Por que o Projeto de Lei 4330 despertou tanto interesse

Artigo veiculado na 47ª edição do Jornal Estado de Direito

Homero Batista Mateus da Silva,

Juiz do Trabalho (88ª Vara de São Paulo e professor universitário (USP).

Autor da coleção Curso de Direito do Trabalho Aplicado, em 10 volumes, a ser lançada pela Editora Revista dos Tribunais em junho de 2015.

Um projeto de lei da Câmara dos Deputados, com mais de 10 anos de tramitação, 170 emendas e que ainda precisa passar pelo Senado Federal e pela Presidência da República, despertou grande interesse da sociedade em março e abril de 2015.

Mesmo sendo relativamente curto, com apenas dezenove artigos, o projeto chamou a atenção por escancarar aquilo que silenciosamente já é praticado em numerosas empresas – a terceirização maciça dos empregados.

Em sua essência, a terceirização não significa uma mudança necessariamente maléfica ou benéfica, pois ela objetiva apenas buscar em fonte externa algo que seria mais caro ou mais difícil se fazer dentro da própria empresa. Assim, é natural que uma grande metalúrgica pense em terceirizar o bandejão para fornecimento de refeições dos trabalhadores, o hotel possa terceirizar a lavagem das roupas de cama e banho ou o hospital queira terceirizar a jardinagem do entorno do prédio, para ficar nos exemplos mais conhecidos. Levar a roupa para a tinturaria, comprar marmita diariamente ou levar o carro para o lava jato são exemplos de terceirização feitas diariamente por lares brasileiros. No entanto, não é dessa terceirização que trata o projeto de lei, mas daquela generalizada, normalmente desmotivadora, que reduz os salários e forma pequenas castas na empresa, separando os efetivos dos temporários, os terceirizados dos quarteirizados, com diversas consequências práticas.

Esse regime de contratação de empresas especializadas realmente não foi bem sucedido no Brasil. Por mais que se argumente ser uma prática comum nos Estados

Unidos – outsourcing: fonte externa – ou na França – sous-traitance: subcontratação – o fato é que a “terceirização à brasileira” misturou situações de razoável separação entre as atividades da empresa e as atividades de apoio, com situações de fraude, desvirtuamento da legislação trabalhista e frequentes situações de dispensa de empregados antigos com sua readmissão como “terceirizados”.

Daí por que no Brasil terceirização passou a ser sinônimo de precarização.

Surpreende ainda mais que todo esse processo, que já dura quase trinta anos, foi feito sem nenhuma legislação específica. Há pequenas leis esparsas que comentam o trabalho temporário ou a terceirização de segurança armada, mas isso é nada perto do vendaval de terceirizações espalhadas pelo país. Toda a terceirização brasileira se sustenta numa decisão judicial do Tribunal Superior do Trabalho, que é conhecida como Súmula 331 (1993), o que, por certo, não deveria ocorrer num país organizado e desenvolvido em torno de leis e decretos – como se diz no jargão jurídico, um ordenamento de tradição romano-germânica. Saber que uma súmula de tribunal orienta mais de duas décadas de processos de terceirização é mesmo espantoso, mas, a esta altura, talvez já não haja mais espaço para que uma lei, tardia e retalhada, venha querer explicar o que é a terceirização, o que pode ser feito e o que ela representa para os trabalhadores.

Eis aí um problema de grande complexidade: o Congresso demorou tanto para desenvolver um projeto e, quando o faz, parece ao mesmo tempo açodado, confuso e fora de hora. Talvez seja melhor reconhecer a falha e deixar o cenário como está – a Súmula 331 não resolve todos os problemas da sociedade brasileira mas oferece um mínimo de previsibilidade, algum grau de orientação e um ponto de equilíbrio. E, se for o caso, redação de súmula também pode ser aprimorada, como, de fato, ocorreu com a 331. É inusitado dizer isso no sistema brasileiro, mas é fruto de um panorama bastante nebuloso que se instalou entre nós.

Mas, enfim, como o projeto de lei existe e a sociedade precisa ser bem informada sobre o que está em jogo, convém que se destaquem alguns pontos perdidos no tiroteio:

  • É louvável que alguém tenha se lembrado de falar em normas de saúde e segurança do trabalho, assunto tão urgente e tão esquecido pelas leis trabalhistas. No meio do projeto, consta um dispositivo que obriga a empresa a zelar pela saúde e segurança do trabalho dos terceirizados, contanto que eles estejam dentro de suas dependências. Já havia disposições neste sentido em normas brasileiras de 1978, que cuidam da saúde do trabalho, mas muitas vezes estas são esquecidas.
  • Também é importante destacar que a empresa principal – a que costumamos chamar de tomadora – será incentivada a estender aos terceirizados os benefícios pagos aos empregados, como vale-refeição, condução fretada e cesta básica. Mas não há muita ilusão de que ela vá estender benefícios mais caros, como planos de saúde e reembolso de material escolar.
  • O projeto enfatiza a necessidade de treinamento constante para os terceirizados, devendo ser custeado não apenas para empresas terceirizadas, mas também pelas empresas tomadoras. No caso, o treinamento não é uma forma de caridade, mas de elevado interesse dos próprios empregadores, obviamente.
  • Se os itens acima revelam alguns aspectos simpáticos do projeto, difícil é assimilar a autorização prevista para terceirização de 100% da empresa: na linguagem jurídica utilizada pelo projeto, as empresas passam a ser autorizadas a terceirizar as atividades “inerentes” a sua estrutura. Na língua portuguesa, inerente é o essencial, o âmago, a razão de ser da empresa, não restando dúvida de que a proposta é ambiciosa e quase surreal, por não se conseguir imaginar que uma metalúrgica não desenvolva a metalurgia e um hospital não cuide de pacientes – mas apenas se dediquem, de acordo com o projeto, a gerenciar contratos de pequenas empresas prestadoras de serviços de parte da metalurgia e parte da saúde pública. Interessante lembrar que essa expressão, de terceirização de atividades inerentes, já havia sido utilizada em legislação anterior, quando da privatização da malha ferroviária nacional e da telefonia estatal, mas nem mesmo com essa previsão na lei o TST cedeu aos apelos das empresas: manteve firme a Súmula 331 e passou a discutir se inerente é mesmo o essencial. Até hoje a discussão permanece. Ou seja, embora nesse campo ninguém possa fazer previsão segura, há chance de o projeto de lei ser aprovado como está, e o TST, que detém a palavra final sobre interpretação de leis ordinárias, concluir que terceirização inerente não é o mesmo que terceirização radical. Nunca se sabe.
  • Um ponto se mostra ainda mais ousado no texto proposto: a permissão irrestrita para a quarteirização. Quer dizer, mesmo o empresário que parte para uma terceirização não terá certeza se a empresa que ele contrata irá mesmo prestar os serviços requisitados, ou se irá, ela também, se tornar uma pequena agenciadora de contratos, e repassar para estranhos a execução desse ou daquele serviço. Nada mais contraproducente para fins de fidelização de clientes e de forenecedores, se a cada dia a pessoa é atendida por um estranho na empresa. Aliás, muitos já se deram conta disso e inserem cláusulas de proibição de quarteirização em seus contratos de prestação de serviços, justamente para evitar que a própria terceirização sabote o empresário.
  • Dispositivo impossível de ser cumprido na íntegra é aquele que fala em rachar a contribuição sindical entre todos os sindicatos que houverem participado da cadeia produtiva da terceirização. O dispositivo deve ter sido escrito por alguém muito bem intencionado em não prejudicar este ou aquele sindicato, mas dizer que a contribuição sindical – popularmente chamada de imposto sindical –, de um dia de trabalho por ano, deva ser rachada à razão de 1/12 por mês trabalhado em cada empresa é desconhecer a realidade. Assim, se a auxiliar de limpeza trabalhar, como terceirizada, quatro meses num banco, quatro meses num condomínio residencial e, depois, quatro meses numa loja de roupas, sua contribuição sindical deve ser encaminhada à razão de 4/12 de um dia de trabalho para o sindicato dos bancários, 4/12 para o sindicato dos porteiros e 4/12 para o sindicato dos comerciários. A aferição disso é dificílima e a pulverização representa a falência do sistema sindical. Aliás, coesão entre os trabalhadores e formação de vínculos de afeto e solidariedade, de que falava a CLT, passam a ser apenas histórias de um passado distante.

A aplicação concreta do projeto de lei, se aprovado como está, mostra-se praticamente inviável. O tema, como se nota dos poucos pontos acima destacados, exige elevado patamar de razão e de sensibilidade, virtudes em falta entre as lideranças nacionais.

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