Omissões inconstitucionais e atuação judicial

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Coluna Reflexões sobre Direito Público e Democracia, por Felipe Bizinoto Soares, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

Uma das formas que se pode classificar os atos jurídicos lato sensu é como sendo comissivos, que exigem do agente uma ação no plano material, ou omissivos, que exigem do agente uma abstenção, uma não realização de algo. É sob a óptica de tal classificação que este artigo parte para tratar da chamada omissão inconstitucional, isto é, uma conduta imputável ao Estado, que deixa de fazer algo, algo este que, na verdade, deveria ser feito por força do texto constitucional (PÁDUA, 2020, p. 11 e ss.).

A relevância das omissões inconstitucionais está no fato de que o Poder Público contemporâneo tem nas suas três funções, executar, administrar e legislar, um pouco de poder legislativo, eis que as estruturas administrativas de cada ‘’Poder’’ deve regrar a vida interna por meio, p. ex., de códigos internos, resoluções, portarias, decretos, normativas, instruções etc. (PÁDUA, 2020, p. 13). Ocorre que dentro desse universo legiferante há determinadas previsões que não decorrem de qualquer Lei, e sim da Constituição.

Créditos: PixaBay

Alguns exemplos são importantes para situar o tema deste texto. Na Carta da Primavera consta que ‘’é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias’’ (grifo feito no art. 5º, VI). Também há que ‘’o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor’’ (grifo feito no art. 5º, XXXII). Um pouco mais adiante, a Carta Magna enuncia que ‘’adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei’’ (grifo feito no art. 7º, XXIII).

Todas as previsões exemplificadas mostram que o Pacto Fundamental brasileiro expressamente prevê que um ato infraconstitucional (especialmente as leis stricto sensu) conformarão os conteúdos constitucionais. Com algumas adaptações causadas pela aplicabilidade imediata de todas as normas constitucionais, são espécies normativas que José Afonso da Silva (1982, p. 91 e ss.) denomina normas de eficácia contida ou de eficácia limitada, as quais têm sua aplicabilidade passível de alteração por ato infraconstitucional. É dentro do campo das normas cujo texto constitucional confere maior largueza para atuação do ato infralegal.

Mas é conhecida a ideia de que o Direito é carregado pelo dinamismo social. Há diplomas ou outras espécies de fontes jurídicas, ou até normas (= resultado da interpretação das fontes jurídicas) que deixam de atender aos anseios sociais. E mais: há momentos nos quais o super Estado, já inflado por suas inúmeras atribuições constitucionais, deixa de cumprir com seu dever de legislar. Aqui que se destaca a omissão legislativa estatal, que pode ou não ser inconstitucional, desde que, conforme mencionado, esteja previsto o dever-poder (= poder funcional) específico de legislar na Constituição (PÁDUA, 2020).

Trata-se a omissão inconstitucional do incumprimento do poder funcional constitucionalmente por todo e qualquer órgão com atribuição constitucional de edição normativa regulamentar que viabilize o exercício das posições constitucionalmente insculpidas (PÁDUA, 2020, p. 13).

É sob o enfoque da omissão que o mandado de injunção é meio constitucionalmente previsto que pode ser impetrado pela falta total ou parcial de norma regulamentadora que torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, cf. art. 2º da lei n. 13.300/2016.

Na mesma entoada, com inspiração no sistema português, a Constituição prevê um instrumento de fiscalização principal de constitucionalidade, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, cujo texto federativo enuncia que ‘’Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias’’ (art. 103, parág. 2º).

Viabiliza-se tanto a busca individual e concreta quanto a coletivizada e abstrata o suprimento, mediante aplicação da teoria concretista, das omissões inconstitucionais. É com um Estado assoberbado e com os impulsos sociais que o mandado de injunção e a ADO ganharão maiores destaques. Um deles é a do MI n. 4.733, que foi julgado em conjunto com a ADO n. 26, e que levou o STF a concluir pela procedência do pleito deduzido, o suprimento da lacuna legislativa mediante aplicação da lei do racismo (lei n. 7.716/1989) aos casos de homofobia.

Aqui vai um futurologismo que parte do óbvio: a sociedade é dinâmica e o Estado nem tanto, tal contraste ganha mais linhas intensas diante de uma Constituição brasileira extremamente analítica, resultando no fato de que respostas estatais legislativas sejam total ou parcialmente insatisfatórias para os fatos sociais hipercomplexos, o que impulsionará e muito o manejo dos instrumentos constitucionais voltados a suprir as ditas omissões inconstitucionais.

Será, talvez, um momento futuro no qual os juízes efetivamente decidirão para além do caso, legislando sem qualquer tipo de discurso do caso, eis que a própria Constituição prevê meios de suprimento judicial das inanições do próprio Judiciário e das demais funções estatais. Talvez tais instrumentos mostrem um real ativismo por meio de um Estado-Juiz Legislador (positivo), eis que o texto do Dever-Ser prevê a tripartição e independência funcional, todavia a realidade brasileira clama por efetividade de diversas posições jurídicas constitucionais.

É o dilema da omissão inconstitucional que elevará (e não em um sentido positivo) o Estado-Juiz, especialmente o Supremo Tribunal Federal, a um patamar de grande gestor, remetendo ao Governo dos Juízes, nos EUA das décadas de 1910-1920, muito criticado por um Chief Justice, Oliver Wendell Holmes Jr.

Quiçá a história está para se repetir, mas não por causa de um mesmo contexto social (eis que o discurso da efetividade no Brasil difere dos motivos políticos e econômicos estadunidenses), e sim no sentido de haver na América um país que tenha a toga como figura presidencial de fato.

 

Referências.

 PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. Omissão normativa e mandado de injunção. RECONTO. Maringá, v. 3, n. 2, Jul.-Dez./ 2020. Disponível em: http://revistareconto.com.br/index.php/Reconto/article/view/82/109.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982.

 

* Felipe Bizinoto Soares de Pádua é Articulista do Jornal Estado de Direito, Advogado, Pós-graduado em Direito Constitucional Material e Processual, Direito Registral e Notarial, Direito Ambiental Material e Processual pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É monitor voluntário nas disciplinas Direito Constitucional I e Prática Constitucional na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É membro do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Justiça Constitucional: STF, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 

 

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