Poderes do credor de dívida de dar insatisfeito

Um grande mestre do Direito Privado já disse certa vez que não existe nada mais difícil, em ciência jurídica, do que o estudo da Parte Geral de um Código Civil (sob a forma da chamada Teoria Geral do Direito Privado). Poderíamos acrescentar, sem receio de errar, que igualmente o estudo da Teoria Geral das Obrigações corresponde a um desafio muito próximo, em grau de dificuldade, daquele representado pela Teoria Geral do Direito Privado. O presente artigo inaugural procurará demonstrar a veracidade dessas afirmações, ao apontar que aspectos aparentemente básicos – introdutórios, mesmo! – do Direito das Obrigações, que o senso comum da comunidade jurídica acredita estarem bem sedimentados, na realidade ainda dão margem a dúvidas e dissensões, estando a demandar maior aprofundamento pelos civilistas.

No espaço que me cabe mensalmente nesta coluna, procurarei abordar tanto as grandes questões como as pequenas questões ligadas ao estudo do Direito Privado. Chamo de grandes questões aquelas que tocam os princípios e valores fundamentais do ordenamento jurídico privado. Chamo de pequenas questões não as desprovidas de importância (essas sequer são questões!), mas aquelas de caráter marcadamente prático, que se resolvem com base antes em regras do que em princípios. Este aqui é um dos textos sobre as pequenas questões.

Podemos começar apresentando um modelo de caso simples. Imaginemos que João deve a Pedro a prestação de dação de um automóvel, dívida esta com termo de cumprimento fixado para 15 de junho. Na data estipulada, João não realiza a entrega, nem tampouco nos dias subsequentes. Pergunta-se: caberia a Pedro apenas a pretensão ao cumprimento específico da dívida, ou teria o credor, igualmente, pretensão à indenização substitutiva (recebimento de valor em dinheiro equivalente ao do veículo)? A primeira tese conta com a autoridade de Darcy Bessone e de Washington de Barros Monteiro, dentre outros.

Embora aparentemente simples, essa questão exige compreensão sistemática pelo intérprete. Obviamente, se se trata de dívida de dar inserta no bojo de um contrato, incide o art. 475 do Código Civil (CC) – e há para o credor a possibilidade de escolha entre (I) a resolução do contrato com indenização pelo interesse contratual negativo, ou (II) a manutenção do contrato, exigindo o seu cumprimento específico, com indenização complementar por prejuízos sofridos. É também evidente que se se trata de hipótese de impossibilidade da prestação por causa imputável ao devedor, só restará ao credor a opção de exigir a indenização pelo equivalente. Mas não é esse o caso em tela.

No julgamento do Recurso Especial nº 598.233/RS (acórdão prolatado em 02.08.2005), a Ministra Nancy Andrighi, em seu voto vista, indica acolher a tese segundo a qual o credor de dívida de dar não cumprida cujo cumprimento ainda seja possível e útil não pode pretender o recebimento de dinheiro, mas somente o recebimento da exata coisa devida. Em que pese o brilhantismo habitual da eminente Ministra, ouso afirmar que nessa parte o voto comportaria maior precisão: em verdade, o credor em tal hipótese tem sim em suas mãos, a princípio, além da pretensão ao cumprimento específico, a pretensão à indenização pelo equivalente (o art. 389 CC, bem como o art. 461, § 1º CPC/1973 – correspondente ao art. 499 CPC/2015 – permitem tal conclusão). Ocorre, porém, que se a prestação ainda é útil ao credor, incide também o art. 394 CC, concedendo ao devedor o poder de purgar a mora.

Um autor que bem harmoniza as regras em jogo, e bem expõe os poderes do credor (e do devedor) na espécie, é Agostinho Alvim. Em suas palavras, “o credor tem direito a exigir a prestação, mas nada impede que, verificado o inadimplemento, êle opte pelas perdas e danos. (…) Realmente, o credor tem aquela alternativa. Pondere-se, todavia, que a transformação da mora em inadimplemento absoluto não dependerá ùnicamente do seu arbítrio, porque o devedor pode insurgir-se contra a opção do credor, prontificando-se a purgar a mora, quando seja o caso, isto é, desde que a prestação não se tenha tornado inútil ao credor. Assinala-se aí um movimento de vaivém: era mora, o credor quis transformá-la em inadimplemento definitivo (era direito seu), mas o devedor, usando também de um direito, recolocou o caso no terreno da mora” (Da inexecução das obrigações e suas consequências, 2. ed., p. 62). No mesmo sentido é o pensamento de Henri de Page.

Note-se: uma questão ligada à classificação básica das dívidas (dívidas de dar, de fazer e de não fazer), e que, mesmo assim, possibilita essa riqueza em termos de análise. Continuaremos ainda com essa classificação básica das dívidas na próxima coluna. Até lá!

Marcel Edvar Simões

Procurador Federal, Chefe da Procuradoria Federal Especializada junto ao IBAMA em São Paulo. Bacharel e Mestre em Direito Civil pela USP. Professor de Direito Civil na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Membro do IDP, do IBDCivil e da ADFAS.

Picture of Ondaweb Criação de sites

Ondaweb Criação de sites

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit, sed do eiusmod tempor incididunt ut labore et dolore magna aliqua. Ut enim ad minim veniam, quis nostrud exercitation ullamco laboris nisi ut aliquip ex ea commodo consequat. Duis aute irure dolor in reprehenderit in voluptate velit esse cillum dolore eu fugiat nulla pariatur. Excepteur sint occaecat cupidatat non proident, sunt in culpa qui officia deserunt mollit anim id est laborum.

Cadastra-se para
receber nossa newsletter