o miraculoso engenho, gestado por reconhecidos gênios cujas vistas não ultrapassam os limites do próprio umbigo, de “súmula incentivadora de recursos”. Como dizia Santiago Dantas, quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga e ignora o direito. E que vingança, hem?
Minha experiência ratifica a percepção de que a (ir)racionalidade de certas medidas do legislador brasileiro, principalmente quanto a reformas no sistema processual, contribui, no geral, tão-somente para entulhar ainda mais as prateleiras do Judiciário.
É também com essa percepção que devemos gestar um novo CPC, não olvidando que a verdadeira mudança imprescinde de uma reestruturação sistêmica atrelada a uma compreensão do ordenamento como edifício vivo e base ativa de reconstrução ininterrupta.
Lembro-me de lição de Aliomar Baleeiro sobre a complexidade inexorável do universo jurídico, ou do próprio universo humano. Para o genial tributarista, não se poderia estancar as feridas de questões postas pelo Direito com um mero pano úmido, como se a solução estivesse ali, no preto ou no branco. O campo jurídico é sempre cinza, sempre ameno, sempre alojado no interregno de um discurso metido em meio a um cabo de guerra de argumentos, refutações e motivações das mais diversas.
Se quisermos, portanto, conceber um novo CPC no cinza, não podemos agir com arrogância e presunção, o que, em última análise, denota falta de massa cinzenta. E essa substância que nos faz à imagem e semelhança de Deus é o que falta aos pseudo juristas que mais se assemelham a insetos: não podem ver a luz de um holofote que, ofuscados, nela se grudam, não obstante o risco de morrerem queimados. E o que é mais grave: ainda que advertidos do risco, cegos de vaidade, invocam a vassalagem, sempre prontos para uma moção bajulativa.
De toda forma, regrinhas de video game não resolvem a morosidade do Judiciário. Não encontraremos nos contos de fada ou nos livros de receitas a solução para a saturação dos fóruns e o entulhamento dos tribunais. Súmulas impeditivas de recursos – exatamente porque nada impedem – não logram qualquer êxito em desafogar o sistema recursal. A efetividade do processo depende de um aprimoramento no uso da técnica, da consciência dos jurisdicionados, do comprometimento integrado de todos em prol da produção de efeitos jurídicos práticos e principalmente por uma profunda reestruturação da máquina judiciária. Só assim seremos talvez um dia capazes de presentear a nossa tão maltratada República com um processo materialmente justo e efetivo, com as patas fincadas na realidade social e de olhos para o futuro. Dizer que o Código que está por vir (PLS 166/2010) significará uma redução de 70% nos prazos processuais – sobretudo quando não combinado com os jurisdicionados – significa um arrematado engodo, tão ao gosto dos politiqueiros de plantão, que se valem da pirotecnia – e dos projetos de código também – para desviar o foco das maracutaias, dos atos secretos. No final, tudo não passará de miragem, de frustração geral. E os mistificadores, cada um de acordo com as suas aspirações, procurará melhorar sua posição ao sol. Que a terra lhes seja leve.
* Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, professor de Direito Processual Civil, membro da Comissão de Juristas incumbida da elaboração do Novo CPC e autor de diversas obras jurídicas, entre elas, Curso Didático de Direito Processual Civil e Ações Constitucionais, publicadas pela Editora Atlas.