Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais e Agricultores e Familiares: A Disputa pelo Direito no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN)

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

Renata Carolina Corrêa Vieira. Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais e Agricultores e Familiares: A Disputa pelo Direito no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN). Brasília: CEAM-PPGDH (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania), 2021, 169 f.

 

 

            Perante uma banca examinadora proeminente e rara – Raquel Yrigoyen Fajardo, do Instituto Internacional Derecho y Sociedad, de Lima; Boaventura de Sousa Santos, diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; e Henyo Barreto, do Instituto de Ciências Sociais (Antropologia) da Universidade de Brasília, a dissertação, uma das mais instigantes dentre a centena de trabalhos que orientei, foi defendida e aprovada.

            Conforme assinalou o professor Boaventura na ocasião, diz bem de uma tese, a altitude e, simultaneamente, a profundidade da arguição que ela provoca, algo que se fez eloquente na sabatina proposta pelos examinadores à candidata. E a conformação da banca não foi injunção pra emoldurar o trabalhos; todos os seus membros tiveram, de algum modo uma proximidade construtiva na consumação do arranjo de pesquisa da Autora, em classe de aula (Henyo, para conformar a aproximação antropológica); na discussão sobre protocolos de pesquisa no campo epistemológico-metodológico (Boaventura, para quem Renata preparou relatórios de campo em temas correlatos a seu estudo); Raquel Yrigoyen que recebeu Renata no IIDS, num estágio de investigação, no Peru, a partir de acordo de cooperação e de intercâmbio celebrado com a UnB-PPGDH, programa que abriga a dissertação submetida à banca.

            Tudo isso pode ser aferido, acompanhando a própria defesa, os debates e a decisão final, conforme a sessão transmitida para a audiência dos pesquisadores interessados, notadamente aqueles vinculados à linha de pesquisa que sustenta a proposta O Direito Achado na Rua: https://www.youtube.com/watch?v=fh2l89R2CAE.

            Não é trivial ouvir o professor Boaventura de Sousa Santos, um dos mais notáveis intelectuais de nosso tempo, dizer sobre o trabalho que ele “o fez pensar”.

            Mais que um elogio, a consideração feita pelo professor Boaventura – aliás eu fiz atenção a isso logo que ele enunciou essa atitude – está no que se designa como uma disposição ética de todo pensador, que é reconhecer a proximidade solidária para articular auto-reflexividade e alternativas para a realidade interpelante. Por isso lembrei uma chamada já antiga do professor ao repto da necessidade de pensar, aludindo a evento no qual teve participação e que se organizou, exatamente, por esse apelo: Por que pensar? (Lua Nova (54) 2001).

No texto, tal como apresentado no Seminário que lhe deu origem, o professor alinha Seis Razões para Pensar, partindo da necessidade de estruturar pensamentos alternativos ao racional imediato porque, primeira razão, “porque estamos numa fase de transição paradigmática, numa fase em que nós temos que pensar, realmente, qual é o tipo de conhecimento que nos pode levar a atravessar da melhor maneira esse processo de transição, porque as transições são processos em que há descontinuidades, há turbulências de escalas, há agitação, explosão mesmo de escalas, como eu costumo dizer, e o pensamento estabilizado em outras eras, em outros períodos, tem dificuldade em se adaptar a essa turbulência”.

Menos que uma adesão nos termos, estou certo que o professor encontrou no trabalho de Renata essa disposição, na designação dos temas e na atitude auto-reflexiva, proporcionada pelo encontro entre as condições sociais interpelantes a partir dos sujeitos da pesquisa e as possibilidades teóricas para orientar a ação no contexto turbulento de transição epistemológica e política que atravessamos.

Algo que se divisa na segunda resposta à pergunta por que pensar? Diz ele: “porque a ação e a mobilização não dispensam a lucidez da ação e da mobilização. A ponta de verdade que a ideia da auto-reflexividade tem hoje não é detectável ao nível da auto-reflexidade individual, mas antes ao nível da auto-reflexividade coletiva, dos movimentos sociais, das organizações não-governamentais, onde, ao contrário de outros tempos em que mobilização, nomeadamente aquela que caracterizou o movimento operário, tomou a certa altura uma precedência total sobre a lucidez,  como se a mobilização tivesse razões que a razão teria mesmo que desconhecer – a reflexão sobre as razões da mobilização faz parte integrante da própria mobilização. Estamos numa fase nova, onde a mobilização não dispensa a lucidez e onde, realmente, para as pessoas se mobilizarem para as lutas sociais têm que ter razões próprias. Portanto, eu penso que neste momento é fundamental que se tome nota de que neste período nós precisamos de um pensamento que permita essa mesma lucidez para ação e mobilização. E aqui, nesta resposta, a elaboração que vos faço e vos proponho é a seguinte: é que para isso ser feito é preciso que se criem constelações de sentido onde as tarefas intelectuais, as tarefas políticas e as tarefas morais de alguma maneira convirjam. E isto é, naturalmente, uma ruptura com o pensamento da modernidade”.

Sob essa perspectiva, com razão, o trabalho de Renata Vieira, faz pensar. De fato, uma vez que aqui abri enlace para seguir a defesa pelo YouTube, trago para efeito dessa confirmação, nesta resenha, o resumo que abre a dissertação:

Os povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e os agricultores familiares (PICTAFs) desenvolveram modos de vida particulares, traduzidos em práticas e experiências com a natureza e o meio ambiente que os cerca, nomeados pela ciência moderna de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Estes saberes passaram a ser alvo de interesse da indústria, em especialmente, do ramo da biotecnologia. Dentro deste contexto, tratados internacionais e leis internas passam a regular o acesso à biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais. O direito oficial moderno objetivou regular a apropriação da vida e da natureza, no ambiente internacional e nacional, como exemplos por meio da Convenção da Biodiversidade, do Acordo TRIPIS e da Lei nº 13.123/2015, respectivamente. A lei, todavia, trouxe a previsão de assento com direito a voz e voto dos representantes dos detentores de conhecimentos tradicionais dentro do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, abrindo este espaço institucional para a luta e resistência. A pesquisa buscou responder à pergunta: como os detentores dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade protegem e efetivam seus direitos dentro do CGEN? Buscou, ainda, identificar as disputas/tensões em torno do conceito de conhecimentos tradicionais, bem como analisar como o direito pode atuar na proteção dos conhecimentos tradicionais. A investigação da atuação dos PICTAFs para a defesa e efetivação de seus direitos dentro do CGEN se deu por meio de observação participante das reuniões no ano de 2018 e 2019, bem como das atas de reuniões do período de 2016 a 2020, além de entrevistas dos conselheiros. Como resultados da pesquisa, identificou-se que muito embora o espaço institucional seja hegemonizado pelo capital, os representantes dos PICTAFs se valem deste espaço por meio de práticas geradoras de direitos, como o direito à cosmovisão sobre o conhecimento tradicional, o direito à existência, o direito à voz e à representatividade

            Para a Autora, em suas palavras subsequentes à defesa, já refeita das emoções legítimas que o processo de elaboração acumula, ela como que fechou:

um ciclo de um período muito importante e especial pra mim. Defendi minha dissertação de mestrado em Direitos Humanos (UnB), sob a orientação do nosso mestre @josegeraldosousajr , com uma banca extremamente qualificada: nada mais nada menos que @raquel_yrigoyen_fajardo , @henyo.barretto e Boaventura de Sousa Santos! Me sinto plenamente honrada e agradecida por este momento único em minha vida. E agradeço imensamente todas e todos que fizeram parte desta longa caminhada. Em “Povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, agricultores familiares: a disputa pelo direito no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN)”, me propus a fazer uma análise de como se dá a luta por direitos quando os movimentos sociais alcançam a institucionalidade, especialmente a disputa pelos direitos relacionados a seus conhecimentos tradicionais, dentro de um espaço hegemonizado pelo capital e onde a correlação de forças é extremamente desigual. Em que pese o direito oficial moderno ser um instrumento para reproduzir a opressão, estes sujeitos coletivo de direitos, por meio de suas práticas, conseguem disputar esse direito e ressemantizá-lo para, juntos, enunciar novos direitos e os princípios de uma legítima organização social da liberdade (e da biodiversidade!)”.

Com igual intenção, reproduzo o Sumário do texto, de modo a transmitir o conjunto dissertativo proposto pela Autora:

 INTRODUÇÃO

  1. Prólogo: reflexões sobre fazer pesquisa, pandemia, salvar vidas e saberes tradicionais.
  2. A pesquisa
  3. Percurso metodológico
  4. Apresentação

 

CAPÍTULO 1. DAS DIVERSAS COLONIALIDADES E DA PRODUÇÃO DE DES-

CONHECIMENTOS

1.1.      A biocolonialidade de poder e a invenção da biodiversidade

1.2.      Biodiversidade e movimentos sociais na América Latina

1.3 Conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade: em busca de um conceito

 

CAPÍTULO 2. A REGULAÇÃO DO CONHECIMENTO TRADICIONAL E DA

BIODIVERSIDADE: A POLITIZAÇÃO DO DEBATE EM TORNO DO DIREITO E DOS SUJEITOS

2.1 A politização dos conhecimentos tradicionais

2.2. Detentores dos conhecimentos tradicionais: povos indígenas, povos e comunidades

tradicionais e agricultores familiares

2.2.1.   Povos Indígenas

2.2.2.   Povos e comunidades tradicionais

2.2.3.   Agricultores familiares

2.3. Conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade: entre leis e direitos

2.3.1. O ―direito‖ internacional e os direitos relacionados aos conhecimentos tradicionais

 2.3.2 A ―conturbada‖ implementação da Convenção da Diversidade Biológica no Brasil: a Medida Provisória 2.186, de 2001, e a Lei n. 13.123, de 2015

CAPÍTULO 3. OS DETENTORES DE CONHECIMENTOS TRADICIONAIS NO

CONSELHO DE GESTÃO DO PATRIMÔNIO GENÉTICO: A DISPUTA POR DIREITOS

 3.1.     Qual direito?

3.2.      A cartografia do CGEN sob as lentes de O Direito Achado na Rua: os sujeitos, o

espaço, as práticas e os direitos

3.2.1.   Os sujeitos

3.2.2.   O espaço político

3.2.3.   As práticas e os direitos

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seguem as Referências Bibliográficas e os Anexos

           

O trabalho tem a peculiaridade de um mergulho radical nos pressupostos em que se sustenta, ao imantar a pesquisa do compromisso ético-político de captar o sentido de alteridade que os sujeitos inscritos nas representações dos povos e comunidades originários e tradicionais, inscrevem em seu protagonismo no processo. Isso é o que transparece das considerações finais.

Sobre isso, o professor Henyo chega a dizer, na arguição, que a Autora testemunhou a indigenização de um protagonismo que representa como que uma descolonização das instituições e dos espaços estatais, por uma forma de ocupação desses espaços orientada pelo imaginário cosmológico com que representam a existência, a natureza e a humanidade. A Autora expressa essa compreensão, ao formulá-la, tal como o fizera no debate durante a defesa, no modo como ela própria o disse acima: “me propus a fazer uma análise de como se dá a luta por direitos quando os movimentos sociais alcançam a institucionalidade, especialmente a disputa pelos direitos relacionados a seus conhecimentos tradicionais, dentro de um espaço hegemonizado pelo capital e onde a correlação de forças é extremamente desigual”.

É certo que o fio condutor dessa constatação é desenrolado pela narrativa/oralitura (posto que que retirada dos depoimentos colhidos pela Autora), enfibrado de disposição contra-hegemônica de construção de um direito autêntico, cogente, contraposto ao direito oficial, formal, organizado sobre expressão regulamentar, direito achado na aldeias, nos territórios, nos usos tradicionais, na rua, direito emancipatório em suma.

Aqui terá sido útil, desde uma perspectiva metodológica, mas também epistemológica, valer-se das mediações cognitivo-tradutoras, não só de uma antropologia social que desvende uma outra sociabilidade, mas de uma sociologia de ausências e de emergências que possa ir ao profundo da linha abissal para regressar pela mediação da hipótese do pluralismo jurídico, com a projeção de uma outra juridicidade que não seja o sinal trocado de um monismo positivo legal travestido de um monismo alternativo. O Direito Achado na Rua não é um direito alternativo, mas a expansão desde as entranhas do social, lá onde a existência emancipada, comunitária, compartilha os bens da vida produzidos em comum e de forma comum e igualitária sejam compartilhados segundo padrões de uma organicidade legítima.

O mapa cognitivo da Autora é acolhedor. Combina os arranjos epistemológico-metodológicos compatíveis. Poderia sim, trabalhar com muitos entre nós o fazem com o diamante ético de Herrera Flores para pensar os direitos humanos como processos de reconhecimento da dignidade material da existência, na intersecção entre a linha horizontal da materialidade e das disposições de desenvolvimento das forças produtivas na historicidade das relações de produção e a linha vertical dos espaços de posicionamento da afirmação dos valores em narrativas institucionalizados no Carrefour da dignidade do humano; ou da ecologia dos saberes, na modelagem proposta pelo professor Boaventura de Sousa Santos, o que facilmente se percebe nas cartografias desenhadas para acentuar as notações da pesquisa. E todavia, tudo isso é feito, mas na lealdade aos fundamentos de sua base nativa de apoio interpretativo, ensaiando e bem num arranjo de completude os elementos designativos do arranjo social e teórico sugerido por O Direito Achado na Rua, a partir das experiências analisadas, para assim: 1) Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, na enunciação como direitos humanos; 2) Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3) Enquadrar os dados (achados) derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, Revista Humanidades, vol. 8, número 4 (30). Brasília: Editora UnB, 1992).

Coerente com os enunciados constantes dos objetivos do trabalho, a Dissertação articula as questões indicadas nesse Sumário, para assentar o que a Autora indica em suas conclusões. “De um modo geral diz ela – o presente trabalho serviu à compreensão e explicitação dos diferentes processos históricos e epistêmicos através dos quais se constitui o direito estatal, e em suas contradições se expressa a lei e o direito: (i) da trágica reconfiguração do choque colonial epistêmico sobre as diferentes formas de viver e interagir com a natureza e a sociedade, suscitando de um lado interesses de apropriação privada e exploração econômica da biodiversidade, e de outro o despertar e a mobilização social em torno da resistência, reconhecimento e proteção aos diferentes modos de vida e dignidade associados à natureza local; (ii) até a regulação jurídico-normativa da questão, conduzida em perspectiva abissal pela apropriação científica e exploração econômica dos conhecimentos tradicionais, que no entanto, possui clivagens, porosidades onde se inscrevem os verdadeiros direitos dos povos, como por exemplo, o direito à consulta livre, prévia e informada e à repartição de benefícios, (iii) bem como da sua dimensão institucionalmente contra-hegemonizada pela participação de representantes dos detentores de conhecimentos tradicionais no órgão de deliberação sobre a regulamentação legal, a solução de conflitos e a projeção de políticas públicas associadas ao acesso e livre uso da biodiversidade. Verificou-se, portanto, no microespaço do CGEN, que o direito não está pronto e acabado, ele não é estanque, ele ―é, sendo‖, na expressão de Lyra Filho, ele se atualiza semanticamente a partir das práticas dos sujeitos coletivo de direito. Na medida em se apresentam dentro deste espaço hegemônico revelam novas experiências, novos espaços e tempos, e assim novos direitos que emergem das lutas de resistência que configuram e se orientam por modos de vida e dignidade”.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

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