Coluna Direito à Cidade
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A diferença nas cidades
A comemoração do Dia Internacional da Mulher, em 8 de março, é uma ótima oportunidade para pautar o debate sobre a questão da diferença nas cidades. Ela está posta, e a literatura especializada traz uma longa lista de evidências que demonstram que a desigualdade, concretamente, é um problema central no espaço urbano: as cidades são feitas por homens e para homens, que, por sua vez, não levam em conta as particularidades de gênero na elaboração de projetos urbanos; a distribuição de equipamentos públicos, tais como creches, escolas e parques, não está ordenada de modo a atender a rotina das mulheres; as ruas são cheias de zonas escuras e perigosas, e as calçadas não são adequadas a saltos de sapatos femininos; a produção intelectual dominante em urbanismo é masculina e submete o protagonismo das mulheres a uma grande invisibilidade.
Mesmo a casa não passa em branco: monumento à vida privada, tem o seu layout padrão determinado por relações de gênero. Alguém já se perguntou por que cozinhas ficam nos fundos da casa ou por que o fogão fica, em geral, voltado para a parede? O que dizer, então, dos quartos? A antropóloga francesa Michelle Perrot, em instigante genealogia sobre esse espaço intitulada “A História dos Quartos”, alfineta: quartos guardam os segredos conjugais (e extraconjugais, como nos quartos das cortesãs), expressam relações de poder e suas paredes foram e são testemunha de múltiplos processos de violência física ou simbólica, envelopadas como relações de amor.
Repensar do espaço urbano
Com esse pano de fundo, o coletivo espanhol Punt 6, que congrega arquitetas urbanistas e sociólogas, propõe um repensar do espaço urbano como modo de romper hierarquias e discriminações. A ideia começa com a temática de gênero, mas o grupo não parece fechado a outras perspectivas relacionadas à diversidade. O resultado da mobilização já começa a aparecer: a cidade de Donosti investirá na redução de áreas escuras, enquanto Palma incluirá especialista em urbanismo feminista na equipe que revisará seu Plano Diretor.
São medidas fundamentais para torná-las mais generosas com as particularidades que convivem no espaço urbano. Reduzir as disputas que surgem em contextos assim por meio de uma abordagem mais compreensiva torna a vida nas cidades melhor para todos, o que faz dessa uma agenda importante de luta social.
É preciso, porém, afastar o risco de ficar preso às abordagens epidérmicas. Há questões estruturantes em jogo e a democracia, responsável pela construção dos consensos possíveis dentro da diversidade, vai mal nesse campo e não pode ser negligenciada nessa discussão. Nas eleições municipais de 2016, as mulheres perfizeram 13,5% da composição das Câmaras Municipais. Se os vereadores são os responsáveis por criar leis que regulam a vida nas cidades, o que esperar de composições majoritariamente masculinas?
Cultura que atrasa
Há, ainda, condicionantes culturais que bloqueiam essa e outras pautas. Como avançar com medidas que assegurem que o espaço público seja mais seguro para as mulheres no Brasil se pesquisa do Datafolha de 2016 indica que 1 em cada 3 brasileiros entende que ela é culpada em casos de estupro?
Desde que Max Weber publicou o texto clássico “Dominação não-legítima” sabe-se que a cidade não é só o palco onde ocorrem transformações sociais: ela é, também, protagonista dessas transformações. Seja porque o espaço urbano abriga as contradições sociais, seja porque ele se consolida no momento da história em que as relações econômicas rompem com os laços hereditários típicos do feudalismo, o fato é que o tipo de integração social que ela favorece propicia mudanças de grande magnitude.
O desafio, nesse sentido, é produzir rupturas e abrir clareiras, apostando no potencial amplificador de demandas que é intrínseco à cidade. Sem esquecer que não haverá urbanismo da diferença enquanto a diferença não for componente do próprio tecido social, pois não há urbanismo divorciado da realidade que o produz e informa.
Essa a sua vocação revolucionária. Que, um dia, poderá abrir o caminho para um urbanismo que incorpore as dimensões íntimas do feminino como um elemento estrutural, ainda mais radical do que a expressão (também) estetizada das curvas dos projetos de Niemeyer: por uma cidade que seja mais a cara da maioria feminina que a habita.