Segunda-feira, 17 de agosto de 2015. São exatamente 7 horas da manhã e minha cabeça ainda processa as informações que há menos de 12 horas chegaram pela imprensa sobre as manifestações populares ocorridas na tarde de ontem no Brasil.
Na tentativa de contextualizar histórica e juridicamente o evento, notei que alguma coisa estava fora de lugar, que algo do que aprendi sobre o ‘povo na rua’ não era exatamente o que se via nas imagens que representaram o país ontem. O que será que não batia? Depois de algum momento de reflexão, concluí: ora, essas pessoas que encheram as principais avenidas do meu país não se parecem em nada com os oprimidos que antigamente ocuparam as ruas e fizeram uma mudança de paradigma na literatura dos Direitos Humanos.
Exatamente isso! Quem estava nas ruas ontem, em geral, eram os empregados, os de estômago cheio, que traziam consigo os filhos com pó de grafite nas mãos e não de carvão no rosto, homens subordinados em seus empregos às mulheres diretoras que, além de tudo, votam. Enfim, esse era o elemento que, antes inconscientemente, me desconcertava e que me fez concluir que a corrupção é a opressão dos nossos tempos e contra ela lutam mesmo os que não se parecem com os oprimidos de ontem. Hoje em dia, a corrupção está umbilicalmente ligada à fome que alguns ainda sentem, à falta de educação que está sendo imposta aos nossos pequenos, à falta de acessibilidade que limita nossos idosos e ao desemprego que volta a assombrar a população.
Isso é dizer que ontem o saciado protestava pelo faminto? O educado, pelo iletrado? O trabalhador, pelo desempregado? Penso que ainda o ser humano não tenha atingido tal grau de generosidade. Antes, protestava por seus próprios incômodos advindos da corrupção, mas não por isso com menos legitimidade. Por outro lado, não há como desvencilhar o sucesso da luta por uma sociedade menos corrupta com aqueles direitos fundamentais que estão sendo negados aos excluídos. Pois então, qual seria o liame teórico a explicar a relação desses grupos tão diferentes de pessoas?
Jürgen Habermas, em seu ‘Sobre a Constituição da Europa’ diz que um dos componentes democráticos é a integração de uma solidariedade civil entre estranhos (HABERMAS, Jürgen in Sobre a Constituição da Europa, Editora Unesp). Falando sobre relações internacionais entre Estados soberanos, o professor alemão ensina que um dos componentes democráticos é a ”solidariedade entre cidadãos que já se encontram em condições de se responsabilizar mutuamente”.
Inobstante os interesses imediatos dos manifestantes de ontem, para além dos seus legítimos interesses de um país menos corrupto, que possa responder a um desenvolvimento político e econômico obstado pelo corso dos dirigentes, fato é que essas pessoas foram para as ruas também para a inclusão dos menos favorecidos e alijados dos reflexos de um país desenvolvido. Ora, ainda que não se pense em generosidade de nenhum dos manifestantes, o que ocorre é que mesmo os egoístas sabem que um país desenvolvido se faz com a contemplação do direito de todos, em busca de diminuir ao máximo a quantidade de depauperados, iletrados e famintos até para que se diminua a chance de sedição pela opressão não combatida.
Não passa despercebido por Habermas que a solidariedade civil pode ser estimulada pelas percepções das necessidades econômicas e políticas do país (pag. 83). Também é conclusão do referido professor que com a crise atual da Europa (e perfeitamente aplicável ao Brasil) é de se esperar que as necessidades econômicas e políticas estejam incentivando diretamente a solidariedade civil que culmina com os protestos vistos ontem. Aliás, essa solidariedade civil cabe mais em tempos de estabilidade, sem desigualdades sociais e com justiça distributiva, mas parece estar se mostrando no Brasil já em momentos de crise, como se a fundamentar sua conquista imediata para manutenção no futuro.
É papel do Direito Constitucional, tão cioso da teorização dos Direitos Humanos, Garantias Fundamentais, segurança jurídica e definidor de soberania popular e estatal, acompanhar e tentar explicar as movimentações que o país observa nos dias de hoje. Esse um dos papéis atuais do constitucionalista brasileiro.
Leonardo Grecco
Juiz de Direito no Estado de São Paulo. Especialista em Bioética pela USP e em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista de Magistratura. Professor de Direito em Santos.