Artigo veiculado na 47ª edição do Jornal Estado de Direito
Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
José Saramago.
É interessante perceber como se dá o processo do conhecimento para cada um. É comum ouvirmos das pessoas muitas frases prontas sobre os mais diversos assuntos. Estas conclusões individuais renderiam um livro cujo título poderia ser: “Minhas opiniões sobre o que nunca vi”. Todos temos um pouco disso. Palavras, jeitos e modos de fazer que tiramos de lugar nenhum. Pacotes prontos que aplicamos para nós e para os que nos cercam. Uma espécie de herança cultural que opera no modo mecânico.
Lembro de quando comecei uma caminhada pelo interior dos presídios, há mais de dezessete anos. Nesses lugares existem muitas regras. A maior parte delas primam pela irracionalidade, mas, mesmo assim, continuam sendo aplicadas. Gestamos uma espécie de projeto para que se opere a vingança que não conseguiríamos realizar pessoalmente, o que arranharia nosso verniz de homens civilizados.
Escrevemos muitos livros sobre processo civilizatório, iluminismo, avanços na execução das penas e outros conceitos que não aplicamos na prática. Fazemos isso a uma distância segura, pois, do contrário, seria impossível justificarmos tamanha contradição entre o que supomos e o real.
Mudanças são dificultadas pelos altos níveis de intolerância quando o tema em debate é o processo punitivo. Tripulamos um barco que afunda rapidamente, e os passageiros estão se afogando no próprio ódio.
É possível medir o tamanho da insânia pelos resultados obtidos. Nosso “projeto de ressocialização” parece funcionar ao contrário, trazendo quase todos de volta para a prisão pela via da reincidência.
Podemos mudar o cenário, mas para isso precisamos ver o que ainda não vimos, o que parece fácil, mas não é.
A população prisional é bastante diversificada, mas grande parte dela é composta por estes seres “invisíveis”. Nos presídios há muitos daqueles que encontramos em qualquer lugar. Moradores de rua, gente sem estrutura familiar, dependentes químicos, etc. Passamos por essas pessoas todos os dias, mas não as vemos. Elas estão ali, mas nossa indiferença, aliada ao fato de que as cenas parecem ser naturais, contribuem para nossa cegueira. Quando um desses seres comete um delito, por breves momentos ele se torna visível para nós. Mas é por pouco tempo. Nossa atenção é meramente momentânea e se mantém apenas até que venha a condenação.
A privação de liberdade representa, hoje, a sequência da interação cego-invisível, pois as práticas adotadas no sistema carcerário em tudo contribuem para isto.
Os presídios – e o que neles ocorre -, submetem-se a uma cultura que tudo cala e tudo oculta (ou pior, tudo distorce). O que acontece no interior das galerias identifica uma espécie de segredo que deve ser mantido fora do alcance dos responsáveis pelo processo civilizatório. Mas nisso nada há de novo. Afinal, só o que pode ser visto pode ser modificado, e talvez nossa intenção seja a de manter o que temos.
Os equívocos que levam os homens à prisão são cometidos na crença de que o ilícito é um modo de vida razoável; que tudo vai dar certo; que a vida no crime terá um bom resultado final. Quem delinque não computa coisas como inclusão da própria família no quotidiano da cadeia, submissão ao ambiente insalubre, doenças, mortes e tudo o mais.
O problema é que estamos imitando aquele a quem queremos corrigir. Ao basearmos nossa metodologia no ódio e na intolerância, não a relacionamos com os péssimos resultados obtidos. Não vemos. Achamos que é só azar. Somos cegos mirando os invisíveis.
Entretanto, a violência das ruas está estimulando uma busca. Queremos saber de onde vem o que estamos colhendo.
A chance de mudança passa por um novo olhar. Aquele que realmente quer ver, que se aproxima, que considera o valor do outro e tenta entender o contexto das suas dificuldades. Só aí será possível alterar o quadro. Mudar as prisões passa por isto, pela proximidade que ajuda a visão.
Pode ser mais simples do que pensamos. Pode ser só isto: ver e reparar.
Gilmar Bortolotto