Racismo, racismos – em tempos de multiculturalismo e Estado democrático de direito

Coluna Poiesis – Encontros da Literatura e do Direito

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(…) agora nos damos realmente conta, perante o trabalho – isto é, dessa dura atividade da manhã à noite – que essa é a melhor polícia, pois ela mantém cada um com rédeas curtas e de emprenha vigorosamente a evitar o desenvolvimento da razão dos desejos, do gosto da independência.  De fato, o trabalho usa a força nervosa em proporções extraordinárias e a subtrai à reflexão, à meditação, aos sonhos, aos desejos, ao amor e ao ódio, (…) assegura satisfações fáceis e regulares (…) é a segurança que hoje se adora como divindade suprema[1].

As mulheres sejam elas brancas, indígenas ou negras sempre foram discriminadas e excluídas de todos os aspectos da vida social, com exceção da dona de casa, mãe e do lar, em especial também da Academia, o que verifica-se com o número extremamente baixo de mulheres que são estudadas nas mais diversas áreas do saber, e neste sentido, gostaríamos de começar o presente artigo, portanto, com o pensamento de duas grandes filósofas Hannah Arendt e Simone de Beauvoir.

Foto: Agência Brasil

Foto: Agência Brasil

Hannah Arendt afirma em seu artigo “Sobre a emancipação das mulheres” [2] que a emancipação das mulheres se tornou um fato, pois estariam abertas todas as profissões às mulheres, gozando estas dos mesmos direitos do homem, social e politicamente, contudo, afirma que tal emancipação seria apenas formal, havendo uma “espécie de escravização em seu próprio lar ou a dissolução de sua família”, relacionadas a liberdade de trabalhar fora, isto sem mencionar a existência ainda de diferenças salariais, e a execução de tarefas de bases biológicas e sociais incompatíveis com sua nova posição; refere-se a filósofa a ainda permanente divisão sexual do trabalho, impondo uma dupla jornada à mulher, já que na sua grande maioria são estas que ainda cuidam do trabalho do lar e da criação dos filhos, dificultando a igualdade no plano profissional, já que dispõem de menos tempo e menos energia para se dedicarem a este se comparado com os homens.

Simone de Beauvoir, por sua vez, na obra “O Segundo Sexo” entendeu o feminino como um homólogo da alma negra, ambos representando o desejo por parte dos dominadores de manter “seu lugar”, qual seja, da inferioridade.

A pretensa igualdade formal, ou seja, igualdade de todos perante a lei, não considera tratar, os desiguais desigualmente na medida de sua desigualdade; na verdade o sistema capitalista neoliberal tem por característica desconsiderar as desigualdades, para promover a homogeneização de todos o mais amplamente possível, o que corresponde a maior violência que existe, nos dizeres de Claude Lévi-Strauss.

Um estado democrático de direito, portanto, deverá estar comprometido com o respeito aos direitos fundamentais de todas as parcelas da população, e não fomentar ainda mais a discriminação por meio de políticas públicas na maioria das vezes voltada a setores abastados da população. A falta de representatividade política das parcelas da população vulneráveis como as mulheres, os indígenas e os negros é patente, já que são poucos ou raros os parlamentares representantes dos mesmos a lutar, especificamente por seus direitos, ao contrário das sempre crescentes bancadas ruralistas, evangélicas e as ligadas aos interesses de Instituições Financeiras no Congresso Nacional.  Somente desta forma o estado de direito será de fato um estado de direito e não um estado de exceção, onde grande parcela da população se vê em uma situação de exclusão-inclusiva, ou de suspensão, como no caso apontado por Hannah Arendt ao tratar dos apátridas, denominados por esta de “displaced persons”, quando somente seriam reconhecidos como sujeitos de direitos ao cometerem algum crime, contestando a lógica autoritária e discriminatória das Declarações de Direitos Humanos, vinculada ao conceito de cidadania, ao invés de se vincular ao conceito de humanidade.

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Somente será possível combater a desigualdade racial, em nossa sociedade com características racista, machista e patriarcal, sistemas de dominação e de exploração, por meio de políticas públicas, que enfatizem a necessidade de se priorizar tais segmentos da sociedade, e para tanto se faz fundamental a transparência, em especial, nos gastos públicos, para que a população e órgãos da sociedade possam controlar e cobrar investimentos em áreas específicas.

A transparência é um dos postulados básicos do Estado democrático de direito, já que se relaciona com um dos princípios básicos da Administração pública, ex vi do artigo 37 da CF, qual seja, o princípio da publicidade; contudo, ao se observar diversos orçamentos públicos se verifica que a transparência e publicidade não são observados de forma devida, mas de forma limitada, dificultando o acesso aos dados pela população em geral, em alguns casos, como por ex. o orçamento público da União, somente tendo acesso os membros das casas legislativas, ou então, quando o acesso é permitido, os dados vem sendo divulgados de forma limitada, impossibilitando, pois o controle dos gastos sociais. Ou seja, há sonegação de dados.

Neste sentido, em nada adiantará a maior conscientização e movimentos populares de setores específicos da sociedade, para exigirem a aplicação de políticas públicas adequadas, para fazer valer seus direitos fundamentais, sem a transparência necessária, para se verificar o que na prática o poder público tem realizado em nome de tais direitos. Os diversos orçamentos públicos não distinguem quanto as receitas públicas, a arrecadação prevista para tributos, os relatórios nem sempre discriminam, as receitas por espécie tributária, dificultando a aplicação de controles. Quanto as despesas públicas diversos orçamentos se limitam a apontar uma verba geral, trazendo uma listagem genérica de temas, e os relatórios de execução são pouco informativos, e sem acesso a informação, não se poderá efetuar um controle jurídico acerca das escolhas do Estado em políticas públicas.

A consciência política refere-se à politização do indivíduo, e é formada pelos aspectos de identidade social e pela cultura, sendo considerada a questão de ter um sefl completo como base para se obter uma consciência política completa. A participação política por sua vez, medeia a construção do sujeito político e do sujeito coletivo.

Enquanto alguns entendem que o corpo do negro é um corpo mais liberto, mais solto, que não sofre a repressão típica do catolicismo cristão, não havendo separação entre o corpo e a alma do negro, outros como Jurandir Freire Costa (“Violência e psicanálise”) ao estudar as vicissitudes do negro brasileiro em ascensão social, refletindo sobre a violência, afirma haver uma dupla injunção, de encarnar o corpo e os ideais do Ego do branco e de recusar, negar, anular o corpo negro, criando um desejo de embranquecer, que corresponderia a deixar de existir, a sua própria extinção, senão vejamos. Dispõe, outrossim, que há uma relação persecutória entre o negro e seu corpo, afetando a identidade como sujeito já que esta depende em grande parte da relação que se cria com o corpo, torando-se um corpo perseguidor, odiado. Ou seja, tal fato relaciona-se à questão do self completo necessário para se obter uma consciência política.

Segundo alguns o racismo sempre é negativo, mas aqui questionamos, se também o racismo intrínseco, ao contrário do extrínseco, racismo defensivo, racismo antirracista, seria também negativo, sendo considerado como o “racismo que os grupos dominados se vêm forçados a desenvolver para enfrentar a discriminação a que estão submetidos[3]”.

Na verdade, entendemos que poderia haveria uma relação de amor e ódio quanto ao corpo pelos negros, já que o double bind teorizado por Gregory Bateson é um vínculo que permeia todas as relações sociais, e um vínculo de amor e ódio, em especial com o diferente. O que você odeia, é o que você ama? Neste ponto caberia uma relação com a análise de que o branco detestaria o negro sendo então este dominado por um sentimento de impotência, sendo um olhar de inveja.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

O racismo, contudo, apesar de se manifestar em todas as classes sociais, e de diversas formas, ainda é um tabu no Brasil, camuflado pelo mito da democracia racial, pelo mito da miscigenação, como criando um “verdadeiro produto nacional” exportável inclusive, qual seja o da mulata brasileira, e existência de paz social entre tais raças, sendo que muitos negam sua existência, em parte devido a este tipo de racismo ser mais escondido, hipócrita, aliás, tal tipo de racismo, ao contrário do que ocorre nos EUA, que esteve presente na forma de segregação, bem como havendo maior coesão grupal e consciência de grupo, no Brasil o racismo é típico da característica dos seres humanos, típica do capitalismo recente, não tardio, um racismo mascarado, relacionado, pois ao cinismo, a ironia, a hipocrisia; o capitalismo atual, flexível, cria um novo tipo de homem, o homem irônico, tal como afirma e constata, no final do primeiro capítulo do livro “A corrosão do caráter. Consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo” Richard Sennett, em suas palavras: “talvez a corrosão do caráter seja uma consequência inevitável”[4]. Tal capitalismo dos tempos modernos onde somos escravos não apenas da classe dominadora, mas do próprio tempo, vivendo  em um eterno presente, é ainda responsável pela corrosão do caráter, já que o modo de produção atual, concentrado em redes amorfas, frouxas, em trabalhos de equipes, bem como as empresas estabelecendo-se em redes, não há mais um sentido de pertencimento, uma narrativa de vida, uma possibilidade de uma carreira a longo prazo, corroendo a confiança e o compromisso mútuo, e enfraquecendo os laços sociais e familiares, enaltecedor da beleza, fugacidade, velocidade, e juventude. O fracasso atinge a todos, não mais apenas os pobres, mas grande parte da classe média também.

Uma vez que a CF se avalia por sua adequação às realidades socioculturais, vemos que há muito a se fazer na prática para que os diretos consagrados em nível constitucional como direitos humanos ou internacionalmente como direitos humanos não fiquem apenas no plano teórico e retórico e a CF assim fique a ser relegada ao papel de mera folha de papel. Uma das questões que contribuem para a falta de compromissos e responsabilidade dos políticos no Brasil é o sistema presidencialista, ao contrário do parlamentarista, já que o descumprimento ou a omissão ou o não cumprimento adequado de um plano de governo não traz qualquer consequência jurídica. No parlamentarismo, ao contrário, a Câmara assume responsabilidade de governo, aprovando o plano de governo e se emprenhando politicamente perante o povo. No caso de descumprimento do plano apresentado em campanha poderá haver voto de censura ou moção de desconfiança, e convocação de novas eleições extraordinárias para formação de outro parlamento. Da mesma forma, apesar da CF prever prioridades no tocante a políticas públicas a falta de informação e de publicidade adequada dos dados impede o controle social acerca das prioridades e gastos efetuados pelo Poder Público, comprometendo-se a democracia e a cidadania.

A CF na verdade vincula as escolhas em matéria de políticas públicas e dispêndio de recursos públicos, sendo que ainda quanto alguns setores específicos como saúde, educação traz em seu texto os valores exatos que deverão ser gastos pelo Poder público para atingir tais finalidades, contudo, na prática, continua a serem desrespeitados tais percentuais (artigo 212 da CF, artigo 198, p. 2º., artigo 195).

Outro ponto fundamental para a aplicação de políticas públicas dos setores da população marginalizados, vulneráveis ou fragilizados, é a militância política, e, pois, a consciência, constituintes do processo de construção subjetiva da condição de sujeitos políticos.

Outra militante e filósofa que merece ser mencionada, especialmente por ser duplamente inferiorizada em sua condição de mulher e de negra é Ângela Davis[5], sendo um expoente da luta contra as desigualdades, exclusões, opressões e racismo, afirmando que tais lutas devem ser conjuntas, sem hierarquização de uma forma de opressão sobre outra, mas atentas ao conceito de interseccionalidade, ou seja, as lutas devem ser entrelaçadas, havendo intersecções entre raça, classe e gênero, já que são mútuas e cruzadas.  Portanto, no seu entender, classe informa raça, e raça informa classe, e gênero informa classe.

Foto: Wikimedia Commons

Foto: Wikimedia Commons

A questão a ser pensada é como mudar séculos de políticas públicas direcionadas no Brasil para a extinção da população nativa, dos índios e da população negra, voltada ao chamado embranquecimento, desde o Império e a proclamação da República. Dos 5 milhões de índios restaram pouco mais de 200 mil atualmente, sendo dizimados especialmente a partir do século XVII; segundo dados do IBGE em 1800 o percentual de negros no Brasil era de 47%, e em 1980 de 5,87%[6]. A população negra possui os maiores índices de mortalidade, morbidade, analfabetismo, evasão escolar, desemprego e condenações penais, correspondendo ao dito popular, comprovatório da grande parcela da discriminação de nossa sociedade, de que a prisão é para os três “pês”, “pretos, pobres e prostitutas”, e de que nossa Justiça é eminentemente elitista, ficando de fora desta a maior parte da população pobre que não tem acesso à mesma. A cada 23 minutos morre um negro no Brasil, a maior parte da população encarcerada é negra, sendo que a maior parte da população presa não possui condenação com trânsito em julgado. A população prisional do Brasil é uma das maiores do mundo, senão a maior.

Como a função da universidade e das escolas é fundamental para a formação crítica e consciente da população, tendo um papel de relevo de função social e política, um ponto de avanço é a lei de quotas raciais, permitindo o maior acesso da população negra ao ensino superior, sendo que comparando os dados de 1980 a 2002, já se verifica um aumento importante  neste setor, que poderá estar relacionado a um fortalecimento das lutas e reinvindicações de militantes e ativistas negros, na exigência de políticas púbicas adequadas e prioritárias a tal parcela da população. Outro fator de destaque é a lei 10.639/2003 exigindo a introdução das disciplinas de história e cultura africana e afro-brasileira no ensino fundamental e médio, contudo, nem sempre tem sido tal determinação cumprida na prática, já que o discurso de muitas escolas tem sido de que tal questão não seria importante, ou então, informando que cumprem tal determinação, mas em pesquisas de campo se verifica que muitas apenas se limitam à teoria e retórica.

Não basta, portanto, constar do preâmbulo da CF o pluralismo, ser o Brasil uma sociedade fraterna, pluralista, devendo ser ampliado na prática o conceito de multiculturalismo – convivência em um pais, região e local de diversas culturas e tradições, com respeito mútuo, respeito pelo olhar do outro e permitindo todas as vozes possíveis de se manifestarem.

Boaventura de Souza Santos no livro “Reconhecer Para Libertar – Os Caminhos Do Cosmopolitismo Multicultural”[7], afirma a necessidade de se reinventar a emancipação social, para novos manifestos, questionando os ideais modernos de emancipação social lançados pela globalização – neoliberal. Ante ao aumento exponencial das desigualdades sociais entre países ricos e pobres e entre ricos e pobres no interior do mesmo país, se faz imprescindível novas formas de globalização contra hegemônicas, alternativas, contrárias à globalização neoliberal; trata-se de iniciativas, movimentos e organizações que lutam por uma sociedade mais justa e pacífica e caminhos para emancipação social.

Uma das propostas importantes para o reconhecimento das diferenças e das multiplicidades culturais é o multiculturalismo, pautando-se no reconhecimento da diferença, que tem confrontado os falsos universalismos e a colonialidade do poder, os quais são intrínsecos ao capitalismo histórico e a exploração do trabalho assalariado. Um dos exemplos de multiculturalismo emancipatório seria a prática da autodemarcação de terras indígenas, de cunho emancipatório, ao contrário da tradicionalmente praticada segundo a lógica do Estado.

Tal A. postula ainda por uma nova concepção dos direitos humanos que reconheça e integre a diversidade cultural de modo a permitir a reinvenção dos direitos humanos como uma linguagem de emancipação, propondo o que denomina de hermenêutica diatópica, um meio para realizar o diálogo entre essas diferentes concepções, um diálogo intercultural entre as diversas concepções da dignidade humana que reconheça a incompletude de todas as culturas.

Por fim, é essencial uma nova proposta de democracia, partindo da insuficiência do modelo hegemônico de democracia liberal representativo, que não passa de uma democracia de baixa intensidade, com a distância crescente entre representantes e representados, já que estamos em vivendo em verdadeira crise de legitimidade, e uma inclusão política abstrata feita de exclusão social; torna-se vital portanto, reinventar a emancipação social conjugada com a invenção de novas cidadanias baseados no recurso a uma sociologia das ausências, identificando-se silêncios, e permitindo o aumento dos espaços públicos pelas populações marginalizadas, e que a voz de todos sejam ouvidas.

As versões emancipatórias do multiculturalismo baseiam-se no reconhecimento da diferença e do direito a diferença e da coexistência-construção de uma vida comum além de diferenças. Proposta de redefinição da política como política cultural. Os excluídos, os marginalizados devem ser o ponto de partida de um conhecimento reflexivo que não seja cúmplice do capitalismo global.

Haveria dois tipos de estratégias baseadas no duplo pilar de uma sociologia das ausências e de uma teoria da tradição de acordo com Boaventura de Sousa Santos:

  1. Mobilização de forma transgressiva ou subversiva de conceitos que originariamente foram elaborados em um contexto eurocêntrico; propõem conceitos alternativos baseados em estratégias como a hermenêutica diatópica.
  2. Multiculturalismo policêntrico, com base na relativização mútua e recíproca – processo de hibridização e mestiçagem que, a partir de recursos de origem diversa, local, translocal, criam formas autóctones ou nativas de representação, teorização de experiências, horizontes e práticas emancipatórias, como por exemplo a antropofagia de Oswald de Andrade. Contudo, cumpre lembrar que entre os estudiosos do racismo, a mestiçagem não é sempre vista de forma positiva e romantizada como por Boaventura, sendo retratada como Abdias Nascimento no livro “O genocídio do negro brasileiro, processo de um racismo mascarado”, vendo o branqueamento da raça como uma estratégia de genocídio – em suas palavras: “(…)e estabeleceu o tipo mulato como o primeiro degrau na escada da branquificação sistemática do povo brasileiro, ele é o marco que assinala o início da liquidação da raça negra no Brasil”; “(…)o processo de miscigenação fundamentado na exploração sexual da mulher negra, foi erguido como um fenômeno de puro e simples genocídio”[8]. Portanto, deve-se ter cuidado para não se criar mais um outro mito, como o da democracia racial no Brasil, acreditando que a política do embranquecimento institucionalizada no Brasil por muito tempo, como por ex. fazendo parte da política imigratória, teria o efeito contrário, de criar um povo autóctone).

Os direitos dos povos indígenas e de outras minorias sociais não podem ser concebidos segundo a matriz individualista do direito e das teorias constitucionais liberais – condição de um efetivo reconhecimento da diversidade cultural e do caráter pluriétnico das sociedades nacionais da América Latina. A territorialidade é uma dimensão fundamental da afirmação desses direitos coletivos que se choca com as concepções liberais de propriedade

Neste sentido sobre o processo de embranquecimento da população negra no Brasil como uma tentativa de fazer com que tal raça desaparecesse daqui são reveladores os documentos da lavra do próprio Estado, como um decreto de 28 de junho de 1890 que dispunha: “´é inteiramente livre a entrada nos portos da república, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho (…) excetuados os indígenas da Ásia ou da África, que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos[9]. Da mesma forma merece atenção o Decreto-lei 7967 de 18 setembro de 1945 – regulando a entrada de imigrantes de acordo com a necessidade de preservar e desenvolver na composição étnica da população as características mais convenientes da sua ascendência europeia.

Já está mais do que na hora de levarmos os direitos fundamentais e humanos a sério, de deixar de nos fundamentar em retóricas de fachada, em discursos que sob uma camada superficial do politicamente corretos esconde tentativas de homogeneização e genocídio cultural, e aliarmos a teoria à prática, ampliando nosso olhar para o outro, e assim olharmos para nós mesmos, com vistas a uma humanização do homem e a sua possível não apenas sobrevivência na Terra, em um convívio harmônico e não de guerra, mas buscando-se um viver bem, mesmo que cientes de que:

(…) its a long way, como diz a música de Caetano Veloso.

Notas:

[1] Nietzsche, “Autora”, São Paulo: Editora Cia das letras, 2004, p. 173.

[2] “Compreender. Formação, exílio e totalitarismo”. Ensaios, São Paulo: Editora Cia das letras, 1994, p. 93 e ss.

[3]  Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, “Racismo e antirracismo no Brasil”, São Paulo: Editora 34, 1999, p. 32.

[4] Richard Sennett, “A corrosão do caráter”, São Paulo/Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p.33.

[5] Ângela Davis,“Mulheres, raças e classe”, São Paulo: Editora Boitempo editorial, 2016.

[6] Dagoberto José Fonseca, “Políticas públicas e ações afirmativas”, São Paulo: Editora Selo Negro edições, 2009, p. 79 e ss.

[7] Boaventura de Souza Santos no livro “Reconhecer Para Libertar – Os Caminhos Do Cosmopolitismo Multicultural”, Rio de janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003, p. 55 e ss.

[8]  Abdias Nascimento, “O genocídio do negro brasileiro, processo de um racismo mascarado”, São Paulo: Editora Paz e Terra, 1978, p. 83-84, e ss.

[9]  Ibidem, p. 86  e ss.

 

*Paola Cantarini é advogada, professora universitária, artista plástica e poeta. Possui pós graduação em direito empresarial, direitos humanos, direito constitucional, mestre e doutora (Filosofia do direito) pela PUC-SP com doutorado sanduíche na Uminho (Braga, Portugal), doutora pela Unisalento (Lecce, Itália). Visiting Researcher na Universidade Scuola Normale de Pisa, com tutoria do professor Roberto Esposito. Pós doutorado na Univ. De Coimbra -CES, Tutor Boaventura de Sousa Santos. Pós doutorado na Unicamp, tutor Oswaldo Giacoia. Possui diversos artigos jurídicos e filosoficos e cinco livros publicados com destaque para “Teoria Poética do Direito com coautoria de Willis S. Guerra Filho e Teoria Erótica do direito.

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