Argumentos mentirosos
Os votos proferidos pelo STF na recente decisão acerca da inconstitucionalidade da lei orçamentária que promoveu corte de 50% dos gastos previstos e de 90% dos investimentos para a Justiça do Trabalho durante o ano de 2016 revela uma das faces de um projeto politico cada vez mais claro: acabar com a proteção especializada aos direitos sociais trabalhistas. Apesar de a história insistentemente nos revelar a necessidade de proteção aos direitos sociais, dentre os quais estão os direitos trabalhistas, como condição de possibilidade da própria forma capital, o liberalismo insiste em atacar todas as medidas de intervenção protetiva, retornando sempre ao mesmo discurso econômico, cujas premissas sequer se sustentam.
Tais premissas fundamentam-se especialmente em duas afirmações. Uma delas, de que há necessidade de enxugar o Estado, reduzindo estruturas, como a da Justiça do Trabalho, para economizar. Afinal de contas, não é novidade que o Estado está economicamente falido. O outro argumento é a necessidade de fugir da intervenção estatal, privilegiando a solução extrajudicial dos conflitos entre capital e trabalho. Ambos argumentos mentirosos.
A redução da estrutura e das condições de funcionamento da Justiça do Trabalho provocará (e já vem provocando) maior demora na tramitação das demandas, que não param de chegar (registra-se o aumento em 30% do número de ações ajuizadas este ano, em relação ao mesmo período no ano passado). Isso significa o colapso da resposta estatal às agressões sistemáticas a direitos trabalhistas beneficiando grandes empregadores (clientes contumazes dessa justiça especializada) em detrimento não apenas dos direitos dos trabalhadores, mas da própria concorrência saudável com os pequenos e médios empreendedores.
O corte no orçamento da Justiça do Trabalho
Em Porto Alegre, audiências já estão sendo designadas para outubro de 2017. Essa falência provocada pelo corte no orçamento da Justiça do Trabalho não evitará a despedida sem pagamento das verbas resilitórias, a prática de assédioestrutural, o não pagamento de jornadas extraordinárias, no mais das vezes praticadas de forma ordinária. Ao contrário, fará com que o desrespeito a esses direitos dos quais depende a subsistência física de quem trabalha seja estimulada. E com isso, facilitará a ação predatória de grandes empresas, inclusive na supressão da concorrência, pela possibilidade de praticar dumping social. A consequência será (e já está sendo) a inviabilidade de pequenos e médios empreendimentos, que não tem condições de competir nessa lógica predatória. E quando falirem, esses empregadores recorrerão ao Estado, que criou mecanismos de ajuda como a absurda recuperação judicial. Os empregados, por sua vez, terão de recorrer ao seguro-desemprego, a fim de sobreviver nos meses em que estiverem sem trabalho. Não haverá, portanto, enxugamento da máquina estatal. Haverá, como já está ocorrendo, uma procura ainda maior por soluções que o mercado não pode nem tem interesse em dar, e que são vitais para que não haja caos.
A suposta necessidade de estimular a autocomposição, como um modo de promover a “maturidade” dos agentes sociais dessa relação (trabalhadores e tomadores de trabalho) revela-se como um argumento ainda mais perverso. O Estado se constitui, especialmente através da Justiça do Trabalho, como o único e último reduto de realização, mesmo que tardia e parcial, dos direitos sociais. É sabido que a democracia traz consigo o ônus da necessidade de estruturas ágeis e capazes de promover o retorno à ordem jurídica democraticamente instaurada.
Ou seja, viver em um Estado Democrático de Direito significa ter direitos e deveres, mas também contar com uma estrutura forte que os faça valer, sempre que violados. Do contrário, a própria democracia revela-se como uma farsa.
Elegemos nossos representantes, aprovamos as normas jurídicas e concordamos em conceder ao Estado o monopólio da jurisdição. Em contrapartida, podemos (e devemos) exigir do Estado que garanta a realização dessa ordem de coisas, que aja quando nossos direitos forem violados. Enquanto escrevo, é impossível evitar a sensação de estar fortalecendo um engodo. Impossível deixar de perceber o quanto essas ideias de democracia, pelas quais lutamos de forma tão árdua e que defendemos (e temos mesmo que defender) com entusiasmo, são fantasias na realidade atual.
Boicote à Justiça do Trabalho
Nosso problema, porém, na urgência desse momento histórico em que até o STF se divorcia da Constituição para, com argumentos econômicos ou dissociados da realidade, ajudar a boicotar a Justiça do Trabalho, contribuindo de modo decisivo para o seu colapso iminente, é mais singelo. A retórica constitucional, vale mesmo enquanto discurso. E constitui-se como um discurso que nos interessa, que precisa nos interessar. Um discurso que serve à consolidação de uma realidade menos cruel. E que por isso se qualifica como projeto, como proposta de convivência humana, como o mínimo tolerável: o mínimo de desigualdade, de miséria, de exploração.
A Justiça do Trabalho é o ambiente em que as normas fundamentais de proteção ao trabalho encontram espaço para serem exigidas, para serem respeitadas. Suprimir esse espaço – é disso que se trata e é essa a consequência do corte de orçamento chancelado pelo STF – é retirar dos trabalhadores a possibilidade de exercício de sua cidadania, de exigência do respeito às normas constitucionais.
O resultado mais imediato é o retorno à barbárie, algo que já vivenciamos como sociedade, há bem pouco tempo atrás. O voto do Ministro Celso de Mello, uma aula de democracia e respeito à Constituição, e que provocou inclusive a alteração no voto da Ministra Rosa Weber, reconhece o perigoso terreno em que estamos pisando e as consequências sociais, talvez insuperáveis, desse caminho de desmanche dos direitos sociais e, pois, das possibilidades de vida minimamente digna sob a lógica do capital.
E por mais que pareça sedutor àqueles que como eu apostam nas possibilidades de superação do sistema, investir no caos para instigar a revolta, fato é que a luta pela superação das condições de exploração e miséria pode e deve ser feita, como dizia Marx, também através dos aparelhos do próprio capital, dentre os quais o Poder Judiciário trabalhista tem importância fundamental, seja para evitar a barbárie, seja para promover condições de vida que permitam reconhecer e lutar por mudanças.