Artigo publicado na 45ª edição do Jornal Estado de Direito.
*Lelio Bentes Corrêa é Ministro do Tribunal Superior do Trabalho e Membro da Comissão de Peritos em Aplicação de Convenções e Recomendações da OIT.
A liberdade é um aspecto fundamental na dignidade da relação de trabalho, que deve ser fonte de desenvolvimento econômico e social, permitindo a trabalhadoras e trabalhadores a sua plena realização enquanto cidadãs e cidadãos produtivos. A ausência da liberdade na relação de trabalho nega a própria essência do trabalho decente.
Para a Organização Internacional do Trabalho – OIT, trabalho decente é “um trabalho produtivo, adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança e que seja capaz de garantir uma vida digna para trabalhadores e trabalhadoras”. O trabalho decente pressupõe remuneração justa, jornada e períodos de descanso adequados, não discriminação, proteção da saúde e segurança no trabalho, acesso a benefícios previdenciários, direito à sindicalização e liberdade na escolha de engajar-se (ou permanecer engajado) numa relação de trabalho.
A implementação da agenda internacional sobre o trabalho decente se dá por meio de programas nacionais, desenvolvidos em parceria com os países membros da OIT. No Brasil, a Agenda Nacional do Trabalho Decente foi lançada em 2006, e tem como prioridades “a geração de mais e melhores empregos, com igualdade de oportunidades e de tratamento; a erradicação do trabalho escravo e eliminação do trabalho infantil, em especial em suas piores formas; e o fortalecimento dos atores tripartites e do diálogo social como um instrumento de governabilidade democrática”.
Nos termos da Convenção 29 da OIT, adotada em 1930, trabalho forçado é todo aquele prestado contra a vontade do trabalhador, de forma coercitiva, sob a ameaça de uma penalidade. Segundo a OIT, o “trabalho forçado pode estar relacionado com o tráfico de pessoas, que cresce rapidamente no mundo todo. Ele pode surgir de práticas abusivas de recrutamento que levam à escravidão por dívidas; pode envolver a imposição de obrigações militares a civis; pode estar ligado a práticas tradicionais; pode envolver a punição por opiniões políticas através do trabalho forçado e, em alguns casos, pode adquirir as características da escravidão e o tráfico de escravos de tempos passados.”
Ainda conforme a Convenção, não se enquadra na definição de trabalho forçado aquele exigido em razão de condenação judicial, desde que prestado sob a supervisão e controle de uma autoridade pública e que a referida pessoa não seja colocada àdisposição de indivíduos, companhias ou associações privadas. Assim, o trabalho prestado em tarefas normais de manutenção do estabelecimento prisional ou em prol da sociedade não é considerado trabalho forçado. Da mesma forma, o trabalho prestado com vista à redução da pena (remição), sob a supervisão de uma autoridade pública, não se enquadra na definição de trabalho forçado.
Situação diversa, porém, ocorre com a prestação de serviços, pelo preso, a indivíduos e empresas privadas, cujo objetivo é obter lucro. Nesses casos, faz-se necessário cuidado redobrado na aferição do caráter voluntário da prestação dos serviços. Segundo a OIT, além do consentimento escrito, é necessário que o preso seja informado de todas as condições da prestação dos serviços (duração do trabalho, períodos de descanso, remuneração, etc.), e que lhe sejam asseguradas condições de trabalho assemelhadas àquelas dos trabalhadores não presos, especialmente no que diz respeito à segurança e saúde no trabalho.
A Lei de Execuções Penais brasileira assegura ao trabalhador preso remuneração não inferior a 3/4 do salário mínimo; proteção da saúde e segurança no ambiente de trabalho e jornada de no máximo oito horas diárias, com descanso aos domingos e feriados, entre outros direitos. Atribui, ainda, ao trabalho do preso, finalidade produtiva e educativa. Esse último aspecto é essencial, na medida em que as chances de reinserção social após o cumprimento da pena são consideravelmente maiores para aqueles que têm a oportunidade de desenvolver novas aptidões, competitivas no mercado de trabalho.
O trabalho do preso não pode ser tratado como mero instrumento de combate à ociosidade, nem de vingança da sociedade contra aquele que infringiu as suas regras. A nenhum título se admite a exploração econômica do preso, por indivíduos ou empresas privadas, mediante a prática de condições de trabalho atentatórias à dignidade. Lamentavelmente, são frequentes as iniciativas que, travestidas de benemerência, não visam senão à exploração de mão-de-obra barata e farta.
Se, por um lado, admite-se que o trabalho é dever social do preso e elemento essencial à sua vida produtiva, deve-se igualmente ressaltar que esse trabalho deve visar à afirmação da sua condição de dignidade humana. Assim, a trabalhadora ou trabalhador presos têm direito à mesma proteção assegurada aos demais trabalhadores, ou seja, têm direito a um trabalho decente.