Os danos punitivos no direito brasileiro e o caso do café do McDonald’s

Danos punitivos

Questão sempre polêmica no direito brasileiro diz respeito à necessidade de adoção, em nosso sistema, dos chamados danos punitivos (punitive damages).

Atualmente, uma das tentativas de adoção se dá no Projeto de Novo Código Comercial. O projeto trata dos danos punitivos em duas oportunidades, no artigo art. 400 (“O juiz poderá condenar o empresário ao pagamento de razoável indenização punitiva, como desestímulo ao descumprimento do dever de boa-fé”), e também no art. 532, que trata da fiança bancária, em seu §3.º (“O favorecido que requisitar indevidamente pagamento de garantia autônoma indenizará o devedor garantido por perdas e danos, que, em caso de dolo, compreenderá razoável indenização punitiva”).

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Foto: Tribunal de Justiça do Estado de Goiás

Trata-se, contudo, de tema que ainda carece de maior reflexão no país e que, em nosso sentir, seria sistematicamente mais bem disciplinado em outros diplomas normativos.

Nesse sentido, sua adoção seria melhor na própria teoria geral da responsabilidade civil, ou seja, no Código Civil, ou no microssistema de tutelas coletivas (formado pela Lei de Ação Popular, Lei de Ação Civil Pública, Mandado de Segurança Coletivo e Código de Defesa do Consumidor), que trata da responsabilidade civil por danos difusos e coletivos (compreendidos também os interesses individuais homogêneos), mas não num Código Comercial, voltado a regulamentar relações empresariais.

Isto porque, os danos punitivos ou devem valer para todas as situações em que a responsabilidade civil se faz presente (quando se fizer necessário coibir a reiteração do comportamento antijurídico) ou nas tutelas coletivas, onde se afigura muito mais adequado, pela expressão social do dano e de sua reiteração.

Ademais, sua adoção demanda sempre cautela, especialmente ante a tênue linha que separa o dano punitivo da conhecida indústria do dano moral. O Brasil tem conseguido lidar, em certa medida, de forma satisfatória com o problema da indústria do dano moral, especialmente em razão da atuação do Superior Tribunal de Justiça, salvo alguns casos pontuais, o que pode ser impactado justamente com a adoção do instituto dos danos punitivos, que, por isso, devem ser compatibilizados, em harmonia, com a vedação ao enriquecimento sem causa.

Por conta disso, um dos necessários debates a seu respeito diz respeito precisamente à titularidade da indenização dos danos punitivos. Se for para a vítima, para além da indenização ressarcitória e/ou compensatória percebida em razão da violação a direito seu, pode haver desrespeito à vedação ao enriquecimento sem causa e estímulo ao crescimento da indústria do dano moral (= indústria dos danos punitivos). Discussão semelhante já foi posta no Superior Tribunal de Justiça relativamente à titularidade das astreintes, se o Estado ou a parte, com vistas justamente a evitar ou arrefecer a indústria das astreintes.

Deste modo, uma adoção irrefletida e mal colocada do instituto no país poderia criar um novo problema, a indústria dos danos punitivos.

Nesse contexto, sua inserção no microssistema de tutelas coletivas (no CDC, p. ex.) talvez seja mais adequada. Em primeiro lugar, pois o dano punitivo só teria lugar quando a prática nociva for reiterada e potencialmente atingir número relevante de vítimas, daí a necessidade de puni-la de forma mais exemplar, a fim de desestimulá-la. Segundo, pois, no microssistema de tutelas coletivas, a indenização a título de danos punitivos poderia não ir para a vítima, já devidamente ressarcida (com a indenização ressarcitória e/ou compensatória), destinando-se o valor dos danos punitivos a Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, para ser utilizado em prol da coletividade, para reparar todos aqueles que foram vítimas da prática, para reconstituição dos bens lesados (LACP 13), ou para investir em melhorais sociais.

Com isso, ter-se-ia a convivência harmônica entre vedação ao enriquecimento sem causa e o instituto dos danos punitivos, de modo a desestimular a prática de certos atos, mas sem fomentar a indústria dos danos punitivos.

O caso do café do McDonald’s

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Créditos: Pixabay

Quando se aborda o tema dos danos punitivos ou indústria do dano moral, vem à discussão o célebre caso do café quente do McDonald’s, como um suposto mau exemplo do instituto da responsabilidade civil no direito norte-americano (caso Liebeck vs. McDonald’s Restaurants).

E, quase sempre, esse caso vem relatado de forma muito simplória, da seguinte maneira: uma senhora teria adquirido um café no drive-through do McDonald’s e, dirigindo e tentando bebê-lo ao mesmo tempo, derrubou-o acidentalmente em si mesma, queimando-se. Processou a empresa e teria ganhado uma indenização milionária (cerca de US$ 3 milhões). Às vezes, a depender de quem conta, acrescenta-se algum fundamento para a condenação, como, p. ex., que não haveria informação de que o café estava quente, e por isso o McDonald’s teria sido condenado. Ao final, conclui-se pela irracionalidade do sistema norte-americano (na hipótese, júri civil) e pelo absurdo da condenação, pois todo mundo deveria saber que o café é uma bebida servida quente.

Mas será que foi assim mesmo? Confesso que também pensava dessa maneira, até que, certa vez, numa discussão com uma professora estadunidense de responsabilidade civil, esse caso, evidentemente, veio à tona, e, enfim, tomei maior contato com a verdadeira realidade dos fatos. Embora não seja possível relatá-los todos nessa coluna, vamos a eles.

A realidade dos fatos

Tratava-se de uma senhora de 79 anos, que não estava dirigindo o carro, e, sim, sentada no banco do passageiro. Após adquirir o café, o condutor estacionou para que a senhora pudesse pôr açúcar nele. Ela colocou o café entre as pernas para remover a tampa plástica, quando acidentalmente o copo virou, queimando-a muito severamente. Uma perícia judicial concluiu, através das queimaduras, que a temperatura estimada do café era entre 82 a 87 graus Celsius. A essa temperatura, o café pode produzir queimaduras de terceiro grau em apenas dois a três segundos. E, de fato, ela sofreu queimaduras de terceiro grau, inclusive na região genital, e precisou permanecer oito dias internada, ficando com sequelas permanentes.

Inicialmente, a senhora, que era uma caixa de supermercados aposentada, procurou o McDonald’s para que este pagasse apenas as despesas hospitalares, na ordem de US$ 11 mil. O McDonald’s recusou, oferecendo US$800 como proposta de acordo. A senhora até então jamais havia ajuizado uma ação e disse em juízo que não teria processado, se não fosse a recusa em ressarcir as despesas hospitalares e a indecorosa proposta de US$800.

Em juízo, foi provado que, entre 1982 a 1992 (o processo é de 1993), tinha havido mais de 700 casos de pessoas queimadas pelo café do McDonald’s, alguns também com queimaduras de terceiro grau. Apesar disso, o McDonald’s se recusava a mudar sua política e servir o café a uma temperatura mais baixa. Um gerente do McDonald’s, em depoimento, confirmou que a empresa sabia dos riscos, sabia dos casos anteriores e sabia que, àquela temperatura, se fosse bebido, o café poderia provocar queimaduras de terceiro grau na boca e na garganta, mas que essa era a política corporativa para manter o sabor do café.

Assim, acabaram sendo decisivos para os jurados: a insensibilidade da empresa para com a senhora, o fato de ter conhecimento dos casos anteriores e o fato de não ter demonstrado preocupação com a segurança dos consumidores, apenas com o sabor de seu café. Além disso, muitos sabiam – como de fato todos nós o sabemos – que o café é uma bebida servida quente, mas poucos sabiam que era tão quente a ponto de produzir queimaduras de terceiro grau.

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Créditos: Pixabay

O McDonald’s foi condenado pelo júri a pagar US$200 mil de indenização (sendo que a senhora teria direito a US$160 mil, pois foi considerado que ela também teve culpa), além de US$2,7 milhões a título de danos punitivos, o que correspondia a dois dias do lucro que o McDonald’s obtia na época apenas com a venda de café nos EUA, como uma forma de transmitir uma mensagem à empresa para mudar sua política e se preocupar mais com a segurança dos consumidores. No tribunal, os danos punitivos foram reduzidos a US$480 mil, sendo que, após isso, foi celebrado um acordo entre as partes, cujos valores jamais vieram a público, em razão de cláusula de confidencialidade.

Posteriormente a esse caso, o fato é que o McDonald’s mudou efetivamente sua política quanto ao café, especialmente no que toca à melhor informação aos consumidores.

Esses são, em suma, os fatos. Deixo a cada um que faça sua própria análise, mas, ao contrário do quanto vulgarmente propalado, a mim parece um caso de boa aplicação do direito e do instituto dos danos punitivos.

 

 

Thiago Rodovalho é Articulista do Estado de Direito – Professor-Doutor da PUC|Campinas. Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP, com Pós-Doutorado no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht em Hamburgo, Alemanha. Membro do IASP, do IDP, do IBDP, do CEAPRO e do IBDFAM. Autor de diversas publicações no Brasil e no exterior. Advogado em SP.

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  1. Beatriz

    Olá! O artigo é incrível, agradeço muito a análise. Gostaria de saber, no entanto, se existe algum caso jurisprudencial brasileiro que se assemelhe ao caso descrito do Mcdonalds, onde tenham sido aplicados (ou requeridos) os punitive damages. Obrigada!

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Comentários

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