Reempoderar o servidor público

Coluna Democracia e Política

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O desempoderamento do servidor público 

Em “O que é empoderamento”(editora Letramento, 2018), Joice Berth trata do tema a partir das vivências de mulheres, mas sua narrativa se presta a caracterização dos processos de conquista de poder dos mais diversos grupos sociais. Aqui é disto que se trata: das políticas neoliberais como sistemas discriminatórios também dos agentes de estado, dos servidores públicos. Nunca na história desse pais os servidores públicos perderam tanto poder, falta de qualquer apreço pelo governo para os trabalhadores do estado: os servidores públicos foram transformados em párias da sociedade  isto só ocorre porque neste sistema, é preciso excluir o servidor público de sua função.

Exclui-se o servidor público porque ele é ético: ele combate a corrupção. Exclui-se o servidor público porque quer-se ocupar seu lugar sem a mediação do concurso. Exclui-se o servidor público porque ele tem poder, o poder que o cargo público lhe confere. Assim, os processos em que todos os níveis de governo corroem os servidores públicos, que reduzem seu valor, que os fazem perder todos os direitos, são processos de desempoderamento: urge agir no sentido contrário, no reempoderamento do servidor público.

Foto: Tomaz Silva/ Agência Brasil

Foto: Tomaz Silva/ Agência Brasil

Porque reempoderar o servidor? Porque a perda de seu poder, oriundo da dignidade de sua função e da responsabilidade de seu cargo, é um fator perpetuador das desigualdades sociais. Servidores desempoderados fracassam na missão de colaborar na implementação de políticas públicas.  No sistema neoliberal, o estado mínimo também é aquele no qual os servidores ocupam a função mínima, isto é, são desresponsabilizados de sua função social. Isto significa ao desempoderar o servidor público, se  reduz as políticas públicas, reduz-se o amparo do estado à sociedade, reduz-se a função social do estado.  Para os objetivos do mercado de redução do tamanho do estado, que é, em análise, um processo de desresponsabilização do estado de sua obrigação com o comum, é preciso desempoderar seus servidores, os verdadeiros guardiões da função pública.  Afinal, são os servidores públicos, pelo efetivo exercício de sua função, que fazem com que a atuação do estado seja plena no que se refere as políticas públicas e sociais.

O servidor público como protagonista

Ora, os servidores públicos são, nesse sentido, protagonistas sociais. Dito de outro modo: é preciso discutir o protagonismo social do servidor público para lhe voltar a lhe dar poder, para reempoderá-lo. Os servidores, como faz Berth em sua obra com as mulheres, também devem entender o empoderamento a partir de suas experiências, de suas vivências. Qual é a identidade cultivada pelos servidores públicos municipais que as políticas de Nelson Marchezan atacam? Quais são as características dos servidores públicos estaduais que são corroídas pelas políticas de José Ivo Sartori? Como as ações do governo Michel Temer colaboram para exterminar a identidade de servidores públicos, especialmente aqueles ligados a universidade pública? É preciso perceber a unidade de políticas que nada mais são que ações diretas sobre o poder do servidor.

Foto: EBC

Foto: EBC

Ora a discussão sobre reempoderamento do servidor público só pode existir porque este corresponde a um coletivo que tem conscientização de seu papel e cuja união transforma a comunidade em que suas instituições atuam. Como os negros e as mulheres, agora os servidores públicos são a bola da vez, vivem sua história de opressão, silenciamento e marginalização e urge buscar caminhos para sua superação.

Por isso, na última quarta-feira, quando os servidores municipais foram ao Plenário da Câmara Municipal de Porto Alegre, estavam em uma ação de reempoderamento. Por isso quando os servidores da FEE fazem atos em defesa da instituição e criticam a contratação de uma empresa privada para produzir estatisticas, estão em uma ação de empoderamento. Por isso quando os caminhoneiros param o país nesta quinta-feira, estão reempoderando aquela parcela social prejudicada pelas ações de Michel Temer. Todo empoderamento passa por uma ação concreta, todo reempoderamento passa pela consciência da perda de um poder.

Reempoderar é empoderar novamente, isto é, dar poder a alguém que já teve poder. Os servidores públicos vivenciam no século XXI um período de exploração, alienação e aliciamento, típicos de um projeto de governo que visa a opressão e a dominação das demais classes sociais e que vê que somente pode efetiva-lo através das estruturas de Estado. Em seu estudo Sobre a Violência, Hannah Arendt diz: “O poder corresponde a habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em conjunto”.

Disciplinar/dominar o servidor

Berth lembra que também o filósofo Michel Foucault teceu considerações sobre o conceito de poder, de como corpos podem ser controlados por uma imposição normalizadora “a disciplina fabrica os indivíduos, é uma técnica especifica de poder”, diz Foucault. Ora, já demonstramos que é neste ponto em que se situam as políticas educacionais do governo Nelson Marchezan Jr, com a imposição do ponto e toda a reestruturação do uso do tempo que equivale a forma disciplinar encontrada pelo Prefeito para submeter seus professores e que desorganiza a rotina das escolas.

Quando falamos que foi retirado poder dos servidores públicos, estamos falando de que diversos grupos e indivíduos de instituições diferentes da administração passaram por processos de diminuição e desvalorização de suas condições humanas, de desvalorização de suas habilidades e competências. Nesse sentido, para qualquer nível de governo que se olhe, as ações contra servidores públicos são estratégias de governo que visam enfraquecer grupos de trabalhadores em diversos estágios de sua história pela retirada de seu poder.

Ora, nenhum agrupamento social sobrevive sem o reconhecimento de seu líder. Nenhum agrupamento social sobrevive sem exercício de poder. Quando as autoridades estimulam vários níveis de estados psicológicos que contribuem para a negação do reconhecimento do valor do servidor público, quando atuam na quebra da coluna de sustentação da função pública, a identidade do servidor, eles estão desempoderando o servidor.  Não é exatamente isso que acontece quando o Prefeito acusa o custo dos servidores como fonte da tragédia das finanças públicas?Não é isso que acontece quando o Governador parcela os salários dos servidores, retirando a dignidade de seus trabalhadores?

Empoderar o servidor público significa oferecer um instrumento de emancipação política e social. O servidor público, enfrentando as inúmeras medidas de seus governantes que visam diminui-lo, retirar sua dignidade e seu valor, não consegue se dar conta da realidade opressiva que visa incapacitá-lo a exercer suas funções. A principal delas: ser o garantidor de um estado social. O servidor público é o novo oprimido do sistema capitalista, e empoderar o servidor significa aqui “uma postura de enfrentamento da opressão para eliminação da situação injusta e equalização de existências em sociedade”, diz Berth.

Reconstrução dos poderes dos servidores

Como os servidores irão pensar caminhos para reconstrução de suas bases sócio-políticas? Primeiro, precisam compreender que é “preciso questionar as bases das relações de poder “, o que significa, questionar no âmbito do município, as razões pelas quais práticas de governo autoritária se exercem; no estado, questionar a estratégia que penaliza servidores a partir de sua retribuição salarial e na união, que faz com que politicas consagradas ao povo sejam retiradas indiscriminadamente.  Que os servidores já reconheçam as forças que os oprimem, estamos de acordo. Mas é preciso mais, é preciso transformar a natureza desta consciência na direção de ações concretas dos trabalhadores públicos contra as forças dos sistemas que os marginalizam.

Berth cita uma “Teoria do Empoderamento” como fonte da ideia de que este é mais um movimento de resposta interna a um estimulo externo do que o contrário. “Empoderar dentro das premissas sugeridas é, antes de mais nada, pensar em caminhos de reconstrução das bases sociopolíticas, rompendo concomitantemente com o que está posto entendendo ser esta a formação de todas as vertentes opressoras que temos visto ao longo da história”, finaliza. Ora, os caminhos de reempoderamento do servidor público passam pela reconstrução da identidade do servidor público, pelo enfrentamento do lugar dedicado pelas diferentes administrações ao servidor. É uma atitude de recusa de uma imagem depreciativa que envolve criação de inúmeras atividades de resistência, protesto, mobilização coletiva que questionem a ações dos govenantes, que questione sua autoridade em dizer quem é o servidor.

Os recursos de poder dos servidores públicos

Os servidores públicos, por sua natureza, têm acesso a recursos de poder. Os servidores organizam-se em classes e o empoderamento começa quando reconhecem a opressão ao seu redor, mas também como podem agir para transformar a natureza do lugar ao qual estão sendo destinados, o lugar de submissão. Por isso é preciso que o servidor público dê importância a sua auto definição, a sua auto avaliação, não permitindo que as autoridades de plantão os definam e os avaliem. “A auto definição envolve desafiar o processo de validação do conhecimento político que resultou em imagens estereotipadas externamente(…) Em contrapartida, a auto avaliação enfatiza o conteúdo especifico das definições” diz Berth.

Aqui, auto avaliação ou auto definição indicam que ações internas, de classe, de empoderamentos internos em primeiro lugar. Servidores públicos recebem apoios dos mais diferentes atores sociais mas é a tomada interna de consciência da opressão ou o despertar de sua potencialidade de resistência que “definirão estratégias de enfrentamento das práticas do sistema de dominação”, diz Berth.

A conclusão é clara: empoderar o servidor público significa contestar a autoridade, ocorre no âmbito individual do servidor, mas deve ser trabalhado coletivamente. “Quando falamos em empoderamento, estamos falando de um trabalho essencialmente político, ainda que perpasse todas as áreas da formação de um indivíduo e todas as nuances que envolvem a coletividade, diz Barth”.

O empoderamento é revolucionário porque questiona o poder: não é possível empoderar um indivíduo, mas uma classe de indivíduos ”Empoderamos a nós mesmos e amparamos outros indivíduos em seus processos”, diz Barth. Que o poder use de estratégias econômicas para enfraquecer os servidores, parcelando seus salários, não realizando a reposição salarial, colocando o servidor público em lugares de vergonha, é apenas mais uma prova das formas insidiosas de nossos governantes de desmontarem o estado social por meio dele, do seu interior.

Por isso para reempoderar o servidor público é também ressignificar a função pública: é preciso um significado ampliado de servidor, de servidor reempoderado, capaz de reconhecer seu potencial transformador e criador de redes de empoderamento com outros setores do funcionalismo público.

 

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Jorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.
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