Coluna Assédio Moral no Trabalho
Conversemos sobre Poder Judiciário e (In)justiça.
Seguramente, presta o Poder Judiciário para a promoção da Justiça.
Asseguraria ao cidadão lesado a possibilidade de recorrer-se aos magistrados para coibir e eliminar o abuso sofrido.
Cuida-se atualmente, de um indiscutível direito universal.
Mais que preservar um discurso legalista, sua função é a Justiça justa.
Seja nos primórdios seja na pós-modernidade, há inúmeros conflitos a serem dissipados, acumulando-se e agravando-se com o decorrer do tempo e assim, afirmando cada vez mais a relevância do Poder Judiciário como última instância de realização de Justiça.
Intoleravelmente, o Poder Judiciário não tem se mostrado à altura dos desafios apresentados.
Ressalvadas honrosas exceções (1), tal poder tem se apequenado e se acovardado diante do novo, das originais demandas advindas da conscientização das pessoas, redundando em evidente crítica sobre fiel cumprimento de seu mister.
Noutros termos, o Poder Judiciário tem se tornado perigosamente descartável em virtude da falta de compreensão desta instituição acerca das reivindicações dos tempos presentes. Estabilidade e legitimação são postos em risco. O fracasso da Justiça e da paz social impele a impressão da absoluta inutilidade do Poder Judiciário. (2)
Literalmente:
“o aparecimento de movimentos sociais crescentemente organizados, desafiando a rigidez lógico-formal dos sistemas jurídico e judicial mediante a politização de questões aparentemente técnicas , tem aberto caminho para práticas contraditórias que comprometem o ordenamento vigente a partir da discussão de problemas específicos […] Tais práticas, por sua vez, têm exigido respostas rápidas e pragmáticas por parte do Estado, respostas essas que dispersam conflitos sócio-econômicos, sem contudo, resolvê-los.” (3)
Cogente destacar que, a contundente advertência prelecionada engloba diversificados contextos – meio ambiente; direitos dos animais; desobediência civil; movimentos feminista, negro e LGBTQI; relações trabalhistas etc. – nos quais os indivíduos não mais aturam descaso com suas necessidades e seus anseios por Justiça.
E, repita-se, o Poder Judiciário tem enfrentado sérias dificuldades para oferecer respostas justas, repercutindo a conhecida descrença da população nos julgadores, o descrédito inafastável da opinião pública no que concerne ao seu devotado papel, a absoluta falta de confiança no que entendem como um arremedo de Poder Judiciário e Justiça.
Vestígio da origem comum – Executivo, Legislativo e Judiciário unificados na figura do rei ditador – a suspeita popular é renovada pelo déficit judicial contido nos alijados julgados.
Morosidade processual, ausência de significativas especializações, falhas tecnológicas, resistência à permeabilidade das mudanças sociais, mantença do status quo, atecnias, decisões atabalhoadas e rasas para cumprimento de metas ou interesses próprios sem deter-se sobre o delicado conflito humano intrínseco etc. são apenas alguns exemplos da defasagem do Poder Judiciário.
Daí, ser cantilena há muito apregoada a “crise da justiça”.
Parece que sua auto-regulamentação justifica e blinda o Poder Judiciário contra intervenções e reformas…obstando acurado controle social.
Nada obstante seja extremamente intrincada a concepção do Justo e da Justiça, afloram exemplos inegáveis antiéticos ou injustos sobrevindos de decisões do Poder Judiciário.
Neste sentido, o móvel do presente artigo: o ex-estudante de medicina da USP, hoje Doutor Daniel Tarciso da Silva Cardoso, acusado de estupro foi inocentado em segunda instância no TJSP, na manhã de quinta-feira última.
Para socorrer-me em minha indignação, em mais uma injustiça perpetrada pelo Poder Judiciário, numa odiosa validação da violência contra a mulher e do assédio, trago à cotejo nota do grupo de docentes e pesquisadoras da Universidade de São Paulo – Rede Não Cala USP – que luta pelo fim da violência sexual e de gênero no âmbito universitário:
“A cultura do estupro ganha de 3 a 0 hoje no TJSP. Saiba quem são os desembargadores que decidiram o jogo.
Foi julgado hoje no Palácio da Justiça em São Paulo a apelação da decisão que havia absolvido Daniel Tarcísio Cardoso no ano passado. Acusado de dopar e estuprar 7 estudantes da USP, dos quais apenas 3 casos foram denunciados, além de ter sido condenado pelo homicídio de um rapaz no metrô com 10 tiros, mas por legítima defesa. Apenas uma das vítimas do ex-estudante de medicina da USP e atual médico conseguiu dar prosseguimento à denúncia, desde 2012.
Em uma agilidade surpreendente, o recurso foi julgado e decidido em menos de um mês. Na semana passada, dia 02/08, durante a sessão de julgamento, após a sustentação do advogado da vítima, Luis Eduardo Greenhalgh, o revisor pediu vistas do processo, para analisar melhor, o que havia reacendido a esperança para a vítima e sua família, e para estudantes e professoras da USP que acompanharam o processo. Ontem a tarde, com menos de 24 horas de aviso, foi informado que a decisão aconteceria hoje às 9 e meia da manhã. Porém, o desembargador que pediu a revisão decidiu seguir o voto do relator, e o resultado foi unânime: 3 a 0 pela manutenção da absolvição do estuprador.
No ano passado o juiz Klaus Arroyo havia proferido a sentença a favor da absolvição alegando que pela jovem ter consentido em entrar no quarto do rapaz, logo ela haveria consentido em manter relações sexuais com ele.
Hoje, além de concordarem com a visão machista do juiz, adicionam mais uma. Os desembargadores defenderam seu voto indicando também que as mulheres estudantes comparecem a essas festas de recepção de calouros para “socializarem” com os rapazes. Ou seja, o Judiciário, que deveria balancear as forças da sociedade, ignora as provas do auto e a própria jurisprudência de casos de violência sexual que indica levar em consideração a palavra da vítima, para decidir com base em um julgamento moral sobre a conduta das mulheres.
Ao invés de combater, o Tribunal de Justiça de São Paulo corrobora com a cultura do estupro, seguindo a visão majoritária da sociedade de que a culpa é da vítima. Segundo pesquisa feita pelo IPEA em 2014, 58,5% dos brasileiros concordam total ou parcialmente com a afirmação de que “se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros”.
A vítima e a família seguirão firme na batalha por justiça, e irão apelar para instâncias superiores, com o apoio dos coletivos feministas da USP e de demais entidades e pessoas que estiveram presentes nas audiências em solidariedade.
Enquanto isso, que fiquem registrados aqui para a história os nomes dos excelentíssimos membros do Judiciário que deram às costas para mais um caso de violência contra a mulher:
Maurício Henrique Guimarães Pereira Filho – Relator
Geraldo Luís Wohlers da Silveira – Revisor
Juvenal Duarte.” (4)
Enfim, não se está aqui a pugnar pela derrubada da independência do magistrado. Há contudo de sublinhar-se o tema da responsabilidade funcional e a sujeição inclusive, ao poder disciplinar.
Recordar aos Magistrados sua responsabilidade numa responsável e digna prestação jurisdicional apta inclusive a encerrar angustias e aflições decorrentes do próprio processo judicial e passíveis de males psicossomáticos é cogente. (5)
Recordar aos Magistrados o direito constitucional do cidadão à Justiça e a um julgamento respeitoso e correto.
Recordar aos Magistrados que são eles antes de mais nada servidores públicos, isto é, pessoas que possuem o dever de servir ao público parece, nestes tempos, inexorável sob pena de aniquilação do Poder Judiciário como visto hodiernamente.
Fica o alerta!
Referências:
(1) Cf. “O grotesco no Assédio Laboral: Miss Mijona e outros casos”. Postado aos 13 ago. 2018 na Coluna Assédio Moral no Trabalho.
(2) FRISSO, Giovanna Maria. A busca da justiça no estado de direito. Notícia do Direito Brasileiro, Brasília, n. 7, p. 373-388., 2000. Disponível em: . Acesso em: 17 ago. 2018.
(3) CAMPILONGO, Celso Fernandes e FARIA, José Eduardo. A sociologia no Brasil. Porto Alegre, Fabris Editor, 1995, p. 14.
(4) Disponível em: https://pt-br.facebook.com/naocalausp/. Acesso em: 17 ago. 2018.
(5) Cf. Convênio de Cooperação Interinstitucional da Suprema Corte de Justiça do Uruguai com o Ministério da Saúde Pública.
Ivanira Pancheri é Articulista do Estado de Direito, Pós-Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (2015). Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (1993). Mestrado em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (2000). Pós-Graduação lato sensu em Direito Ambiental pela Faculdades Metropolitanas Unidas (2009). Doutorado em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (2013). Atualmente é advogada – Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Esteve à frente do Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias, das Fundações e das Universidades Públicas do Estado de São Paulo. Participa em bancas examinadoras da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo como Professora Convidada. Autora de artigos e publicações em revistas especializadas na área do Direito. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal, Processual Penal, Ambiental e Biodireito. |
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