O personalismo ético e a dignidade humana
A corrente de pensamento do personalismo ético, que estabeleceu a dignidade humana como valor-cerne e princípio-cerne do sistema de direitos fundamentais e de todo o ordenamento jurídico, passa a sofrer críticas e propostas de revisão mais agudas a partir da segunda metade do século XX. Tal corrente, como é sabido, se inspirou em ideias filosóficas de matriz kantiana para fundamentar na razão o imperativo de respeito à dignidade da pessoa humana.
Segundo essa forma de pensar, o ser humano (ao contrário de tudo o mais que existe na realidade) nunca deve ser utilizado como mero meio para a obtenção de quaisquer fins; é o próprio ser humano um fim em si mesmo, não podendo ser instrumentalizado, e nisso reside a sua particular dignidade. Ocorre que, desde o início, essa linha de raciocínio dá margem a uma indesejável e constrangedora pergunta: por que deve ser assim? Por qual razão deve ser seguido esse imperativo (tanto ético, como jurídico) fundamental?
A resposta inicial do personalismo ético, como já dito, está na razão (tomada como atributo exclusivamente humano). Cada ser humano deveria respeitar a dignidade do outro (e a própria!) porque é um ser racional, dotado de entendimento e, portanto, capaz de compreender o significado desse mandamento de respeito.
Nessa esteira, o que caracterizaria em especial a pessoa humana, separando-a de todos os demais seres da existência, seria a razão; a razão seria, em última análise, a causa da dignidade.
Ao lado de haver algo de prestidigitação nesse raciocínio (que embora seja, sem dúvida, muito útil, é eminentemente formal), uma série de novas ideias e de descobertas científicas oriundas de outras áreas do saber colocam em dúvida o papel da razão como base do conceito de dignidade humana, bem como o próprio princípio do respeito à dignidade (na sua formulação original) como base de todo o sistema de direitos.
O homem e os outros seres
Em uma primeira ordem de reflexões, tem-se que as pesquisas e estudos científicos mais atuais vêm demonstrando que o homem não é o único animal racional. Em que pesem diferenças de gradação, os primatas superiores apresentam um grau de entendimento e comportamentos muito mais próximos dos humanos do que se imaginava (cf. FRANS DE WAAL, Good Natured: The Origins of Right and Wrong in Humans and Other Animals, Cambridge, Harvard University Press, 1996).Esses primatas, de fato, demonstram a capacidade de auto-reconhecimento quando colocados em frente a espelhos, o que por si só já é bastante notável.
Igualmente, o exame quanto à intelecção no que tange a outros animais, em especial aos golfinhos e às baleias, revela que o critério da razão talvez não possa ser invocado em termos tão rígidos para particularizar o ser humano.
A razão, a vontade e a solidariedade, indicam os estudos ora em apreço, não seriam bons índices para distinguir o ser humano de outros animais, não serviriam para individualizá-lo de modo absoluto em relação a outros animais, na medida em que estes (ou muitos destes) também apresentam tais características em certo grau.
Numa segunda ordem de reflexões (ligada à primeira, mas ao mesmo tempo independente), tem-se a relativa contraposição que já abordamos em escritos anteriores entre os valores dignidade e vida. Quando os pensadores do Direito optam por uma perspectiva que privilegia a vida (e não a dignidade-razão) como valor fundante do ordenamento, impõe-se a indagação acerca do que é que, de fato, mais aproxima a vida humana das demais formas de vida – afinal, ainda que algum tipo de razão possa ser encontrado em outras espécies, a diferença de níveis na intelecção é evidente.
Por que seria a ciência (razão), e não a senciência (a capacidade de sentir, que outros animais também possuem), o fator de atribuição de dignidade a um ser vivo? Animais não humanos têm dignidade?
É esse conjunto de questões que está na base dos mais diversos movimentos e teorias a postular o reconhecimento de direitos subjetivos aos animais. Assumindo uma postura crítica, porém, prefiro me referir a posições jurídicas subjetivas (conceito mais amplo) titularizadas por animais não-humanos (colocando em evidência o fato óbvio, mas frequentemente deixado em segundo plano, de que também os seres humanos são animais desde um ponto de vista ontológico, ainda que possam ser tomados como animais muito especiais, sob vários outros pontos de vista).
Parece-me essencial a adoção de uma postura crítica na matéria, e ao mesmo tempo científica (em termos de ciência jurídica e das ciências em geral), para trazer seriedade intelectual na abordagem do assunto e resgatá-lo do excesso de paixões e componentes ideológicos que o tem inundado.