A greve já foi considerada questão de polícia. Nasceu à margem do Estado, contra a sua forma de promover a assimilação da exploração do capital pelo trabalho. Começou na fábrica, no campo, na senzala e foi desde sempre luta, embate, resistência. Muitas pessoas morreram porque ousaram desafiar o capital, foram espancadas e presas, perderam seus empregos. A adequação da greve à ordem jurídica não se deu, portanto, por criação espontânea ou benesse estatal. Impôs-se como uma exigência social: era preciso assimilar, reconhecer e, é claro, impor limites à força organizada da classe trabalhadora. Ao longo dos anos de desenvolvimento de um capitalismo pretensamente inclusivo, a greve não apenas deixou de ser questão de polícia, mas assumiu a condição de direito fundamental. É assim em nossa Constituição de 1988. A greve é direito fundamental do trabalhador. A assimilação jurídica do fenômeno social tem razão de ser: o reconhecimento do direito fundamental de greve é o que permite aos trabalhadores a garantia de que poderão exercer pressão organizada sobre o capital, sem prejuízo de sua incolumidade física, de seu salário e de seu emprego. Mesmo assim, nos últimos anos, especialmente nesta segunda década do século XXI, a luta dos trabalhadores tem novamente sido tratada como algo negativo. Mal as categorias se organizam para lutar por melhores condições de trabalho e eis que o empregador já tem em mãos uma liminar, diligentemente concedida pelo Poder Judiciário Trabalhista, determinando a manutenção do trabalho nos horários de pico, impondo limitações que por vezes tornam completamente inócua a paralisação. Enquanto isso, a grande mídia utiliza todo o espaço de que dispõe para exaltar o sagrado direito de ir e vir, para alardear os efeitos nocivos da greve sobre a vida dos cidadãos, que só querem seguir sua rotina. E novamente vemos a greve ser tratada como caso de polícia. Alguns exemplos recentes dão a medida do problema. A manifestação dos professores em Curitiba transformou-se num verdadeiro massacre. Os garis também foram agredidos no Rio de Janeiro, vários grevistas foram despedidos por justa causa. É sintomático que um país que se autoproclama democrático atue com tamanha força repressora contra os movimentos paredistas. Evidencia a falácia de uma democracia que existe para poucos. Greve é o movimento de resistência organizada dos trabalhadores contra uma realidade que se tornou insuportável, tal como a realidade dos professores, mal remunerados e sem as mínimas condições de trabalho, ou dos garis, cujo salário é inferior a mil reais por mês. Enfim, tal como a realidade da grande maioria dos trabalhadores brasileiros, sujeitos a empregos precários, sem qualquer garantia contra a despedida e vendo, a cada dia, mais direitos serem suprimidos ou flexibilizados. Historicamente, apenas através desses movimentos organizados o trabalho pode impor alguns limites ao capital. Greve é grito de gente desesperada por justiça, é tumulto, é paralisação integral do trabalho. Greve atrapalha, nos retira da zona de conforto, nos convoca a pensar na sociedade que temos e naquela em que realmente queremos viver. A conquista de direitos trabalhistas dificilmente beneficia apenas a categoria que luta, pois toda a sociedade avança, quando os trabalhadores melhoram sua condição social. O que está acontecendo no Brasil de 2015 é a negação absurda desse direito fundamental, na contramão de toda a evolução civilizatória, em grande medida determinada pela luta dos trabalhadores que nos antecederam. A agressão e a perseguição promovida pelos empregadores e pelo Estado, contra os grevistas, constituem elementos da negação sistemática desse direito. Está passando da hora, então, de debater o tema da greve com o tanto de honestidade que a tarefa impõe: se o direito de greve é fundamental, é preciso respeitá-lo, permitindo que seja efetivamente exercido.
Valdete Souto Severo – Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. Especialista em Processo Civil pela UNISINOS, Especialista em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela UNISC, Master em Direito do Trabalho, Direito Sindical e Previdência Social, pela Universidade Europeia de Roma – UER (Itália), Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade da República do Uruguai (UDELAR), Mestre em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS. Doutoranda em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS