Um sistema injusto
Dizem por aí que na sociedade capitalista tudo tem um preço. Um velho barbudo já nos alertava que no sistema capitalista a forma mercadoria abarcaria praticamente a totalidade da vida social.
O poder judiciário, fruto desse tipo de sociedade, não está isento a essa lógica. Pelo contrário, serviu e infelizmente ainda serve para preservar os interesses, os negócios e, sobretudo, a propriedade privada de uma determinada classe social. Seja através do sistema penal, exercendo explicitamente o controle social das classes subalternas, assim como através de mecanismos mais sutis de outros ramos do sistema jurídico que servem aos interesses dessa classe dominante.
Pois bem, mesmo tendo consciência do papel exercido historicamente pela forma jurídica, o poder judiciário e seus “operadores”, há décadas o campo da advocacia popular presta assessoria jurídica aos movimentos sociais, coletivos e organizações populares do nosso país, no escopo de “reduzir danos” e garantir o acesso dessas populações aos direitos fundamentais assegurados constitucionalmente.
Trata-se de inúmeras batalhas jurídicas, com pouca chance de vitória, mas que expressam os conflitos sociais mais graves da nossa sociedade, para os quais o campo jurídico poucas vezes dá atenção. Por isso, desde o positivismo de combate, o uso alternativo do direito, o direito insurgente, dentre outras vertentes da crítica jurídica, a advocacia popular promove uma série de processos em defesa das vítimas desse sistema injusto em que vivemos.
Desde essas perspectivas, num desses casos, nos fizemos a pergunta que intitula este artigo: Quanto vale a vida de um trabalhador rural sem-terra?!
Infelizmente eis o cerne da questão que nos deparamos na manhã da última sexta-feira (29/01) ao presenciar a sessão da 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Sobre Elton
Julgava-se ali, em sede de reexame necessário, as condições de validade e eficácia da sentença proferida no processo indenizatório movido pelos familiares do falecido Elton Brum da Silva, em face do Estado Gaúcho. Em razão do homicídio qualificado de autoria do Policial Militar Alexandre Curto dos Santos que lhe retirou a vida com um tiro calibre doze pelas costas. Depois de uma larga tramitação processual, decorrente de uma série de medidas protelatórias por parte do Estado-réu, a magistrada de primeiro grau deferiu em parte o pedido dos familiares.
Na sentença, reconheceu a responsabilidade civil do Estado e o dever de indenizar a família da vítima pelo crime cometido por um dos seus funcionários. Nesse sentido, os danos morais foram fixados em cem mil reais para cada um dos autores, correção monetária da data da sentença e juros moratórios a partir da data do fato danoso. Quanto aos danos materiais, o Estado-réu foi condenado a pagar pensionamento à filha da vítima na proporção de um salário mínimo regional até a idade de 24 anos.
Naquela ocasião comemoramos a vitória, já que, além de se tratar de um caso paradigmático de violação de direitos humanos, era a expressão concreta da criminalização sofrida pelo MST no Rio Grande do Sul nos últimos anos e, sobretudo, da letalidade e violência sistêmica das forças policiais contra o povo pobre, negro e sem-terra deste país.
Diante das evidências e da clara violação de Direitos Humanos por parte da Brigada Militar gaúcha (naquele episódio que marcou de sangue a comarca de São Gabriel), a Procuradoria-Geral do Estado não recorreu da sentença condenatória de primeiro grau.
Ocorre que, no Brasil, dentre as inúmeras medidas favoráveis ao Estado, por sinal um dos principais violadores de Direitos Humanos (depois das transnacionais, é claro), existe a figura jurídica do reexame necessário, que significa a obrigatoriedade de envio para o segunda grau de jurisdição de todas as condenações contra a Fazenda Pública que superem os 60 salários mínimos.
Esse era a razão pela qual estávamos sentados naquela manhã de sexta-feira assistindo a sessão da 9ª Câmara Cível do TJ/RS, nosso processo era o sexto na pauta das preferências, as quais tratavam de vários casos de responsabilidade civil provocados por erros médicos, acidentes de trânsitos, prisões ilegais, etc.
Quando chegou a nossa vez, a relatora presidenta da sessão, mencionou que iria ler apenas o dispositivo do acórdão, “a fundamentação vocês podem ver no inteiro teor do acórdão que será publicado às 00h00 (…) Entendo que a sentença deve ser reformada em parte. Trata-se de um pequena, mas necessária reforma na sentença. Quer dizer, uma alteração no valor da indenização.
Segundo a Desembargadora, no processo restou comprovada a responsabilidade objetiva do Estado, pois não havia dúvida sobre a autoria e a materialidade do ato ilícito. Os danos materiais e morais foram devidamente reconhecidos e devem ser mantidos. Contudo, entendeu a Ilma.
Desembargadora que o “Valor da indenização deve ser reduzido para a quantia de cinqüenta mil reais, para cada uma das autoras (companheira e filha do falecido), e quarenta mil reais para o pai da vítima, diante das particularidades do caso em concreto, especialmente à condição econômica das partes, a extensão do dano, a punição ao ofensor e a busca do caráter pedagógico da indenização”.
Os outros dois desembargadores apenas homologaram a decisão.
SENTENÇA REFORMADA EM PARTE, EM REEXAME NECESSÁRIO. UNÂNIME.
Um caso sobre o MST
Sem qualquer mal-estar prosseguiu-se a sessão daquela sexta-feira, afinal restavam centenas de sentenças a serem proferidas. Mas qual seria o motivo, ou melhor a fundamentação jurídica para tamanha redução?!
Naquele mesmo dia, a Natureza, uma das principais vítimas do modelo do agronegócio capitalista e seus latifúndios, expressaria a sua revolta com uma tormenta sem precedentes na capital gaúcha, ventos de mais de 120 Km/h derrubaram centenas de árvores e postes, deixando milhares de porto-alegrenses sem água e sem luz durante todo o fim de semana.
Entre os afetados estavam os sistemas de informática do Tribunal de Justiça, que naquela noite não pudera publicar acórdão tão injusto. O acórdão só seria publicado na outra semana. Logo que acessamos o inteiro teor da decisão, buscamos encontrar a fundamentação jurídica. Lemos e relemos aquelas páginas, mas nada justificava tecnicamente aquela decisão.
Ora, havíamos esquecido, tratava-se de um caso sobre o MST!
Por isso mesmo, deve-se reduzir pela metade o valor da indenização, os motivos da decisão, não era jurídicos, mas sim político-ideológicos. Nas palavras da desembargadora o “Valor da indenização deve ser reduzido (…) diante das particularidades do caso em concreto, especialmente à condição econômica das partes, a extensão do dano, a punição ao ofensor e a busca do caráter pedagógico da indenização”.
Enfim, era um, pobre, negro e sem-terra que foi morto por um “agente das forças de segurança”! A indenização não deve servir para enriquecer.
Assim, para o TJ/RS tendo em vista as circunstâncias do caso – o ofensor é o Estado e os autores são pobres para fins legais, a indenização não deve ser fixada em patamar tal que represente locupletamento. Sim, cem mil pela vida de um sem-terra, só pode ser locupletamento! Só faltava dizer que tratava-se de enriquecimento ilícito, mas não chegamos a tanto.
Ah, falando nisso, que curiosidade. Quanto é o salário de um desembargador? Graças a Lei de acesso à informação (frontalmente atacada pelas entidades corporativas dos magistrados) fomos verificar a soldo-mensal da 9ª Câmara.
Nada mais, nada menos do que uma média de cerca de 50 mil reais mensais nos últimos três meses de 2015. O que percebem os meretíssimos Desembargadores em somente um mês de suas vidas é entendido suficiente para indenizar uma vida de um agricultor pai de família que teria, pelo menos, mais 30 anos de existência, considerando a expectativa de vida média do brasileiro.
Que tipo de interpretação justificaria tal discrepância? Que definição de “justiça” embasa tamanha injustiça?
Foi aí que nos demos conta, como poderia o dano sofrido por uma filha de um sem-terra valer mais que o salário mensal de um desembargador?!
Quanto será que vale? Essa pergunta permanece e não se cala.
Coragem companheirada, a luta por justiça continua!
Elton Brum da Silva Presente!
Por nossos mortos nem um minuto de silêncio, mas uma vida inteira de luta!
Elton Brum Vive!