Reflexões sobre o governo Sartori

por Jorge Barcellos – Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Chefe da Ação Educativa da Seção de Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre. Publicou “Educação e Poder Legislativo (2014).

Estamos chegando ao décimo mês do governo José Ivo Sartori e aonde chegamos? O governo Sartori começou com um grande equívoco: cortar gastos públicos no inicio do ano não significa gastar menos no exercício. Grandes e repetidos cortes são sintomáticos de estratégias mal desenhadas. É uma prática comum: começa o ano e os governos de todos os níveis – estadual, federal e municipal – cortam o desejo gastar de seus órgãos. A regra é que depois do corte generalizado e indiscriminado, o tesouro administra o caixa de forma a acumular os recursos que vão ingressando e a partir de meados do ano, começa a afrouxar o contigenciamento. Assim, os gastos começam a se aproximar do que era previsto pela LDO para o exercício do que o orçamento contingenciado. A economia é uma ilusão. Não é o que o pagamento integral dos salários do mês de setembro indica?

O governo Sartori resolveu agir praticando austeridade fiscal. O problema é que, quando o governo resolver soltar o dinheiro para fazer as coisas que deixou de fazer, encontrará um novo problema, o do tempo necessário para fazer o empenho dos recursos e aí estes ficarão na conta “restos a pagar” do ano seguinte. Foi o ocorreu com o governo federal entre 1999 e 2003. Contingenciar um orçamento não significa corte de fato, é como se  o governo resolvesse fazer uma poupança para gastar depois. O problema é que só piora as coisas. E ficam as dividas para o novo exercício.

A politica de corte de recursos vale a pena? Ela coloca em polvorosa a sociedade, produz o declinio da produtividade/qualidade dos órgãos públicos, amplia os custos futuros com treinamento de pessoal e  recuperação de infraestrutura que tendem a ultrapassar em muito as economias obtidas no curto prazo. O que se espera do governo? Que capacite o fisco a buscar receitas extraordinárias, o verdadeiro esforço adicional fiscal do governo José Ivo Sartori em relação ao governo de Tarso Genro. As políticas públicas vão de mal a pior: basta ver a situação da maioria dos arquivos e museus do estado, como o Museu Hipólito José da Costa, que encontra-se em estado de penúria, com acervos valiosos largados a própria sorte, retrocedendo a situação de 1998, o que se repete em várias áreas. É um grande salto para trás.

Outros fatos comprovaram também que o governo está no caminho errado. Ficou famoso o depoimento da PM nas redes sociais que dizia o seguinte, faço questão de transcrever: “Mais um serviço. Apesar da situação humilhante que passei ontem enquanto estava em PB na esquina do calçadão em horário de serviço, tenho que tentar levantar a cabeça e ostentar a farda que “carrego”, pois o fato que ocorreu foi o seguinte…Eu estava tirando serviço na famosa esquina do calçadão, local este de grande visibilidade aos comerciantes de Santiago (que não dão o mínimo valor pra nós) e passaram alguns guris (+ou- 20 anos) e fizeram o seguinte comentário entre eles “será que eles  aceitam cesta básica de doação?”, seguido de um sorriso irônico. Vi que o comentário era pra nós brigadianos. Em outro momento eu abordaria, identificaria e mandaria se explicar, mas minha moral estava tão no c..do cachorro que só me deu vergonha e vontade de chorar, foi então que percebi que naquele momento meu lado polícia não estava ali me acompanhando, então o desespero foi maior. Tiraram tudo de nós, mas o que mais tá doendo é que tiraram nossa dignidade. Desculpa o desabafo. Que Deus nos dê forças.”

Foi um depoimento compartilhado por milhares de pessoas em todo o estado nas redes sociais, o depoimento emocionado da brigadiana Vivianne Contessa ao descrever seu sentimento pelo parcelamento do salário. Para um policial  é muito  importante o que se chama “moral das tropas”.  Durante a segunda guerra, especialistas afirmam que o sucesso do Dia D foi devido ao fato a “os soldados americanos tinham visto pouco a guerra”. As tropas que desembarcaram na Normandia eram soldados sem traumas e não sabiam ao certo o que o tiro de uma metralhadora alemã poderia fazer.  A moral de tropa elevada garantiu a vitória.

No Rio Grande do Sul, a moral dos servidores está em baixa. Quando já estávamos perdendo a batalha contra a violência, contra a criminalidade, o comentário de Contessa é o sintoma do pior, da quebra da moral da Brigada Militar. Temo pela brigadiana que pode ser punida pelo comentário verdadeiro por um governo autoritário cujo único objetivo é o desmonte do estado. Ela já retirou o depoimento do  seu facebook e excluiu a página. O parcelamento radical dos salários  é cruel porque priva seus servidores da dignidade. Pior é olhar a postura do governador: Sartori dança na capa de Zero Hora (31/8) como como se nada estivesse acontecendo debaixo de seu bigode. O pior é que este sentimento atravessa todos os servidores do Estado.

Esta nova massa de servidores reage e se comunica todos os dias pelas redes sociais, principalmente por Whatts App. Eles estão se transformando numa coisa nova, aquilo que Buyng Chul Han chama de “enxame digital”. A diferença do enxame digital de junho de 2013, que não tinha nenhuma alma, é que o enxame digital dos servidores públicos do estado possui um espírito. Não são seres isolados uns dos outros em lugares diversos, mas servidores pensando de forma congregadora e unificada, que combinam reunir-se na Praça da Matriz, programam uma ida a Assembléia Legislativa,etc. A ausência de projeto de movimentos de junho tornava aquele enxame digital apenas composto por indivíduos separados. O enxame digital dos servidores públicos do estado é novo, o Whatts App é seu o canal para expor de forma homogênea sua crítica à administração atual do Estado: as dificuldades do parcelamento de salários, as redes de solidariedade para auxilio mútuo, as informações sobre as posições de deputados sobre projetos do governo. Agora, somos todos homo digitalis em nossas lutas politicas. As ferramentas eletrônicas tornam  os servidores públicos sujeitos penetrantes, isto é, que exigem para si atenção. Os servidores não são um nada como pensa o governador, não são um Hikikomoris, um solitário diante do monitor. São trabalhadores e exigem respeito.

Mas este enxame digital sindical ainda tem problemas. Lhes falta a capacidade de decisão em rede. Cada gesto autoritário do governador repercute ampliado no enxame digital, mas essa fugacidade, por outro lado, lhes retira a força. Como a multidão de Hardt e Negri, os servidores do estado provam uma vez mais que são uma força produtiva real capaz de reagir ao poder na busca por um estado melhor. Por isso abandonam os celulares e ouvem atentos as manifestações de lideranças no alto dos caminhões. O conflito na Assembleia fez parte disso.

Os servidores tem razão em se revoltar. As denúncias sobre falcatruas na Assembleia Legislativa e os novos benefícios do Tribunal de Justiça fazem parte do mesmo cenário de falta de respeito do Estado por seus servidores. Respeitar significa um olhar recuado, o estabelecimento de uma distância. A distância distingue os verbos respectare e spectare. Enquando o olhar sem distâncias define a palavra espetáculo, o estabelecimento de uma distância define respeito   ”Uma sociedade sem respeito, sem pathos da distância, conduz a sociedade do escândalo”, diz o filósofo coreano Byung –Chul Han.

Respeito é peça fundamental na vida pública. Sem respeito, o espaço público diminui.  Sua defesa pressupõe afastar-se dos interesses privados, mas um mundo caracterizado pela total falta de distância, em que o interesse privado se mostra em público, não é possível nenhum decoro. Por isso a primeira coisa que veio a mente dos comentaristas sobre as novas vantagens do judiciário ou as denúncias na Assembleia é que tais ações eram pornográficas. Não eram. Eram falta de respeito mesmo.

Ao concederem-se benefícios, o Judiciário mancha o nome da instituição.  O respeito sempre vai unido a um nome, o reconhecimento sempre se produz nominalmente. Se o Tribunal de Justiça é capaz de agir em causa própria, se deputados podem roubar, então nossas instituições perdem toda a nossa confiança. A fé está no nome. A reação observada, a tormenta de indignação na internet, a shitstorm, é expressão de uma cultura de falta de respeito.

Uma instituição é respeitável quando tem capacidade de selecionar sua ação baseada em principios morais, o que a torna capaz de ser imitada como modelo. Mas como imitar um governo  quando suas ações  mostram que ele não tem nenhum respeito pelos servidores? Como reconhecer valores de justiça e moralidade no governo do estado que parcela salários e quer extinguir fundações fundamentais para o estado? O que ocorre quando a Justiça e o Parlamento se deixam afetar pela decadência geral de valores? Resposta: chegarmos ao fim do respeito recíproco, fim da base de governo de nossas instituições.

O filósofo Slavoj Zizek  formulou a hipótese de que estaríamos assistindo à consolidação de uma nova etapa na evolução do sistema capitalista caracterizado pelo rompimento dos laços entre democracia e livre mercado e sua substituição por um capitalismo de face autoritária como o chinês.

De fato, a aprovação do pacotaço do governo Sartori pela Assembléia Legislativa tem semelhança paradoxal com o que ocorreu na China. Enquanto que lá foi preciso uma Revolução Cultural para promover a conteção dos excessos do capitalismo, introduzir o comunismo para depois criar as condições para o retorno do capitalismo, aqui foi preciso que que o PMDB retornasse ao poder para retornar seu projeto de criação de condições de exploração capitalista da classe trabalhadora, no caso, seus servidores.

“Primeiro como tragédia, depois como farsa”,  a famosa frase de Marx, refere-se a ideia de que todos os fatos de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. A atual situação de precarização das relações de trabalho no Brasil está ocorrendo exatamente assim, não como tragédia, porque não se trata de tornar o trabalho precário como acham seus críticos simplesmente porque ele já é, é algo pior, pois trata-se da instalação da nova ordem que vem se alastrando para diversos países como a Rússia de Putin e a Itália de Berlusconi: a farsa é a possibilidade do Brasil superar a China como ícone para os neoliberais. Depois do “consenso de Pequim” está em gestação o “consenso de Brasilia” para aprofundar as regras do capitalismo global: o caso brasileiro quer mostrar ao mundo  que é possível fazer enriquecer os empresários sem precisar do autoritarismo, isto é, sem necessariamente pressupor o conjunto de valores culturais específicos como os da estrutura asiática. Basta cooptar a classe política. Que está fazendo Sartori ao privatizar a FEPS se não abrir caminho para a entrega de seu trabalho a iniciativa privada? Que significa a extinção da Fundação Zoobotânica se não colocar no horizonte da especulação imobiliária o Jardim Botânico?

Se for possível fazer negócios e ganhar dinheiro sem dar importância a manifestações populares, aos direitos trabalhistas ou reivindicações de servidores é porque se acredita que o modelo chinês  representativo do mundo pós-americano pode ser substituído por outro, o modelo brasileiro como representativo do mundo pós-chinês.  É com isto que sonham nossas elites locais representadas pelo PMDB. Não era este o modelo guardado em segredo desde a administração Brito e Yeda?

Passado os primeiros nove meses da assunção ao governo, a questão é saber se o campo político no Rio Grande do Sul vive um novo momento de conservadorismo. A perda de espaço de políticos progressistas, a manutenção de nomes já presentes na Assembleia Legislativa, tudo enfim parece apontar que os gaúchos votaram com a crença desesperada de que o regresso ao status quo anterior era a salvação para quem via a desordem no governo Tarso Genro. Quer dizer, entre o pensamento revolucionário e o pensamento antirevolucionário, os gaúchos fizeram uma opção por Sartori,  pelo segundo.

O que isso queria dizer? Primeiro, que os gaúchos preferem um “espírito moderado” a uma suposta “reação intolerante”. Arrisco a afirmar que talvez esta seja uma consequência não prevista e indesejada dos movimentos de junho, a de acirrarem na sociedade a visão de que as inovações da esquerda são destrutivas e a opção por aqueles que defendem a “moderação”, uma alternativa. Nada mais equivocado.  Mas o governo Sartori revelou-se ser algo pior porque ao invés de um espirito de governo moderado, tivemos uma reação intolerante às avessas, agora contra a sociedade e contra o servidor. Não é o que o pacotaço representa? Não foi por isso que antípodas como sindicalistas e empresários se uniram? O pior é que esse modo de fazer politica irá até o final do governo. Quer dizer, entre os defensores de que o estado de perfeição encontra-se no passado e aqueles que acham que ele se encontra no futuro, venceu o pensamento que condena toda e qualquer utopia revolucionaria e aposta fragrantemente na opoção neoliberal. Isso é um problema. Mas é verdade também que não se trata de um governo que tenha na assembleia um bloco ideológico uniforme e muitas cadeiras ainda são ocupadas por integrantes de centro que tem dificuldades de legitimar todas as medidas.

Em política, devemos olhar para o passado? É claro que sim, mas abrir mão de uma proposta de futuro só constitui o conservadorismo como ideologia reativa.Por isso os gaúchos estão arrependidos em quem votaram.  A vida, como tudo, também precisa de utopia. Na eleição de Sartori, a direita conquistou mais poder, mas a grande questão ainda continua sendo a formulada por Oakeshott “mas porque motivo devemos ser governados por eles?”

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