O ódio fundado na força em detrimento do amor fundado na razão

 “HETEROFOBIA” x “HOMOFOBIA”

17-05-2014.165454_homofobiaO ÓBVIO…

Poderíamos encerrar este texto com o óbvio ululante: não existe “heterofobia” (ponto).

A razão disso é o simples fato de não haver nenhum poder estruturado e/ou estruturante (no Estado ou fora dele), que coloque os heterossexuais como grupo subjugado ou subvalorizado, por sua condição. Não há nenhuma justificativa social, ou jurídica, que sustente a existência de um conceito de “heterofobia”, menos ainda para uma norma penal. Entretanto, esse conceito foi “criado”, como uma falácia política voltada a desmobilizar pautas históricas dos LGBTs no combate à discriminação – gerando consequências concretas contra estes grupos. Essa falácia é sustentada por grupos políticos preocupados em desfigurar a realidade, inventando discursivamente conceitos como: “heterofobia”, “ditadura gay”, “ideologia de gênero”, “preconceito inverso” etc. Tendo como escopo o ataque sistemático e organizado aos direitos dos LGBTs, e de outras minorias, visto que esses conceitos são criados propositalmente, para direcionar ódios e confundir a sociedade.

DESTRINCHANDO O ÓBVIO…

O raciocínio utilizado para a criação desses conceitos “quiméricos” é desprovido de fundamento real, baseando-se apenas em percepções superficiais sobre a discriminação e em joguetes de palavras. Reduzindo, com essas ferramentas, debates complexos em visões simplistas e polarizadas, confundindo causas e efeitos, e obscurecendo as construções históricas, sociais e culturais envolvidas.

Para se sair desse imbróglio é necessária uma análise mais profunda. A questão central para descartarmos a “heterofobia” como conceito possível é:

“em que consistem as discriminações?”

A discriminação, enquanto conceito social e juridicamente relevante, tem raízes profundas na sociedade, não se limitando aos atos discriminatórios em si, sendo esses a ponta de um iceberg. Para além de sua manifestação em atos isolados, a discriminação é a sistemática perseguição, com fundamento na desigualdade e ódio, contra grupos de pessoas: por suas condições, classes, características, culturas, religiões etc. Assim, o ódio se manifesta multifacetadamente, em diversos tipos de discriminação, tendo em comum a vulnerabilidade dos grupos perseguidos e a força dos perseguidores, ou seja: possibilidade de ofensa aos grupos perseguidos.

Nesse caso a homofobia (LGBTfobia) é a ‘discriminação de pessoas LGBTs em decorrência de suas condições, características, culturas etc – justamente os elementos que compõe sua subjetividade’. Desse conceito, com um jogo de palavras, criaram a “heterofobia”, que seria ‘a discriminação de pessoas heterossexuais em decorrência de suas condições, características, culturas – justamente os elementos que compõe sua subjetividade’. Mudando apenas o grupo “discriminado”.

Isso ocorre porque a fórmula da discriminação é genérica, pode ser aplicada a todo e qualquer substantivo e/ou adjetivo – “homens”, “bonitos”, “feios” etc. Entretanto, não é a todos que ela se aplica concretamente, visto que, como apontado, a discriminação se manifesta em sociedade, definida pelo poder estruturado e estruturante, contra grupos definidos. A discriminação é construída sobre a história das opressões e violações de direitos, não podendo ser entendida isoladamente, ou por atos ofensivos específicos.

Por isso, ofender alguém por ser “branco”, no Brasil, é uma ilegalidade, sem dúvidas, todavia discriminar alguém por ser “preto” é diferente. No último caso mobiliza-se uma disputa de “valores e verdades” sobre superioridade racial, calcada num processo concreto de discriminação, para o qual essas agressões isoladas servem como atos garantidores e legitimadores da dominação. Se alimenta com o ato discriminatório uma cultura de violações de direitos e opressões a esses grupos discriminados – cultura essa impregnada nas estruturas sociais, trazendo legitimidade atual a um discurso de ódio e violência. Basta um olhar desatento para a História do Brasil que veremos um arcabouço de argumentos e estruturas para a discriminação do negro e não do branco. O mesmo raciocínio aplica à diversidade sexual como um todo, sempre subjugada.

A discriminação surge então quando há estruturas sociais sólidas de manutenção de desigualdades que se alimentam de atos discriminatórios, isolados ou coletivos, seja no plano discursivo (valorização negativa da pessoa ou grupo) ou no concreto (humilhação social, segregação, extermínio etc).

Livres-e-Iguais-–-Campanha-mundial-da-ONU-vai-promover-igualdade-LGBTCONTORNOS JURÍDICOS DA DISCRIMINAÇÃO CONTRA LGBTs

Dessa forma os bens jurídicos tutelados num crime de discriminação não são apenas os direitos individuais do sujeito lesado, mas a própria nação/ humanidade, ferindo a igualdade e a dignidade da pessoa humana.

A criminalização da discriminação tem como fundamento a coibição de condutas prováveis em nossa sociedade, diante do cenário histórico-social, mas repudiadas absolutamente pela nova ordem constitucional. Não há sentido na criminalização de condutas improváveis, como a perseguição a heterossexuais ou aos brancos. Isso ocorre até mesmo pela característica do Direito Penal, de última razão possível, reservado aos delitos de maior ofensividade. Há, inclusive, normais penais gerais para coibir a violência contra “brancos e héteros”, mas não há justificativa de uma tipificação penal específica, não no atual contexto social, histórico e cultural.

A discriminação funda diversos discursos e práticas desde os separatistas até os genocidas, colocando em risco o projeto de uma sociedade livre, igual, justa e solidária – o projeto principiológico e valorativo da Constituição Cidadã de 1988. No âmbito internacional, a discriminação é o fundamento de diversos processos massificados de violações de direitos humanos, como a escravidão e o nazismo –  tendo tratamento especial pela ONU. São condutas que colocam em risco toda a coletividade e as gerações futuras, acirrando desigualdades e desumanizando seres humanos.

Pode-se entender a vedação à discriminação como uma forma de limite aos discursos e práticas produzidos em ordens anteriores, e mesmo na recente, que colidam frontalmente com valores mais sensíveis (dignidade, igualdade, vida). Dessa forma, a Constituição, fundada na dignidade da pessoa humana, ao propor a igualdade em seu artigo 5º, não se limitou a declará-la, colocou como objetivos a busca da igualdade material, vedou todas as formas de discriminação e proibiu expressamente, por exemplo, o racismo. Há uma lógica por detrás, que é a de impedir o fortalecimento dos argumentos discriminatórios que coloquem em risco o Estado Democrático de Direito e, em última instância, a humanidade.

Dentro dessa sistemática, sem largas digressões históricas, os LGBTs compões esse rol de grupos discriminados e oprimidos, o que pode ser evidenciado pela negativa sistemática de direitos, até mesmo de primeira geração, como o casamento. Ou mesmo em cenário global, por uma moral dominante, pretensamente religiosa, ofensiva a laicidade dos estados, que permanece condenando e matando os LGBTs pelo mundo, com reflexos claros no Brasil, ainda que as punições aos homossexuais aqui não sejam efetivadas diretamente pelo Estado, mas contam com seu consentimento omissivo.

Por essa razão, uma proposta de lei que criminalize a homofobia (LGBTfobia) é constitucionalmente e socialmente justificável, enquanto um projeto de lei que criminalize a “heterofobia”, além de não justificável, aprofunda e agrava as desigualdades ao reconhecer que o Estado se presta a “proteger” até mesmo direitos nunca ameaçados por serem de grupos dominantes, em detrimento de direitos sempre ameaçados de grupos dominados. A criminalização da “heterofobia” não protege ninguém, pois esse tipo de discriminação sequer existe em nossa sociedade, mas atesta o descaso e escárnio do Estado às lutas históricas das pessoas LGBTs que, de fato, sempre foram oprimidas, violentadas, exterminadas e sistematicamente tiveram/têm seus direitos suprimidos e negados.

A omissão do Estado, ou sua ação em sentido errôneo, gera efeitos concretos perversos para as minorias (que não são necessariamente numéricas, mas sim em poder). O Congresso Nacional, ao sustentar legitima uma postura de criminalização da “heterofobia” e ilegítima a criminalização da homofobia (LGBTfobia), suja a República de sangue, tomando partido pela intolerância. Fomentando o ódio como força social legítima, agravando ações como a violência policial e a de grupos radicais da sociedade contra os LGBTs, tornando todas as ações decorrentes, se não desejáveis pelo próprio Estado, perante ele justificáveis.

É preciso que o Estado tome a Constituição de 1988 a sério e se coloque ao lado das minorias, no real objetivo de atender às demandas constitucionais, sob o risco de se converter paulatinamente em um governo ilegítimo, tal como regimes totalitários se instauraram à revelia de constituições protetivas de direitos e garantias fundamentais, perpetrando graves violações aos direitos humanos. Não é possível que se admita a ação ilegal de parlamentares que usam suas prerrogativas constitucionais contra a Constituição e contra o Povo.

3895792-eduardo-cunha
O PROJETO DO DEPUTADO EDUARDO CUNHA

Nesse sentido resta pouco a dizer sobre o Projeto de Lei de “Combate à Heterofobia” (PL 7382/2010), de iniciativa do Dep. Eduardo Cunha, que tem, assim como outras tantas ações desse parlamentar, uma essência profundamente inconstitucional. Os objetivos expressos nesse Projeto, em linhas gerais, são: a) inserir nas políticas antidiscriminação explicitamente a “discriminação contra heterossexuais”; b) Criminalizar a proibição de ingresso de heterossexuais em qualquer ambiente ou estabelecimento; c) Criminalizar a negativa a heterossexuais de hospedagem em hotéis, motéis, pensões ou similares, d) Criminalizar a restrição da expressão de afetividade heterossexual.

O que fica evidente da leitura dos itens do Projeto “de Criminalização da Heterofobia” é que se trata de uma matéria com uma relevância enorme!… talvez só equiparável à Lei que criou um Aeroporto para Alienígenas na Serra do Roncador – com a diferença que alienígenas podem eventualmente existir, mas “heterofobia”… certamente não.

Em última instância, tamanha a carência de realidade de tal Projeto, que ele ganha contornos tragicômicos. Pois, quais seriam esses opressores “espaços gays”? Será que nossos parlamentares estão preocupados com os direitos das pessoas heterossexuais de irem em baladas gays? associações gays? bares gays? cinemas gays? cruzeiros gays? saunas gays!?…

O que torna essa iniciativa parlamentar, honestamente, exótica! (ainda mais para uma norma penal). Até porque esses “espaços gays” são chamados “gays”, não por impedirem a entrada de “héteros”, mas porque geralmente são frequentados por “pessoas que sentem atração pelo mesmo sexo”, o que torna o ambiente bem pouco atrativo para quem “busca uma pessoa do outro sexo”… vai entender!

Entrei na sauna gay pela Lei Cunha, mas registrei logo na entrada que sou hétero!

Isso soa como uma frase razoável? Talvez! Para quem fez o Projeto de Lei deve ter sentido… cada parlamentar conhece seus anseios e de seu eleitorado.

Até porque, se não forem esses, os ditos “espaços gays”, que o nobre deputado receia que os héteros não possam frequentar livremente… sinto que não saberia dizer a que ele se refere no Projeto. Por acaso existe: um poder legislativo gay?, um poder judiciário gay?, um poder executivo gay? Ou, quem sabe: hospitais gays?, presídios gays?, delegacias gays?, polícias gays?, escolas gays…?

Não, não existem esses “espaços gays”, ao passo que existem todas essas “instituições”: homofóbicas, lesbofóbicas, bifóbicas, transfóbicas, machistas e racistas! O Projeto por si só cai no ridículo, se levado a sério, justamente pela impossibilidade gritante de uma “heterofobia” institucionalizada, visto que as instituições com maior poder na sociedade se mostram heteronormativas e homofóbicas (LGBTfóbicas).

lesbian-pride-flag-holding-hands-afp-2611_0_0_0_0_0_0PELO TRIBUNAL DA HISTÓRIA ELES NÃO PASSARÃO

Os espaços genuinamente LGBTs na sociedade foram construídos e conquistados contra as forças estatais, civis, militares. Apartados do poder e condenados à marginalidade, tidos por: imorais, ilegais, pecaminosos e doentes. Isolados e recriminados, os LGBTs criaram seus espaços privados e lutam por seu espaço público. Construíram fóruns de sobrevivência, socialização e luta política. Espaços profundamente inclusivos, que agora uns e outros querem colocar como espaços “excludentes, segregacionistas e heterofóbicos”, visando o retrocesso dos poucos avanços e conquistas LGBTs, buscando o reforço da estigmatização e perseguição destes grupos e a destruição dos espaços LGBTs de debate e socialização.

Essas forças políticas fundamentalistas sobrevivem contra o povo, se fortalecendo na irracionalidade e histeria social. Equiparar os movimentos LGBTs – que reagem ao ódio pelo direito de amar – aos movimentos LGBTfóbicos, é culpabilizar a vítima pelo criminoso. É punir as pessoas que resistem e lutam por seus direitos, pelo crime – inafiançável – de terem coragem frente aos seus opressores. O crime de serem felizes quando a ordem é a tristeza; de amarem quando a ordem é o ódio. O crime de existirem, contra a vontade dos que ainda se julgam donos de nosso País e de seus concidadãos. É querer impor o ódio fundado na força em detrimento do amor fundado na razão!

“…E quem garante que a História

É carroça abandonada

Numa beira de estrada

Ou numa estação inglória

A História é um carro alegre

Cheio de um povo contente

Que atropela indiferente

Todo aquele que a negue…”

(Pablo Milanes e Chico Buarque de Hollanda)

servletrecuperafotoVictor Henrique Grampa é Articulista do Estado de Direito – Mestrando em Direito Político e Econômico e graduado em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado (OAB/SP 348277), Conselheiro Nacional do ProUni (CONAP/MEC), membro efetivo da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP e da Comissão de Diversidade Sexual e Combate à Homofobia. Pesquisador em Direito Político e Econômico. Diretor de Direitos Humanos da União Nacional LGBT (UNA-LGBT), Advogado, membro da Comissão de Direitos Humanos e da Comissão de Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da OAB/SP.

Comente

Comentários

  • (will not be published)

Comente e compartilhe