A questão das armas em debate (3ª parte) ou “arme-se e salve-se quem puder: o eterno círculo vicioso dos crimes violentos contra a vida”
Eduardo Pazinato[1]
A exemplo do debate atual acerca da política sobre drogas (ou da ausência dela) e da maioridade penal, a questão do impacto do controle de armas no Brasil vem adquirindo contornos grenais, dicotômicos, per se reducionistas, a demandar a desmistificação de alguns lugares comuns no imaginário social e político[2].
O primeiro deles pode ser resumido com a seguinte afirmação: “portar arma de fogo é um direito baseado na liberdade de escolha que assiste a todo(as) cidadão(ã)”.
Ora, pesquisas aplicadas, muitas das quais capitaneadas pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), desfazem esse equívoco, seja pela ótica da melhor hermenêutica constitucional, seja pela ótica do entendimento do emprego da arma de fogo como fator de risco gerador de mais violência, inclusive, e sobretudo, a letal. Vejamos:
1. A liberdade deve ser regulada no Estado Democrático de Direito;
2. Os direitos individuais não são e nem pode ser absolutos, posto que devem ser relativizados ante os direitos sociais, da coletividade;
3. Logo, como pesquisas aplicadas comprovam, o acesso irrestrito e/ou indiscriminado de armas nas mãos de civis atenta contra o direito maior à vida;
4. De outra parte, o referendo de 2005 perguntou: “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”. A resposta foi NÃO e o Estatuto do Desarmamento não o proibiu, apenas restringiu a compra de armas por civis, ao passo que não eliminou o comércio nem a compra de armas no Brasil. Segundo a Polícia Federal (Sinarm), 121 mil novos registros de armas foram autorizados de 2004 a 2014, destes 72 mil para civis. No mesmo período, segundo o Exército, mais de 500 mil armas, vendidas no mercado civil.
Outro mito que recai sobre a problemática do uso de armas em terra brasilis refere-se à tese de que a “disponibilização de armas nas mãos de civis dará mais segurança aos pais de famílias e tornará o país mais seguro”. Uma vez mais não assiste razão a esse primado. Isso porque:
1. Mais armas de fogo causam mais acidentes envolvendo crianças, jovens e adultos;
2. Mais armas de fogo causam mais homicídios, conforme pesquisa do Instituto Sou da Paz: 40% das armas ilegais apreendidas com criminosos tiveram um registro legal, mas foram, em algum momento, extraviadas, roubadas ou furtadas de “cidadãos de bem” e utilizadas para cometer crimes ou vendidas no mercado paralelo);
3. Mais armas dentro de casa aumentam as probabilidades de arrombamentos e roubos a residências;
4. Mais armas não protegem o pai de família ou o famigerado “cidadão de bem”, pelo contrário, ampliam o cometimento de violências e crimes, daí a importância de regular (leia-se restringir) o seu uso e a sua circulação.
Vale ressaltar, como se afirmou alhures, que o crescimento dos homicídios nas décadas de 90 e anos 2000 coincide com o aumento das armas de fogo em território nacional. A contrario sensu, como parte de um exercício estatístico contrafactual, proposto por pesquisadores do IPEA[3], no caso da permanência dos índices de uso e circulação de armas de fogo nos mesmos patamares da década de 80, o Brasil teria hoje taxas de homicídios claramente menores do que as hodiernas, superior a dois dígitos.
Outrossim, de acordo com os pesquisadores Daniel Cerqueira e João Manuel de Mello, tendo como unidade de análise o Estado de São Paulo, o Estatuto do Desarmamento teve um efeito significativo para diminuir a prevalência de armas nos municípios paulistas, bem como a menor difusão de armas nessas localidades contribuiu para a diminuição da taxa de homicídios em geral no Estado de São Paulo.
Ademais, não há qualquer correlação entre a difusão de armas de fogo nas cidades e crimes contra a propriedade. Isso significa que o criminoso não responde à dissuasão pela vítima armada e sim a outros fatores relacionados às oportunidades e restrições do mercado criminal.
Diversamente, existe uma correlação estatística entre difusão de arma de fogo e vitimização letal no Brasil, sendo que o maior controle daquele pode impactar – controlar ou reduzir – esta, daí a importância do Estatuto do Desarmamento.
Como se sustentou outrora, a falta de transparência dos números das violências e dos crimes oculta um genocídio juvenil e um padrão de letalidade das violências no Brasil sem paralelo no mundo. Reformas profundas no modelo de gestão da segurança (e da justiça) afiguram-se essenciais e urgentes, a começar por um Pacto Nacional de Controle dos Homicídios Letais Intencionais.
A “gestão por espasmos”, calcada em respostas meramente criminais, de curto alcance, geralmente derivadas da cultura do medo, tende a dominar a atuação dos órgãos e das instituições desse campo, assim como o senso comum punitivo, como se percebe na questão das drogas, das armas e da maioridade penal atualmente.
A ineficiência no controle, na prevenção e na redução das violências contribui para reforçar a falta de confiança e credibilidade das polícias e demais agências integrantes de um não sistema de segurança (e justiça) e a reificar o endurecimento penal.
O “mais do mesmo” em matéria penal ajuda a perpetuar o sentimento, tão comum junto aos profissionais da segurança pública, de que se está apenas a “enxugar gelo”. Afinal, a morte violenta de cerca de 56 mil pessoas ano a ano no país, a maioria delas com o emprego de arma de fogo, não pode ter sido em vão. Muito precisa mudar para possamos conviver com outros patamares de civilidade e dignidade. Consabido, pois, que, nesse contexto, as violências e o sentimento de insegurança são os piores inimigos para a segurança dos direitos[4], em especial à vida e à liberdade!
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[1] Doutorando em Políticas Públicas (UFRGS), Diretor de Inovação do Instituto Fidedigna e Coordenador do Núcleo de Segurança Cidadã da FADISMA.
[2] Este artigo é tributário da palestra proferida pelo autor no IV Debate Jurídico, promovido pelo Diretório Acadêmico Unejuris e pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), na cidade de Santa Maria, entre 26 e 28 de maio de 2015.
[3] Mais em: CERQUEIRA, Daniel, et al. Mapa das Armas de Fogo nas Microrregiões Brasileiras. Em: file:///D:/Users/Pesquisadores/Downloads/mapaarmas%20(3).pdf. Acesso em 24/05/2015
[4] Essa expressão faz alusão à chave de leitura da obra do autor: PAZINATO, Eduardo. Do Direito à Segurança à Segurança dos Direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.