A multidão de surtados
A proibição dos serviços do Uber aprovada pela Câmara Municipal (ZH 26/7) é necessária frente a invasão do serviço, mas não se trata apenas de uma luta pelo transporte. Trata-se de uma luta pelo modo de vida na cidade que oculta, no caso da empresa, uma guerra particular.
Tudo começou quando quando um motorista bem arrumado e seu carro ficou amassado por atropelar ciclistas numa sexta-feira e gerou uma imagem que correu o mundo e provocou uma série de reflexões e novas ações. Organizações não governamentais como a Rodas da Paz protestou no Congresso Nacional contra a atitude de Ricardo José Reis e num ato foi feito o enterro simbólico dos códigos de trânsito e penal brasileiro enquanto que, na internet, ciclistas gaúchos recebiam ameaças anônimas de motoristas simpatizantes do funcionário público. Roberto DaMatta resumiu a questão:
“o trânsito é uma multidão de surtados”.
Para o autor de “Fé em Deus e Pé na Tábua ou como e porquê o transito enlouquece o Brasil”, o problema é que o brasileiro não aceita a igualdade. O trânsito obriga você a esperar sua vez.
Para DaMatta, ao contrário, no trânsito o motorista se sente um aristocrata e o antrópologo enumera uma série de características que fazem com que afirme que o problema está nas pessoas: nossa formação, individualismo, cultura, etc. Uma outra interpretação, contudo, aponta para seguinte direção e diz: o problema está na coisa.
Para André Gorz, em “Ecológica” os carros são como os castelos, bens de luxo inventados para o prazer de uma minoria. Se todos tem, todos se frustram com eles, ao contrário das bicicletas, feitas para todos. Por esta razão o carro é um bem anti-social, porque rouba o espaço dos pedestres e ciclistas, é desumanizante, pois a posse da velocidade reforça o nosso egoísmo e induz a violência.
A velocidade
Para Paul Virilio, a velocidade é o centro da dromologia, a ciência da velocidade (dromos= corrida). Quando foi inventado, o carro proporcionou a experiência inédita de andar mais rápido que diligências, carruagens, trens e bicicletas. Antes dele, a velocidade era democrática: todos andavam na mesma velocidade.
Depois do carro, havia uma velocidade de deslocamento para a elite e outra para o povo. Aparentemente, o carro dá poderes ilimitados ao seu dono, mas o que faz de fato é torná-lo dependente de mecanismos de manutenção dos especialistas, que cobram caro por seus serviços. Enquanto que o ciclista tem relação de possuidor de sua bicicleta, o motorista é consumidor. Vitória do Capital, que cria dependência sob o véu de autonomia. É aí que surge o Uber.
Ao democratizar-se o privilégio, caímos numa armadilha. Queríamos velocidade privilegiada e voltamos a andar na velocidade média das carruagens e dos ciclistas. Diz Gorz: “enquanto houver cidades, o problema não terá solução”, referindo-se ao fato de que não adianta quantas estradas sejam construídas que sempre haverá mais e mais carros para nelas trafegar.
Estudiosos dizem que gastamos uma hora de trabalho para andar seis quilômetros, o mesmo que faríamos a pé. E quanto mais carros rápidos fazemos, mais tempo perdemos para nos deslocar. Nunca foi a insuficiência de táxis o problema da capital, mas o modo como resolvemos o problema da circulação.
Para Gorz, o carro mata duas vezes. Mata primeiro a cidade, tornando-a insuportável. Mata depois a si mesmo, negando sua essência, a velocidade. Mas o que Gorz não imaginou, é que mata também um pouco de nós mesmos, basta ver as cenas diárias de violência banal no trânsito.
“O carro tornou a cidade inabitável” diz Gorz, e por isso sentimos a cidade como um inferno. O que resta da finalidade original do carro quando, em termos de velocidade, uma bicicleta pode fazer igual?
DaMatta e Gorz estão certos: o problema não é o transporte, mas o tipo de cidade e vida que desejamos ter. Precisamos renunciar ao carro, transformar a paisagem urbana, fazer com que as pessoas não precisem mais de transporte e que tenham prazer em ir de bicicleta ou a pé para o trabalho.
Deve ser agenda dos políticos e urbanistas o problema de como fazer com que bairros possam se transformar no microcosmo de nossa vida. Se o problema do transporte está ligado ao problema da cidade, da divisão do trabalho e da compartimentalização da vida, faz sentido a resposta de Marcuse sobre o que fazer depois da Revolução. Ele disse:
“Nós iremos destruir as cidades e reconstruir novas. Isso nos ocupará por um tempo”.
A proibição do Uber
Por isso a decisão de proibição dos serviços do Uber aprovada pela Câmara Municipal (ZH 26/7) está correta. Precisamos de tempo para refletir sobre os efeitos reais que o serviço provoca porque é preciso que se diga que não se trata apenas de uma luta pelo transporte. É uma luta pelo tipo de cidade que queremos, do papel do transporte individual numa cidade que não pára de crescer. Mais: que há discussões de grande importância que envolvem o serviço e que estão silenciadas.
Exemplo: o Uber não fala de que seu serviço envolve, por exemplo, uma luta por informação. Por trás do dispositivo, assinala o pesquisador bielorrusso Evgeny Morozov, esconde-se uma disputa pelos dados produzidos pelo aplicativo. Em Boston, a Prefeitura recebeu a proposta de acesso ao tesouro da empresa, os dados anônimos referentes a itinerários, com o objetivo de reduzir engarrafamentos e melhorar a organização urbana.
Ora, se start-ups como o Uber negociam seus dados com urbanistas e municipalidades temos um problema. O sucesso do Uber nunca foi pelo o serviço de táxis que oferece, mas pelo modo como controla a informação: nossos smartphones se encarregam de fornece-las e debitar o custo em nossa conta corrente.
Diz Morozov:
“Quando pagamos com o telefone celular, produzimos um rastro que os publicitários e outras empresas podem explorar”.
A quem realmente pertencem os dados de transporte na cidade? Talvez preferíssemos que fossem privados os nossos dados que estabelecem ligações independentes de nossa vontade.
Nova Iorque e Chicago reagiram ao Uber e lançaram aplicativos capazes de enviar táxis com a eficiência do Uber, no mesmo caminho já seguido pelo Easy Táxi. Não se trata de proibir o serviço, mas regularizá-lo, como propõe a Lei. Mas ainda persiste o problema de impedir que a informação dos itinerários se torne mais uma mercadoria cara que as prefeituras tenham de comprar.
E se houvesse outro aplicativo que dissesse quais as possibilidades de transporte que você dispõe além do Uber? Bicicletas na esquina, o horário do próximo micro-ônibus ou transporte coletivo, como é em Helsinki, onde a start-up Ajelo criou o Kutsuplus, cruzando os dados do Uber com os do transporte público, não seria uma alternativa mais democrática?
A solução do transporte urbano
O canto de sereia do Uber é a imagem de que ele é o melhor modo de solucionar o problema do transporte urbano e não é. Precisamos é de mais ciclovias, calçadas e ônibus melhores. O Uber não irá resolver os problemas de transporte, e sim o Estado. Veículos individuais motorizados não são o futuro do transporte, o futuro são mais politicas públicas. E o futuro também é … voltar a caminhar.
Sim caminhar, porquê não? O filósofo Karl Gottlob Schelle, em “A arte de passear”, dizia que viver continuamente em atmosferas confinadas amolece o espírito e enfraquece o bom senso. Não causa a morte, mas é um
a condição indireta.
Observando o cotidiano da classe média em Porto Alegre, como a de qualquer outro lugar, alguma coisa parecida acontece. Vivemos marcados por espaços fechados, da casa para o trabalho de carro ou de taxi e nas horas de lazer, os shoppings – o que sua expansão só fará o quadro piorar. Mas o que realmente diferencia a vida numa cidade é o uso que fazem seus cidadãos do espaço público.
Será que o portoalegrense realmente frequenta os espaços públicos de sua cidade? É que queremos ser cidadãos mas nos comportamos como consumidores na cidade. Se ficamos em espaços restritos quase todo o tempo, podemos dizer que temos vida urbana saudável? O que o debate sobre o serviço do Uber contribui, enquanto meio de transporte, para uma cidade melhor?
A cidade de pedra
A lógica metropolitana tem um lado perverso. Em nossas periferias, bairros inteiros estão se convertendo em territórios proibidos. Novos territórios de povoamento surgem nos conjuntos habitacionais populares financiados pelo Estado que, à maneira das colônias do passado, levam para zonas urbanas distantes uma população pobre vista como massa. O espetáculo da pobreza no centro da capital amplia-se para mostrar a infrahumanidade (Virilio) portoalegrense. Recordemos que a Prefeitura criou uma “Secretaria dos Direitos Animais” criticada justamente porque para muitos eram os seres humanos que estavam em situação de risco.
Nossa cidade é um campo de batalha. Basta olhar a geografia da cidade. Você vai de norte a sul e o quê vê na paisagem? Inúmeros novos condomínios surgindo a cada momento, lugares isolados, comunidades fechadas, mundos separados dentro da cidade. A cidade cresce por separação, esses novos enclaves são as pequenas fortalezas da elite, outra forma da desintegração de nossa vida comunitária.
As pessoas demandam por esta razão cada vez mais transporte e o Uber sugere que é a solução frente a uma frota de táxis que deixa a desejar.Mas a verdade é que precisamos, para renovar transporte da cidade, de uma alternativa que não seja o transporte individual de passageiros, estratégia oposta ao desenvolvimento, baseada na criação de mais táxis, que ainda apresentem vantagens de preço e conforto, não ajudam a fortalecer os vínculos dos cidadãos. Que tal um sistema de caronas coletivas?
Não sejamos pessimistas! Podemos imaginar que o Uber é o melhor dos mundos, mas isto ainda é uma ilusão. Ele pode ajudar, mas a questão está noutro lugar. A capital é lugar de alegrias e tristezas, mas se é preciso que o governo diga aos cidadãos que eles precisam “cuidar da cidade”, é porque há muito tempo, os portoalegrensens já não sentem mais a cidade como algo que seja seu.
Por isto precisamos é deixar os táxis e passarmos a caminhar mais, aí sim descobriremos uma cidade nova e a polêmica do Uber será vista como desnecessário e sem significado.