Refluxos da Segurança dos Direitos no Brasil: a questão da maioridade penal em debate – 2ª parte

Eduardo Pazinato[1]

A falta de transparência dos números das violências e dos crimes oculta um genocídio juvenil e um padrão de letalidade das violências no Brasil sem paralelo no mundo. Reformas profundas no modelo de gestão da segurança (e da justiça) afiguram-se essenciais e urgentes[2].

A “gestão por espasmos” (PAZINATO, 2012), calcada em respostas meramente criminais, de curto alcance, geralmente derivadas da cultura do medo, tende a dominar a atuação dos órgãos e das instituições desse campo, assim como o senso comum, como se percebe nas questões das drogas, das armas e da maioridade penal atualmente.

A ineficiência no controle, na prevenção e na redução das violências contribui para reforçar a falta de confiança e credibilidade das polícias e demais agências integrantes de um (não) sistema de segurança (e justiça) e a reificar o endurecimento penal.

Nesse contexto, o mais novo mito que avulta no cenário das políticas criminais contemporâneas, a obliterar uma necessária agenda em prol da segurança dos direitos[3] no país, diz com a redução ou não da maioridade penal.

Segundo seus defensores: “o problema da insegurança no Brasil é a impunidade em relação às crianças e aos adolescentes”. Trata-se de mais uma falácia ancorada na famigerada cultura punitiva, manifesta no furor legiferante de leis penais e de majoração de penas, que, em nada, colabora com a construção de novos marcos, socioculturais e político-institucionais, para o controle, a prevenção e a diminuição das violências e crimes.

Pelo contrário, a eventual aprovação da malfadada PEC 171/93 (estelionatária na origem) tende apenas a fortalecer uma longa história de violências (das interpessoais às institucionais) contra crianças e adolescentes e de vidas de jovens ceifadas, brutalmente, no Brasil.

Destarte, mister desconstruir alguns dos principais mitos que concorrem para o recrudescimento da questão da redução da maioridade penal no Congresso Nacional e nas ruas, na contramão do que preconizam as mais sérias instituições de segurança, justiça e direitos humanos, no plano nacional e internacional, a saber:

1. Há múltiplas formas de responsabilização. Grosso modo: as penas de prisão, as medidas de segurança e as medidas socioeducativas;

2. No caso de adolescentes (de 12 a 18 anos), em atenção ao princípio da proteção integral dos direitos das juventudes, em eventual cometimento de atos infracionais, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê a possibilidade de aplicação de medidas socioeducativas, entre elas: a internação – restrição ao direito de liberdade do adolescente, ou “prisão”, se preferirmos atribuir o significante correto ao seu significado em concreto.

Outro estratagema adotado por essa linha de pensamento aponta que “o Brasil está na contramão dos países desenvolvidos que adotaram idades penais mais baixas e/ou enrijeceram as penas contra crianças e adolescentes”. Uma vez mais não assiste razão aos seus adjudicadores, justamente porque:

1. Em matéria de responsabilidade penal, o Brasil fixa a idade mínima de 12 anos, conforme o ECA, para responsabilização e de 18 anos para a imputabilidade penal, conforme o Código Penal;

2. Ademais, apenas 1% dos homicídios praticados no Brasil são cometidos por jovens entre 16 e 18 anos, incluindo as tentativas. Dito de outro modo, mesmo que esse percentual varie de fonte a fonte, de acordo com levantamento parcial divulgado pela Secretaria Nacional de Direito de Humanos da Presidência da República (SDDHH/PR), homicídios representavam 8,8% dos atos infracionais imputados a crianças e adolescente no Brasil, em 2013, e 1,9% de latrocínios.

Daí porque a parte não pode explicar o todo! Dito de outro modo, a mais rasa interpretação da Constituição Federal acerca da simbólica PEC 171/93, que propugna a redução da maioridade penal, conduz-nos a compreender que:

1. Na linha do que sustentam o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e uma série de outras entidades de classe e da sociedade civil organizada, reduzir a maioridade penal para 16 anos, além de uma medida inútil para “conter a criminalidade”, é flagrantemente inconstitucional (arts. 60, § 4º, IV c/c 227,§3º, V c/c 228/CF), por violar norma pétrea;

2.  Viola, ainda, Tratados Internacionais firmados pelo Brasil, na medida em que a defesa dos direitos humanos, sobretudo das juventudes, está lastreada no princípio da vedação ao retrocesso aos direitos fundamentais;

3. Além disso, a despeito das dificuldades de se mensurar a reincidência, pesquisas aplicadas demonstram que, enquanto a reincidência no sistema prisional, para adultos, é de, pelo menos, 70%, a de adolescentes oscila na ordem de 15%;

4. Ademais, aproximadamente 36% das vítimas letais no Brasil são adolescentes, a reclamar, isto sim, na a redução da maioridade penal, porque inócua, mas o fortalecimento de políticas públicas de proteção e defesa a esse segmento social, vulnerabilizado e vitimizado.

A construção de um novo pacto federativo, o aperfeiçoamento da capacidade de gestão da informação, um pacto nacional pela diminuição dos homicídios, a reforma do modelo policial, a modernização da política criminal (e do sistema de medidas socioeducativas) e penitenciária e, ainda, a revisão da atual política sobre drogas são alguns dos principais desafios que se apresentam para a democracia brasileira contemporaneamente a constituir medidas prioritárias, em contraposição à redução da maioridade penal em debate.

Se é certo que mais investimentos são necessários, também se torna evidente que sem diagnóstico assertivo, metas claras e indicadores para mensuração e aferição dos resultados quaisquer investimentos reforçarão a lógica do “mais do mesmo”, ajudando a perpetuar o sentimento, tão comum junto aos profissionais da segurança pública, de que se está apenas a “enxugar gelo”.

A segurança pública não pode continuar a reboque da espetacularização da dor e da mercantilização da punição e do castigo. A morte de cerca de 56 mil pessoas ano a ano, em sua maioria jovens, pobres e negros, é inaceitável!

 

[1] Doutorando em Políticas Públicas (UFRGS), Diretor de Inovação do Instituto Fidedigna e Coordenador do Núcleo de Segurança Cidadã da FADISMA.

[2] Este artigo é tributário da palestra proferida pelo autor no IV Debate Jurídico, promovido pelo Diretório Acadêmico Unejuris e pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), na cidade de Santa Maria, entre 26 e 28 de maio de 2015.

[3] Essa expressão faz alusão à chave de leitura da obra do autor: PAZINATO, Eduardo. Do Direito à Segurança à Segurança dos Direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.

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